A síndrome de Sjogren é uma situação crônica, de acometimento multissistêmico, com patogênese autoimune, acometendo principalmente as glândulas lacrimais e salivares e culminando em ressecamento da boca e dos olhos. A grande importância dessa síndrome é saber quando suspeitar da mesma, além das queixas de “boca seca” e sensação de “areia nos olhos” serem muito comuns, devendo “ligar a luz de alerta” para o diagnóstico diferencial.
Qual a patogênese da doença?
A patogênese da síndrome pode ser diferente se o acometimento for glandular ou extraglandular. No caso da primeira, a causa é devido à inflamação imunomediada direcionada principalmente às glândulas salivares e lacrimais, associada com múltiplos fatores.
Geralmente, a doença possui algum tipo de gatilho, que pode estar ligado a uma infecção viral em um indivíduo geneticamente predisposto. O evento inicial ativa o sistema imune inato do paciente, porém a manutenção e propagação do processo depende também do sistema imune adaptativo. O resultado de toda essa interação é a estímulo de células B, produção de autoanticorpos e uma inflamação crônica das glândulas, podendo acometer outros tecidos.
Já o acometimento extraglandular também conta com a colaboração do depósito de imunocomplexos e linfoproliferação extranodal.
Quais são os fatores de risco para a síndrome de Sjogren?
Os fatores de risco para doença são uma mistura de fatores genéticos e não genéticos. Aqui vamos citar os mais importantes:
. Fatores genéticos: uma tendência familiar para o desenvolvimento de Síndrome de Sjogren (SS) é bem documentada (tanto associada com os genes HLA quanto genes não HLA). A ligação mais forte da SS foi com relação à região HLA-DR;
. Gênero: a predominância no gênero feminino é muito maior do que no masculino (15-20:1);
. Infecção viral: há uma associação forte do desencadeamento da doença após um quadro de infecção viral, porém nenhum vírus isolado conseguiu ser o “culpado” dessa história. As evidências demonstram que a correlação com alguma infecção viral é presente em muitos pacientes. Os vírus mais relacionados são Epstein-Barr vírus (EBV), HTLV, vírus da hepatite D.
E a epidemiologia?
A estimativa da incidência e prevalência da SS varia bastante, levando em consideração o tipo de critério diagnóstico utilizado nos estudos, e a população examinada. Em geral, a incidência estimada é aproximadamente 7 em 100.000 pessoas por ano.
Com uma variação tão grande, os fenótipos da doença também variam de acordo com a localização do paciente e sua etnia.
Quais são as manifestações clínicas da Síndrome de Sjogren?
As manifestações clínicas podem ser divididas em glandulares (exócrinas) e extraglandulares.
. Glandulares:
- OLHO SECO: causado por uma redução do componente aquoso das lágrimas. Geralmente a apresentação desse sintoma, na SS, é iniciado de forma insidiosa dentro de vários anos. Os sintomas geralmente apresentam piora no período noturno. É muito comum que a queixa do paciente seja de sensação de “areia nos olhos”, como se houvesse algum corpo estranho nessa topografia.
Outros sintomas incluem irritação, fotofobia e acúmulo de secreção local. Complicações que podem estar presentes são úlcera córnea e infecção conjuntival.
Diagnósticos diferenciais para a queixa de “olho seco”:
. inflamação das glândulas lacrimais (ex.: sarcoidose; linfoma; infecção pelo vírus da hepatite C);
. obstrução das glândulas lacrimais (ex.: síndrome de Stevens-Johnson; pênfigo);
. medicações (ex.: antidepressivos tricíclicos; anti histamínicos);
. deficiência de vitamina A;
. menopausa;
. dermatite atópica, entre outros.
- BOCA SECA: geralmente resultado de uma hipofunção crônica das glândulas salivares. Apesar de “boca seca” ser uma queixa bastante comum na população (principalmente nos mais idosos), a evidência objetiva de redução do fluxo salivar não é frequente em indivíduos saudáveis.
Em alguns casos, os pacientes podem se apresentar com sinais/sintomas menos clássicos como disfagia, aderência de alimentos na mucosa oral, complicações odontológicas, alteração do sabor dos alimentos, dificuldade de se alimentar com comidas mais secas e até mesmo desabilidade de falar por longos períodos.
