A rabdomiólise é uma síndrome caracterizada pela necrose muscular e liberação de conteúdos intracelulares para a circulação. A importância do tema se dá pelas possíveis consequências geradas (exemplo: insuficiência renal) e pela possibilidade de prevenção. Atualmente, com o número de pessoas aumentando o nível de exercícios físicos e realizando atividades muitas vezes extenuantes, o tema se torna ainda mais relevante.
O quadro típico evidencia aumento dos níveis séricos de creatinoquinase (CK ou CPK), dor muscular. Miglobinúria pode estar presente. Há um amplo espectro de gravidade no que diz respeito à rabdomiólise, que será descrito a seguir.
QUAL COSTUMA SER A APRESENTAÇÃO CLÍNICA?
Clinicamente se manifesta com mialgia, urina avermelhada (mioglobinúria) e aumento de enzimas musculares (principalmente CK).
Sintomas: tríade clássica consiste em dor muscular, astenia/fadiga e urina escura. Apesar disso, mais da metade dos pacientes pode se apresentar sem sintomas musculares. Quando presente, a mialgia geralmente é mais proeminente nos grupamentos musculares mais proximais como coxas e ombros, além de lombar inferior e panturrilhas.
Alguns sintomas mais envolvidos com rabdomiólise severa incluem febre, taquicardia, náusea, vômitos e dor abdominal.
Exame físico: podemos verificar sensibilidade muscular e edema do mesmo.
Achados laboratoriais: a marca da rabdomiólise é a elevação sérica da CK e de outras enzimas musculares; mioglobinúria (vista em metade dos casos) – a ausência não exclui o diagnóstico; hipercalemia; hiperfosfatemia; hipocalcemia; hiperuricemia; acidose metabólica; aumento de escórias nitrogenadas.
Em geral, a CK está elevada, no mínimo, 5 vezes o limite da normalidade, podendo apresentar níveis entre 1500 a 100000 UI/L.
As transaminases também costumam estar aumentadas (AST e ALT).
E AS POSSÍVEIS CAUSAS?
Existem múltiplas possíveis causas para a rabdomiólise e podemos dividi-las em três categorias: traumáticas ou compressão muscular (A), esforço não traumático (B) (esforço físico importante em indivíduos não treinados; hipertermia; miopatias metabólicas), causas não traumáticas não relacionadas ao exercício (C) (drogas, toxinas, infecções, distúrbios hidroeletrolíticos).
(A) – Traumáticas ou compressão muscular: é uma causa comum de rabdomiólise e podem ser vistas em vítimas de trauma múltiplo, como acidentes automobilísticos. Muitos desses pacientes também apresentam síndrome compartimental.
Vítimas de abuso, tortura; procedimentos cirúrgicos nos quais há compressão muscular prolongada; síndrome compartimental secundária à fratura óssea (exemplo: fratura de tíbia); choque elétrico de alta voltagem ou queimadura de 3º grau de grande extensão.
(B) Esforço não traumático: ocorre em ocasiões em que a energia muscular não é suficiente para suprir a demanda. Por exemplo, a atividade de ultramaratonistas (atingindo atividades como corridas com mais de 99 quilômetros).
Portanto, essa situação ocorre na condição de um exercício extenuante. Geralmente, associada a uma ou mais das seguintes condições: indivíduos destreinados; condições climáticas adversas como calor intenso, alta umidade; situações que dificultem a sudorese normal; traço falciforme; hipocalemia (os níveis normais de potássio são importantes para a vasodilatação). No entanto, vale lembrar que mesmo os pacientes treinados, na ausência dessas condições, também podem apresentar rabdomiólise.
Delirium tremens, agitação por surto psicótico, overdose por anfetamina e convulsões epilépticas também estão associados com o tema.
(C) Drogas, toxinas, infecções, distúrbios hidroeletrolíticos: o abuso de drogas e de medicações pode implicar em rabdomiólise. Além do álcool, heroína, cocaína, anfetaminas, metadona, LSD, também estão relacionadas.
Intoxicações por monóxido de carbono; picadas de cobra; cogumelos venenosos; insetos (vespas, abelhas), Doença de Haff (rabdomiólise dentro de 24 horas após ingestão de alguns tipos de peixe).
No que diz respeito às infecções: infecções virais agudas (influenza A e B; Coxsackievirus; Epstein-Barr; herpes simplex; HIV; citomegalovírus e outros); piomiosite; algumas bactérias como Mycoplasma, Legionella, Streptococcus, Salmonella, Leptospirose, infecções estadilocócicas; malária.
