Em 1968, Berger e Hinglais, na França, relataram pela primeira vez a associação de hematúria, proteinúria e infecções do trato respiratório superior. Além disso, após biópsia renal notaram, pelo método de imunofluorescência, depósitos de IgA com depósitos menos intensos de IgG e C3 no mesângio dos glomérulos de um grupo de pacientes, classificando-os como portadores de doença de Berger ou “nefropatia por IgA”. O conhecimento dessa doença é importante, visto que é a doença glomerulonefrite primária mais comum no mundo, com início na faixa etária de 10 a 40 anos e é mais comum em homens. É idiopática na maioria das vezes, sendo conhecida como uma doença de adultos jovens. Além disso, possui manifestações com prognósticos que podem variar de casos leves a formas graves com evolução para insuficiência renal crônica (IRC), sendo responsável por cerca de 10% dos pacientes que evoluem para diálise no mundo.
Em alguns pacientes a nefropatia por IgA se apresenta como um componente da Púrpura de Henoch-Scholeinn, uma vasculite que cursa com púrpura, depósitos de IgA na pele, glomerulite com IgA no mesângio, dor abdominal e artralgia. Há também outras doenças que podem desencadear este padrão de lesão glomerular de forma secundária, como a cirrose hepática, espondilite anquilosante, doença celíaca e infecção pelo HIV (apesar da glomeruloesclerose focal colapsante ser a principal lesão do HIV, não são raros os casos de nefropatia por IgA nesses pacientes).
Quadro clínico da nefropatia por IgA
A nefropatia de IgA possui um quadro clínico variado, no entanto, é representante do grupo de hematúria glomerular assintomática. A apresentação mais comum em 40- 50% dos casos é hematúria macroscópica precipitada por estresse e exercício. Geralmente, esses episódios são assintomáticos, no entanto, há a possibilidade de em muitos pacientes haver a associação com sintomas constitucionais leves, mialgia e dor lombar e disúria (fazendo diagnóstico diferencial com pielonefrite ou cistite bacteriana hemorrágica).
As crises de hematúria macroscópica são, em geral, concomitantes ou subsequentes (de um a dois dias) à IVAS (amigdalites, faringites).Vale ressaltar que é a nefrite que aparece junto com a faringite, daí o nome “síndrome sinfaringítica”. Mas atenção! Se a infecção respiratória alta estiver como fator precipitante, NÃO confundir com glomerulonefrite pós estreptocócica! Há diferenças importantes. Diferentemente da glomerulonefrite pós-estreptocócica, na nefropatia por IgA não há o consumo do complemento (níveis normais de C3 e ASLO) e o período de incubação não é compatível.
Em 40% dos pacientes, há hematúria microscópica persistente. Quando lê-se persistente, deve-se pensar que a persistência da hematúria e, também, da proteinúria indica lesão glomerular persistente. Assim, observa-se pior prognóstico nesse grupo quando comparados às outras formas de apresentação da doença. Nesses casos, o diagnóstico é realizado por exames de rotina e hematúria macroscópica ocorre em 15 a 20% dos pacientes.
Outras apresentações
Há desenvolvimento de síndrome nefrótica clássica, apresentando depósitos mesangiais de IgA e que respondem bem aos corticoides, podem ter nefropatia por lesão mínima e nefropatia por IgA. Em menos de 5% dos pacientes a doença de Berger pode evoluir para formação de crescentes, assumindo curso de glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP).
Exames e Diagnóstico da Nefropatia por IgA
O EAS do paciente com nefropatia por IgA contém hematúria de padrão glomerular com dismofirmose cilindros hemáticos. É comum proteinúria leve evoluindo para padrão nefrótico em apenas 10% dos casos. O complemento sérico é NORMAL. Há aumento da IgA sérica e a biópsia da pele do antebraço dos pacientes revela depósitos capilares de IgA em 50% dos pacientes, sendo útil para investigação de hematúria recorrente.
O diagnóstico da doença de Berger dá-se, apenas, por depósito mesangiais de IgA na biópsia renal exceto em uma situação: se forem encontrados níveis séricos aumentados de IgA + depósitos de IgA nos vasos da pele do antebraço de um paciente com hematúria recorrente. Mantida essa exceção, apenas a biópsia renal estabelece o diagnóstico.
