Introdução
A hérnia consiste em uma protuberância ou projeção de um órgão ou parte de um órgão através da parede do corpo que normalmente o contém. Especificamente no caso de hérnias da parede abdominal, essas são tipicamente classificadas por localização ou etiologia e, em sua maioria, necessitam de uma avaliação pelo cirurgião quando identificadas. Neste artigo pretendemos abordam algumas noções gerais sobre as hérnias da parede abdominal. Caso tenha o interesse de estudar mais sobre as hérnias, não esqueça também de conferir os artigos sobre hérnias inguinais e femorais.
Visão anatômica essencial
A parede abdominal é composta por camadas sobrepostas de músculos e de tecidos que contêm e que protegem os órgãos intra-abdominais, ao mesmo tempo em que facilitam o movimento e a respiração. Além disso, a parede abdominal é composta por músculos que formam uma cavidade aproximadamente cilíndrica, delimitada superiormente pelo processo xifoide e margens costais, e inferiormente pela sínfise púbica e cristas ilíacas.
Em termos anatômicos, devemos saber que os dois pilares centrais dos músculos retos abdominais se fundem na linha média para formar a linha alba e, lateralmente, eles se conectam com uma camada tripla de músculos planos de oblíquo externo, oblíquo interno e transverso do abdome (também chamados de músculos oblíquos). Ainda nesse contexto, é importante notarmos que cada músculo reto é envolvido por uma bainha do reto composta de fibras da aponeurose dos músculos planos laterais, cuja composição muda de acordo com a localização.
Quanto à vascularização, tem- se que os músculos da parede abdominal são supridos pelas artérias intercostais e lombares e um ramo circunflexo profundo da artéria ilíaca. Já em relação à inervação, esses músculos são inervados pelos nervos intercostal e lombar, que entram na parede abdominal entre os músculos transverso abdominal e oblíquo interno.
A classificação das hérnias da parede abdominal
1. Quanto à localização
As hérnias da parede abdominal são mais comumente classificadas por localização. Nesse sentido, são diferenciadas as hérnias ventrais, hérnias da virilha, hérnia pélvica e hérnia localizada no flanco. Vamos entender um pouco mais sobre elas?
Hérnia ventral
As hérnias ventrais ocorrem anteriormente e incluem hérnias ventrais primárias (como a epigástrica, a umbilical, a spigeliana) e a maioria das hérnias incisionais (hérnias ventrais incisionais).
Hérnia na virilha
A virilha é a região na margem inferior do abdômen onde a coxa encontra o quadril. As hérnias da virilha são subclassificadas em hérnias inguinais e femorais. Para mais detalhes, indicamos que você leia os nossos artigossobre hérnia femoral e inguinal!
Hérnia pélvica
As hérnias pélvicas são aquelas que se projetam através de um dos forames pélvicos (como a hérnia obturatória) ou do assoalho pélvico (hérnias perineais).
Hérnia de flanco
As hérnias de flanco se projetam através de áreas enfraquecidas da musculatura das costas e incluem as hérnias do triângulo lombar superior e inferior.
2. Quanto à etiologia
Além de serem classificadas quanto à localização, as hérnias da parede abdominal também podem ser classificadas por etiologia, sendo divididas em hérnias congênitas e hérnias adquiridas.
Hérnia congênita
Considera- se que uma hérnia é congênita quando o defeito na parede abdominal está presente desde o nascimento. Dentre esses defeitos congênitos da parede abdominal, os mais comuns são a onfalocele e a gastrosquise.
Hérnia adquirida
Uma hérnia adquirida surge em decorrência de um defeito que se desenvolve como resultado do enfraquecimento ou da ruptura dos tecidos fibromusculares da parede abdominal. Nesse sentido, as hérnias que se desenvolvem sem uma incisão cirúrgica prévia são chamadas de hérnias primárias, enquanto que aquelas que se desenvolvem após uma incisão cirúrgica são chamadas de hérnias incisionais. Como podemos supor, a patogênese das hérnias primária e incisional é diferente.
Patogênese
A maioria das hérnias adquiridas se forma quando há perda de integridade mecânica dos músculos da parede abdominal e dos tendões necessários para conter as vísceras. Nesse contexto, os distúrbios genéticos ou sistêmicos da matriz extracelular podem predispor os pacientes à formação primária de hérnia, enquanto a cicatrização defeituosa após laparotomia e correção de hérnia leva a hérnias incisionais.
Sabe- se que, do ponto de vista biomecânico, a cavidade abdominopélvica é um cilindro envolto por músculos, por tendões e por estruturas ósseas. Nesse momento vale à pena relembrarmos os princípios de Pascal, que afirmam que qualquer pressão gerada dentro da cavidade é transmitida igualmente às paredes dessa cavidade. Sendo assim, observa- se que, em resposta ao aumento da pressão abdominal, a parede abdominal muscular contrai para gerar contrapressão.
