As infecções do trato urinário (ITU) incluem cistite, que é uma infecção do trato urinário inferior (bexiga), e pielonefrite, que é uma infecção do trato urinário superior (rins e pelve renal), e são caracterizadas pela presença de patógenos microbianos no trato urinário, causando infecção.
As ITU são 6 vezes mais frequentes em mulheres do que em homens, e isso se deve principalmente à anatomia do trato feminino, que, com a uretra mais curta e mais exposta, permite mais fácil ascensão de patógenos.
É difícil estimar a sua incidência, já que na maioria das vezes o seu tratamento é ambulatorial. O que se sabe é que as ITU representam a principal causa de infecção hospitalar por isso, merecem a nossa importância e estudo. Nesse artigo abordaremos a pielonefrite.
Como a pielonefrite é causada?
Na maioria das vezes há colonização do introito vaginal ou meato ureteral por bactérias aeróbias de origem fecal, que ascendem pela uretra (a Escherichia coli, por exemplo, tem sua ascensão facilitada, pois suas fimbrias se aderem às células epiteliais da uretra), e chegam até a bexiga. O esvaziamento incompleto da bexiga facilita o crescimento bacteriano no local, e depois acontece a aderência à mucosa ureteral, atingindo a pelve renal e rim.
Nos homens, devido à maior distância entre a uretra e o ânus, e entre a uretra e a bexiga, a pielonefrite acontece principalmente como complicação de obstrução, ou em pacientes sondados.
Quais são os patógenos responsáveis pela pielonefrite?
A pielonefrite não complicada, é causada em até 90% das vezes por E. coli, mas também pode ser causada por Staphylococcus saprophyticus (principalmente no verão, em mulheres jovens), Klebsiella, Proteus, Enterococcus spp. (principalmente em homens idosos, instrumentação do trato urinário, e uso recente de antibiótico), e Streptococcus do grupo B.
A pielonefrite complicada, apesar de ter a E. coli ainda como a sua principal etiologia, também tem os bacilos gram-negativos como importantes patógenos, que geralmente são: Pseudomonas aeruginosa, Enterobacter spp., outras Enterobacteriaciae, e fungos.
Como classificar a pielonefrite?
Pode ser classificada em pielonefrite não complicada, que acontece em pacientes sem alteração estrutural ou neurológica do trato urinário, e em pielonefrite complicada, quando o paciente acometido apresenta anormalidades estruturais ou funcionais do trato urinário, abscessos, pielonefrite enfisematosa, necrose de papila, e na presença de cateteres vesicais e cálculos urinários.
Quais são os principais fatores de risco para o desenvolvimento da pielonefrite?
- História prévia de ITU
- História materna de ITU
- Pacientes do sexo feminino, com atividade sexual (a relação sexual facilita a entrada de bactérias periuretrais na bexiga), uso de espermicidas (eliminam os lactobacilos da flora e permitem o supercrescimento bacteriano, aumentando a colonização por E. coli), ou na menopausa (a falta de estrogênio provoca alterações similares na flora vaginal, ou ainda por uso de antimicrobianos, como betalactâmicos)
- Novo parceiro sexual
- Alterações funcionais ou anatômicas do trato urinário, que possam obstruir o fluxo de urina (hiperplasia prostática benigna, presença de tumores, estreitamentos, cálculos e valva de uretra posterior), bexiga neurogênica e incontinência urinária
- Instrumentação do trato urinário ou uso de cateter vesical (a cateterização mesmo pode introduzir a bactéria na bexiga, ou propiciar a sua migração)
- Diabetes mellitus (maior frequência de bacteriúria assintomática e ITU sintomática, além do maior risco de complicações, como apresentações raras de ITU, pielonefrite enfisematosa, abscesso, necrose de papila e pielonefrite xanto granulomatosa, seja por controle glicêmico inadequado, duração da doença, microangiopatia diabética, disfunção leucocitária secundária à hiperglicemia ou vaginite de repetição)
- Imunossupressão
- Lesão medular
- Pacientes com mais de 60 anos (devido ao aumento da bacteriúria assintomática com a idade e presença de comorbidades, e à dificuldade de controle urinário)
- Gravidez (menor tônus ureteral, peristalse ureteral reduzida e incompetência temporária das valvas vesico ureterais, aumentando o risco de pielonefrite, parto prematuro e mortalidade fetal)
Como a pielonefrite se manifesta?