Quando indicar a biópsia renal?
A indicação de biópsia renal possui certa polêmica, mas no geral os autores concordam dela ser indicada se existir sinais de doença renal progressiva com proteinúria maior que 1 g/dia ou aumento da creatinina sérica. Os pacientes com HAS de início recente ou aumento dos níveis pressóricos, mesmo que abaixo de valores de 140/90 mmHg também aumentam o risco de doença progressiva e podem ser parâmetros utilizados para indicar a biópsia renal.
Fatores prognósticos e história natural
Como dito antes, a história natural é variada. Os pacientes podem ter evolução benigna, mas outras vezes podem surgir complicações como hipertensão, síndrome nefrítica ou nefrótica e perda progressiva de função renal, com evolução para doença renal terminal.
Prognóstico é bom em 60% dos casos com permanência da hematúria microscópica e da proteinúria subnefrótica com ou sem episódios intercalados de hematúria macroscópica, 5% de remissão completa sem complicações, 5% dos pacientes evoluem para rápida disfunção renal e 30% dos pacientes evoluem para Insuficiência Renal Crônica e rins terminais ao longo de 20 anos.
Fatores de mau prognóstico
- Idade do diagnóstico (quanto mais avançada, pior)
- Homem
- Proteinúria persistente > 1g por dia
- Hipertensão Arterial
- Ausência de hematúria macroscópica
- Creatinina > 1,5 mg/dl ou azotemia
- Biopsia com crescentes ou depósitos subendoteliais de IgA
A presença de hematúria macroscópica intermitente ou microscópica persistente em paciente assintomático deve-se acompanhar no ambulatório. No entanto, em pacientes que desenvolvem Proteinúria >1g dia ou hipertensão arterial moderada ou creatinina com valor maior que 1,5 mg/dl e os que apresentam alterações na biópsia renal como formação de crescentes devem receber tratamento com corticoide e inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA) com o objetivo de nefroproteção. Caso haja hipercolesterolemia está indicado o uso de estatinas.
Em pacientes com doença crônica, o controle pressórico e uso de IECA ou de BRA tem como objetivo de manter proteinúria < 0,5 grama ao dia. Nesses pacientes, quando há falha nesse objetivo, deve-se considerar o uso de corticosteroides além das medidas como restrição de sal e água e uso do óleo de peixe.
Em pacientes com doença aguda, principalmente se biópsia renal mostra lesões focais necrotizantes e crescentes, podem se beneficiar do uso de glicocorticoides. A corticoterapia retarda a progressão da insuficiência renal nesses pacientes e um dos esquemas recomendados é prednisona 2mg/kg em dias alternados por 2-3 meses, reduzindo paulatinamente a dose para 20-50mg/dia, que será, então, mantida por pelo menos seis meses.
O uso do óleo de peixe dá-se por ser uma alternativa a ser tentada ao uso de corticoides, visto que um estudo demonstrou lentificação da taxa de progressão do dano renal, porém, sem mecanismo de ação conhecido.
A associação de imunossupressores como a ciclofosfamida vem sendo estudada em pacientes que apresentam doença progressiva apesar do uso de corticoides. Os pacientes com proteinúria nefrótica apesar das medidas gerais e com piora da função renal são bons candidatos à terapia imunossupressora. Em pacientes com função renal declinando rapidamente, a biópsia é fator determinante na terapêutica, caso o paciente apresente necrose tubular aguda é candidato apenas à terapia de suporte, caso lesões necrotizantes e crescênticas deve se considerar o tratamento imunossupressor, conforme comentado.
Nos casos de glomerulonefrite rapidamente progressiva, o tratamento baseia-se na pulsoterapia com metilprednisolona associada ao uso de ciclofosfamida com ou sem plasmaferése.
Outras abordagens como dieta pobre em antígenos evitando, portanto glúten e ovos, gamaglobulina endovenosa (corrigiria deficiência de IgG parcial) e vitamina D na forma de calcitriol, uso de antibióticos profilático e amigdalectomia para prevenir os episódios de hematúria macroscópica são controversas.