No entanto, caso a pressão intra-abdominal exceda a pressão da parede abdominal, a parede abdominal irá romper em seu ponto mais fraco, causando hérnia. Dessa forma, uma vez formada uma hérnia, essa tende a continuar a aumentar de tamanho devido ao aumento da tensão da parede naquele local de acordo com a lei de Laplace (a tensão da parede é maior no ponto do maior raio e da parede mais fina).
Ok, eu sei. Você achou que fosse se livrar desse negócio de lei de fulano, lei de ciclano assim que terminasse o vestibular. Porém, a ideia aqui não é tornar a explicação chata, mas apenas fazer com que você entenda os porquês e a mecânica envolvida na formação das hérnias. Tendo compreendido, você não precisa ficar decorando os nomes das leis. Basta entender o que acontece!
Epidemiologia
Em termos epidemiológicos, observa- se que uma parcela considerável da população tem ou já teve alguma hérnia de parede abdominal, sendo a maioria acometida por hérnias na virilha. Estudos norte- americanos mostraram que cerca de cinco milhões de americanos têm uma hérnia da parede abdominal. Ainda, segundo uma estimativa, os reparos de hérnia ventral compreendem cerca de um terço de todos os reparos de hérnia nos Estados Unidos e, de todas as hérnias ventrais que são reparadas, cerca de um terço são incisionais e dois terços são hérnias ventrais primárias. E o que isso significa? Em termos de gestão, esses dados mostram que tal realidade repercute no aumento das despesas com cuidados de saúde (nos EUA, as despesas com cuidados de saúde relacionados com a hérnia da parede abdominal é de cerca de 2,5 a 3 milhões de dólares por ano).
Características clínicas
Vamos agora direto ao ponto para discutirmos as características clínicas no contexto das hérnias de parede abdominal
História
A apresentação clínica das hérnias da parede abdominal pode variar dependendo de sua localização e de seu tamanho. Por exemplo, as hérnias pequenas podem ser assintomáticas ou apresentar vários graus de dor e desconforto, à medida que os conteúdos de hérnia se projetam através do defeito. Na maior parte das vezes, no entanto, o paciente procura atendimento médico com queixa de ter notado a vigência de uma protuberância em algum ponto da parede abdominal. Além disso, os pacientes podem referir que atos como tossir ou fazer exercícios que envolvem esforço abdominal pode produzir ou agravar a dor ou o desconforto. Já no caso de hérnias maiores, percebe- se que essas podem exercer pressão excessiva sobre a pele sobrejacente, levando à ocorrência de áreas de eritema, de isquemia ou de ulceração.
Nesse contexto, é importante também identificarmos na historia do paciente a presença de fatores de risco associados à formação de hérnia, como histórico familiar de hérnia, sexo masculino, obesidade, gravidez, levantar peso, tossir, fazer esforços, fibrose cística e infecções pulmonares crônicas, cirurgia abdominal prévia, doenças colagenosas e tabagismo. Vale lembrar também que, embora qualquer hérnia da parede abdominal possa apresentar complicações devido ao encarceramento do conteúdo intestinal no defeito, as hérnias do tipo femoral e obturatória frequentemente não são reconhecidas até que se apresentem como obstrução intestinal devido ao encarceramento.
Achados físicos
Quando recebemos um paciente com suspeita de hérnia de parede abdominal, é extremamente necessário realizar um exame físico minucioso da parede abdominal, o qual deve ser feito com o paciente em pé e deitado. No exame de pacientes não obesos, a hérnia pode ser fácil de identificar e as bordas do defeito fascial podem frequentemente ser palpadas. É importante frisar que TODA a parede abdominal – particularmente ao longo do comprimento de qualquer incisão – deve ser palpada cuidadosamente para identificar outros locais de hérnia coexistentes.
Diagnóstico
A maioria das hérnias em pacientes não obesos pode ser prontamente diagnosticada com um exame completo do abdome e da virilha. No entanto, hérnias muito pequenas, hérnias em pacientes obesos e certos tipos de hérnias, como por exemplo as hérnias pélvicas e as lombares, exigem exames de imagem para diagnosticar.
Avaliação diagnóstica
Em pacientes com suspeita de hérnia de parede abdominal que não pode ser diagnosticada ao exame físico, pode ser indicada a realização de tomografia computadorizada (TC) abdominopélvica, a qual consiste na melhor modalidade de imagem para confirmar o diagnóstico e para identificar o conteúdo contido no saco herniário.
Diagnóstico diferencial de hérnias abdominais
Existem algumas anormalidades da parede abdominal que podem mimetizar uma hérnia. Dessa forma, torna- se imprescindível conhecermos essas situações, para que não seja feito um diagnóstico equivocado. Neste artigo, vamos mencionar as condições que não podem ser esquecidas quando o assunto é o diagnóstico diferencial de hérnias abdominais. Fique atento!