O paciente poderá apresentar dor progressiva em flanco, fadiga, febre alta (principal achado que difere cistite de pielonefrite), prostração, náuseas e vômitos, e sintomas de cistite (disúria – dor ou dificuldade à micção, polaciúria – aumento da frequência de micções, com menor volume de urina, urgência urinária e dor suprapúbica, piúria e até hematúria).
Ao exame poderemos encontrar também taquicardia, queda do estado geral, e sinal de Giordano (dor à palpação e à punho-percussão da região lombar correspondente).
Idosos, imunossuprimidos, crianças e pacientes debilitados podem apresentar a doença de forma atípica, com dor abdominal, cefaleia, sintomas não específicos, dor lombar difusa, dor pélvica, queixas respiratórias, ou podem ainda ser oligossintomáticos, o que pode dificultar o diagnóstico.
Nem sempre a sepse urinária será causada por uma pielonefrite, acontecendo na maior parte das vezes por retirada de cateter vesical.
Como é feito o diagnóstico da pielonefrite?
A pielonefrite aguda deve ser diagnosticada pelos dados clínicos do paciente, e por dados laboratoriais. Para isso, solicitamos o EAS (urina tipo 1), urocultura (a amostra ideal é a urina de jato médio após higiene íntima) e hemocultura com antibiograma.
A cultura é considerada positiva se contagem maior ou igual a 105 unidades formadoras de colônias por mL (ufc/mL). Mas, se sintomas fortemente sugestivos, é possível considerar como positiva a cultura a partir de 102 ufc/mL.
Os exames de imagem não devem ser sempre solicitados, apenas caso haja dúvidas a respeito do diagnóstico, falência terapêutica (exemplo: paciente ainda apresentando febre, após 72 horas de antibioticoterapia), ou suspeita de complicações, como abscesso ou obstrução.
A tomografia computadorizada (TC) com contraste é o exame que melhor evidencia o processo inflamatório do trato urinário, e seus achados dependem do tempo de evolução.
Inicialmente, as áreas inflamadas estarão hipodensas na imagem, pois não concentram o contraste, mas podem evoluir com liquefação. Também podemos ver edema difuso renal e borramento da gordura perinéfrica. Permite ainda a detecção de abscessos e outras complicações.
Já a ultrassonografia possui menor sensibilidade que a TC, mas em casos de abscesso e hidronefrose deve ser o exame de escolha, já que seu custo é menor e não há radiação. Pode demonstrar cavidade no parênquima renal com paredes espessadas e conteúdo líquido.
A urografia excretora e a ressonância magnética (RNM) não acrescentam aos exames acima e, por isso, não devem ser solicitadas.
A cintilografia renal com DMSA é utilizada apenas para o diagnóstico em crianças.
Quais são os diagnósticos da pielonefrite?
As vaginites, uretrites, cistite intersticial (deve ser lembrada principalmente em idosos), pielonefrite crônica (pode causar doença tubulointersticial por infecções recorrentes, como por exemplo as infecções em pacientes que apresentam obstrução renal por cálculos ou refluxo vesico ureteral), diverticulite e apendicite (pois podem causar piúria estéril).
Como deve ser o tratamento da pielonefrite?
Pode ser individualizado de acordo com cada paciente, não existindo uma regra da via inicial de tratamento, que pode ser intravenosa ou oral. Para essa decisão, o médico deve considerar o estado clínico do paciente, a gravidade da doença, a presença de náuseas e vômitos, o suporte que receberá em casa, e a continuidade do tratamento médico.
O tratamento inicial deve ser empírico (enquanto aguardamos o resultado da cultura com antibiograma), e depende da indicação ou não de internação.
Mulheres com bom estado clínico e pielonefrite não complicada podem ser tratadas ambulatorialmente. Paciente com doença moderada pode receber a primeira dose do antibiótico por via parenteral, além de hidratação, e ser observado por algumas horas para avaliar se há alguma melhora clínica. Caso essa ocorra, o paciente poderá ser liberado e continuar o seu tratamento ambulatorialmente.