Rabdomiólise também tem sido relacionadas com alguns distúrbios dos eletrólitos, principalmente hipocalemia e hipofosfatemia. Essa associação está mais presente em pacientes etilistas, que fazem hiperalimentação sem suplementação de fósforo.
Em tese, qualquer situação que gere destruição muscular ou interfira no metabolismo do músculo é capaz de culminar no quadro de rabdomiólise.
GUILHERME, E SOBRE A INJÚRIA RENAL AGUDA ASSOCIADA COM A RABDOMIÓLISE?
A injúria renal aguda (IRA) é uma complicação comum secundária à rabdomiólise. A frequência deste acometimento é de 15-50%. Em pacientes que apresentam níveis de CK sérica entre 15 a 20000 unidades/L, o risco de IRA é pequeno. Fatores que aumentam o risco para a lesão renal são: desidratação, sepse e acidose. A disfunção renal, no contexto da rabdomiolise, se dá devido à depleção de volume (fazendo isquemia renal), obstrução tubular por pigmentos de cadeia heme e injúria tubular direta por cadeias do metabolismo do ferro.
ALGUMAS CAUSAS MAIS RARAS DE COMPLICAÇÃO SECUNDÁRIAS À RABDOMIÓLISE:
Aqui podemos citar duas mais relevantes: síndrome compartimental e coagulação intravascular disseminada.
QUANDO SUSPEITAR DE RABDOMIÓLISE EM SITUAÇÕES ESPECIAIS?
– Mialgia e urina escurecida;
– Mialgia ou urina escurecida após exposição a possíveis causas predisponente;
– O diagnóstico também deve ser suspeitado em situações de imobilização prolongada; em qualquer paciente comatoso ou torporoso:
. sensibilidade muscular;
. necrose cutânea;
. sinais de trauma múltiplo;
. alterações sanguíneas sugestivas de destruição celular como hipercalemia, hiperfosfatemia e/ou hipocalcemia.
. evidência de injúria renal aguda.
COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO?
Como qualquer outra situação médica, deve possuir uma história compatível, apresentando acometimento muscular ou urina escurecida, associado com aumento dos níveis séricos de CK (tipicamente aumentada por mais de cinco vezes os níveis normais).
Portanto, o diagnóstico é clínico, não necessitando de outros exames complementares como eletroneuromiografia, ressonância nuclear magnética, biópsia muscular. Esses estudos devem ser reservados para pacientes em que uma miopatia inflamatória esteja sendo suspeitada.
QUAIS SÃO OS POSSÍVEIS DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS?
– Hematúria/hemoglobinúria;
– Miopatia inflamatória: essa situação também pode exibir mialgia e aumento de CK (as vezes apresentando mioglobinúria). Esses pacientes são diferenciados de um quadro de rabdomiólise por apresentarem uma doença mais crônica, geralmente acometendo grupamentos musculares proximais simetricamente, com alterações laboratoriais estáveis;
– Miopatia secundária à necrose imunomediada.
PREVENÇÃO E TRATAMENTO:
Neste tópico, a própria prevenção se confunde com o tratamento, tendo seus pilares em três fatores: correção da depleção de volume (se presente), correção de distúrbios de eletrólitos e resolução de causas reversíveis.
Infusão de Volume: tanto na prevenção quanto no tratamento, a administração de volume deve ser precoce e agressiva. O objetivo nesta etapa é manter a perfusão renal, minimizar a isquemia, e aumentar o volume urinário. Assim, espera-se diminuir a precipitação de cristais tubulares e diluir a concentração do pigmento heme e aumentar a excreção urinária de potássio.
Bicarbonato: Um tanto polêmica sua indicação no tratamento. No geral, só se avalia o uso nos pacientes com rabdomiólise grave, normalmente quando há CK acima de 5000 U/L e com pH urinário bastante baixo.
Terapia Renal Substitutiva (TRS): Tanto a hemodiálise ou a diálise peritoneal têm suas indicações nas lesões renais muito graves, hipercalemia refratária ao tratamento clínico ou hipervolemia também refratária.
Correção de hipercalemia, hipocalcemia, hiperfosfatemia e hiperuricemia.
VALE LEMBRAR! O principal no tratamento da rabdomiólise é a hidratação, com o objetivo de obter um débito urinário variando de 2,0 a 4,0 litros por dia.