Diátese do reto abdominal
Essa é uma condição na qual uma distância anormalmente ampla separa os dois músculos retos. Nesse contexto, quando um paciente com diátese do músculo reto abdominal eleva a cabeça enquanto está deitado em decúbito dorsal e começa a se sentar, o aumento da pressão intra-abdominal como os dois músculos retos que se contraem pode resultar em uma protuberância fusiforme difusa, muitas vezes com uma protrusão do conteúdo abdominal. Nesses casos, a fáscia da linha média abaulada pode ser vista como uma crista proeminente que se estende do xifoide ao umbigo.
Apesar disso, nesse contexto não são detectados defeitos na fáscia e, portanto, não há uma hérnia propriamente dita. No entanto, devemos sempre ter em mente que a presença de diátese de reto não exclui a possibilidade de haver uma hérnia ventral concomitante. Pelo contrário, a hérnia ventral pode coexistir com a diátese, seja ela primária (epigástrica ou umbilical), ou particularmente se houver uma laparotomia mediana prévia (ou seja, incisional).
Hematoma da bainha do reto
O hematoma da bainha do reto consisteem uma entidade clínica rara que resulta do acúmulo de sangue na bainha do reto devido a trauma, tensão muscular ou no contexto de anticoagulação. Na maioria das vezes apresenta-se agudamente com dor abdominal e uma massa abdominal palpável. Devido ao padrão de suprimento sanguíneo arterial para os músculos retos, a maioria dos hematomas ocorre no baixo-ventre. Nesse sentido, a vigência de hematoma da bainha do reto pode ser distinguida da ocorrência de hérnia ventral por meio da realização de uma tomografia computadorizada (TC) abdominal e pélvica, bem como pela falta de um defeito fascial palpável.
Celulite / abscesso da parede abdominal
Nesses casos, geralmente os pacientes apresentam sensibilidade focal, eritema e flutuação. Pode ocorrer no pós-operatório, pós-trauma, espontaneamente ou como extensão de um processo intra-abdominal. Uma forma particularmente mórbida de infecção da parede abdominal é a fascite necrosante, geralmente ascendente do trato geniturinário inferior ou da área perianal.
Lipomas
Os lipomas podem se desenvolver dentro do tecido mole ou músculos da parede abdominal, podendo ser superficiais ou subcutâneos. Além disso, os lipomas são frequentemente encontrados em locais fora da linha média. Em geral, observa- se que grande parte dos lipomas é de fácil palpação, a qual revela nódulos subcutâneos macios, indolores, redondos, ovais ou multilobulados, variando de 1 a mais de 10 cm de tamanho. Por outro lado, os lipomas subcutâneos profundos ou intramusculares são mais comumente confundidos com hérnias, sendo muitas vezes difícil distingui- los da hérnia da parede abdominal ou de outras lesões da parede abdominal sem a realização de exames de imagem (como tomografia computadorizada/ TC, ultrassonografia/ USG e ressonância nuclear magnética/ RNM).
Endometriose da cicatriz
A endometriose de cicatriz pode se manifestar como uma massa da parede abdominal palpável na localização de uma incisão prévia por cesariana. Nesse caso, os pacientes frequentemente relatam dor cíclica durante a menstruação.
Neurofibromas
Os neurofibromas são neoplasias benignas compostas por células de Schwann e por fibras colágenas. Podem ser solitários (esporádicos) ou plexiformes (neurofibromatose 1 ou 2), e também fazem parte do diagnóstico diferencial de hérnias.
Tumores desmoides
Tumores desmoides são neoplasias fibroblásticas benignas de crescimento lento que podem surgir da aponeurose muscular abdominal. Os tumores desmoides conferem caracteristicamente dor mínima e, em geral, não possuem grande potencial metastático. Por outro lado, tendem a apresentar propensão à recorrência local, mesmo após ressecção cirúrgica completa, e estão associados à polipose adenomatosa familiar (PAF). Eles podem ser distinguidos de hérnias da parede abdominal por métodos de imagem, incluindo ultrassonografia (USG), tomografia computadorizada (TC) e ressonância nuclear magnética (RNM), a depender de cada caso.
Outras condições
Além das condições mencionadas anteriormente, os sarcomas da parede abdominal e depósitos metastáticos (tipicamente de câncer de melanoma, pulmão, rim e ovário) também podem se apresentar como uma massa da parede abdominal. Além disso, a possibilidade de ocorrência de seromas, de granulomas de sutura, bem como a presença de implantes cirúrgicos (por exemplo, enxerto vascular e cateter de diálise peritoneal) devem ser cogitadas.
Observação importante: apesar de termos mencionado diversos diagnósticos diferenciais, na realidade o diagnóstico diferencial da hérnia da parede abdominal inclui qualquer patologia intra- abdominal que possa causar dor e desconforto abdominal. Nesse sentido, uma dica interessante é a de que a maioria das patologias que cursam com desconforto abdominal e com a presença de uma massa, mas que não estão relacionadas à hérnia, surgem acompanhadas por sintomas e por sinais adicionais (por exemplo, por sintomas gastrointestinais). Apesar disso, nem sempre o diagnóstico é fácil; portanto, ele requer a análise cuidadosa e individualizada de cada caso.