Também é possível que, na melhora do quadro de um paciente internado, esse receba alta a qualquer momento e continue o tratamento ambulatorialmente.
Isso deverá ser feito quando o paciente apresentar melhora da instabilidade e da gravidade da doença, ingestão de líquidos por via oral, sem vômitos, e se não apresentar contraindicações ao uso de drogas orais, nem interações.
Indicações de internação hospitalar e antibioticoterapia venosa são:
- Doentes graves
- Gestantes
- Imunodeprimidos
- Crianças
- Homens
- Suspeita de complicações (abscesso, obstrução ou cálculo)
- Vômitos persistentes mesmo com o uso de antieméticos
- Ausência de terapia oral adequada
- Má aderência medicamentosa
- Condições sociais inadequadas para que o tratamento seja domiciliar
Para todos os pacientes é preciso cobrir bacilos Gram-negativos comuns e, para os pacientes com pielonefrite complicada e/ou uso recente de antibióticos, também devemos cobrir Gram-positivos e Gram-negativos resistentes.
Algumas opções de tratamento empírico são:
Calma, antes de ver o tratamento, lembre-se de uma coisa, ele deve variar com a microbiota da comunidade e do próprio paciente!
- Tratamento oral para pielonefrite não complicada:
– Levofloxacino 500 a 750 mg 1 vez ao dia, OU
– Ciprofloxacino 500 mg 2 vezes ao dia, ou XR 1000 mg 1 vez ao dia (cuidado, muitas grandes capitais do Brasil tem alta resistência! Nestes casos deve-se tentar outros antibióticos) OU
– Amoxicilina-Clavulanato 500 a 1000mg 3 vezes ao dia
- Tratamento parenteral para pielonefrite não complicada:
– Ceftriaxona 1 g 1 vez ao dia, OU
– Ciprofloxacino 400 mg 2 vezes ao dia, OU
– Levofloxacino 750 mg 1 vez ao dia, OU
– Aztreonam 1 g a cada 8 a 12 horas
- Tratamento parenteral para pielonefrite complicada:
– Piperacilina + tazobactam 4 + 0,5 gramas de 6 em 6 horas, OU
– Ticarcilina + clavulanato 3,1 g de 6 em 6 horas, OU
– Cefepime 1 g de 12 em 12 horas, OU
– Meropenem 1 g de 8 em 8 horas, OU
– Imipenem 500 mg de 6 em 6 horas
A duração do tratamento, geralmente, deve ser de 7 a 14 dias. Pacientes com infecções muito graves, condições de base que compliquem seu quadro, ou sepse, devem ter o tratamento prolongado para 14 a 21 dias.
Em gestantes, a preferência de tratamento será pelas cefalosporinas de 3ª geração (como a ceftriaxona), ou penicilinas (ampicilina, ou ampicilina + aminoglicosídeo). Sulfonamidas devem ser evitadas no 1º trimestre de gravidez e próximo ao parto, e quinolonas não são indicadas para gestantes.
Em crianças, a melhor escolha seria cefalosporina de 3ª geração ou aminoglicosídeo.
Em paciente com uso de cateter vesical, esse deverá ser trocado ou retirado, e o tratamento está indicado se, após 48 horas, houver persistência da bacteriúria. Mas, caso o paciente apresente estado mais grave, e grande suspeita de pielonefrite, já deverá ser tratado imediatamente. A urinocultura é fundamental para guiar o tratamento, já que pode ter diversas etiologias.
Se não apresentar cocos Gram-positivos, o agente de escolha será a ceftriaxona 2 g por dia, ou ciplofloxacino 400 mg intravenoso, de 12 em 12 horas. Se suspeita de infecção por Pseudomonas, iniciar ceftazidima 2 g de 8 em 8 horas, podendo considerar o uso de aminoglicosídeos.
Se infecção por enterococo, essa poderá ser tratada com ampicilina, vancomicina e ainda aminoglicosídeos. Em pacientes com a infecção causada por estafilococo coagulase-negativo, a preferência é a vancomicina 1 g IV de 12 em 12 horas. A duração do tratamento deve ser de 10 a 14 dias.
E o prognóstico desses pacientes?
Na maioria das vezes o paciente apresentará melhora clínica em até 48 horas de antibioticoterapia. Caso persista a febre e não apresente melhora do estado geral, deverá ser reavaliado.
O acompanhamento deve ser feito com a realização de urinocultura de controle após 2 a 4 semanas.
Existe profilaxia?
Algumas medidas para prevenir a pielonefrite são: evitar uso de espermicida, usar estrogênio vaginal na pós-menopausa, urinar após a relação sexual (mulheres), evitar cateterização urinária, corrigir anormalidades urológicas, profilaxia antimicrobiana nas mulheres com ITU de repetição e no pós-transplante renal imediato.
Não há um consenso para caracterizar uma infecção de repetição, mas, no geral, 2 ou mais infecções sintomáticas ao longo de um ano, ou infecções que interfiram na qualidade de vida da paciente, podem ser consideradas de repetição.
Algumas estratégias para tratamento são: utilização de baixas doses de sulfametoxazol + trimetoprim, quinolona ou nitrofurantoína por 6 meses, ou por períodos maiores, a depender da necessidade da paciente, ou então, coletar urina e iniciar antibiótico caso haja infecção.
E as complicações da pielonefrite?
- Pielonefrite enfisematosa: Pode acontecer em pacientes diabéticos hiperglicêmicos. Há rápida fermentação da glicose pelos bacilos Gram-negativos ou leveduras, produzindo gás dentro do parênquima renal, do abscesso renal ou da pelve renal, causando, respectivamente, a pielonefrite enfisematosa, o abscesso gasoso e a pielite enfisematosa. É uma pielonefrite grave que pode causar sepse e levar à morte. Há necrose do tecido renal. Seu tratamento pode ser com nefrectomia, mas alguns estudos recentes apontam a eficácia de tratamento conservador em alguns casos.
- Necrose de papila: Pode ser causada por pielonefrite grave, anemia falciforme, uso abusivo de AINE, diabetes mellitus, alcoolismo crônico, ou doença vascular e obstrutiva. A infecção das pirâmides renais associada a doenças vasculares ou obstrução do trato urinário pode levar a essa complicação. O paciente apresentará hematúria macroscópica, febre, calafrio, e dor no flanco. Pode haver ainda insuficiência renal aguda, com oligúria ou anúria. Geralmente acontece bilateralmente.
- Obstrução da via urinária: Pode acontecer, por exemplo, por cálculos ou tumores, sendo necessária a desobstrução ou drenagem. Pode ser colocado um cateter duplo J ou ser feita nefrostomia percutânea até que esse paciente com pielonefrite tenha a infecção controlada, para então realizar a desobstrução.
- Abscessos renais: O quadro pode variar desde febre persistente mesmo após início de antibioticoterapia, até evolução para sepse. Os germes envolvidos geralmente são o S. aureus, Candida spp e Mycobacterium tuberculosis. A minoria pode ser de origem hematogênica, e não originados de infecção urinária. Nesse caso, não haverá clínica de pielonefrite. O tratamento geralmente consiste em antibioticoterapia + cirurgia, mas pode ser individualizado e conservador dependendo do tamanho do abscesso, por exemplo. É possível realizar drenagem via percutânea também, guiada por imagem.
Pielonefrite xantogranulomatosa: A pielonefrite pode evoluir cronicamente para essa situação, que pode acontecer por uma resposta imune anormal à infecção, e conta, na maioria das vezes, com a presença de cálculo coraliforme.
Comumente é unilateral, com destruição do rim, que se encontra aumentado devido à grande presença de cálculos. É mais comum em mulheres de meia-idade, com pielonefrite de repetição.
Os principais agentes são os Gram-negativos, mas também pode ser causada por estafilococos. A clínica será de febre, dor lombar, queda do estado geral e emagrecimento.
No exame físico, há massa abdominal palpável, e no exame laboratorial há anemia, elevação de VHS, e na urina há piúria e bacteriúria. Confirma-se o diagnóstico por exame de imagem (tomografia ou angiografia), e o tratamento consiste na antibioticoterapia e posterior retirada do rim afetado.