Como complicações desse sintoma temos: cáries dentárias; candidíase oral; alterações gengivais; esofagite crônica, emagrecimento, noctúria (muitos pacientes tentam compensar o ressecamento oral ingerindo maior quantidade de líquidos).
Diagnósticos diferenciais para “boca seca”:
. drogas (antidepressivos; anti histamínicos; anticolinérgicos; diuréticos; neurolépticos);
. amiloidose;
. sarcoidose;
. infecções virais (ex.: HIV; HCV; EBV; sarampo; CMV; coxsackie);
. Diabetes Mellitus mal controlada;
. ansiedade;
. radioterapia;
. desidratação;
. actinomicose;
. obstrução de glândulas salivares; entre outros.
. Extraglandulares:
- PELE: as principais manifestações do acometimento dermatológico na SS são: ressecamento (manifestação cutânea mais comum); púrpura; fenômeno de Raynaud; vasculites; eritema; queilite angular;
- MÚSCULOESQUELÉTICO: até 50% dos pacientes com Síndrome de Sjogren apresenta artralgia, com ou sem evidência de artrite. Geralmente a artropatia desses pacientes é simétrica, intermitente, de características não erosivas e sem deformação. As mãos, cotovelos e joelhos são as articulações mais acometidas.
O Fator Reumatoide é encontrado positivamente em até 40% dos pacientes.
Sinais e sintomas de miopatia também podem ser encontrados em alguns pacientes.
- FADIGA E FIBROMIALGIA: a queixa de fadiga é uma das mais comuns na SS, apesar de sua patogênese não ser tão bem explicada.
A fibromialgia possui uma prevalência de 15-31% nessa doença e possui forte relação com a queixa de fadiga. Além disso, transtorno depressivo também pode ser um fator contribuinte para a mesma.
- DOENÇAS DA TIREOIDE: já é demonstrado que há uma forte correlação da Síndrome de Sjogren com algumas doenças da tireoide, sendo elas autoimunes ou não.
- PULMÃO: as vias aéreas e o interstício pulmonar são os principais alvos do acometimento pulmonar na Síndrome de Sjogren. Aproximadamente 10-20% possui manifestações clínicas pulmonares, que podem ser detectadas através de sintomas, exames de imagem ou exame de prova de função pulmonar.
O acometimento pode ocorrer em relação às vias aéreas superiores, doença das vias aéreas inferiores ou doença pulmonar intersticial.
- CARDIOVASCULAR: a Síndrome de Sjogren está associada com maior risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Acometimento do pericárdio e do miocárdio pode ocorrer, embora seja raro.
- TRATO GASTROINTESTINAL: disfagia, náusea, dispepsia, gastrite, doença celíaca, anormalidades hepáticas, acometimento pancreático são todas alterações descritas na doença.
- TRATO UROGENITAL: nefrite intersticial pode ocorrer. Além disso, manifestações ginecológicas como prurido vaginal, dispareunia e ressecamento vulvovaginal podem estar presentes.
- DOENÇAS NEUROLÓGICAS / PSIQUIÁTRICAS: uma grande variedade de manifestações neurológicas pode ocorrer na síndrome de Sjogren, incluindo neuropatia periférica (até 10% dos pacientes). Geralmente, os sintomas neurológicos precedem os outros sintomas clássicos da SS.
A manifestação psiquiátrica mais comum são os distúrbios de humor. O transtorno depressivo tem uma prevalência de 33-49% dos pacientes.
- HEMATOLÓGICAS: incluem citopenias, como anemia e leucopenias; hipergamaglobulinemia; gamopatias monoclonais; crioglobulinemia; linfomas.
Qual a relação da Síndrome de Sjogren com os linfomas?
Pacientes com o diagnóstico de Síndrome de Sjogren apresentam um risco aumentado de linfoma não Hodgkin quando comparado com a população geral. O linfoma de zona marginal é o tipo histológico mais envolvido.
Como realizar o diagnóstico da Síndrome de Sjogren?
O diagnóstico de SS pode ser realizado em indivíduos com os achados de ressecamento ocular e/ou oral, que apresentem alguma evidência de acometimento autoimune das glândulas exócrinas. A doença também deve ser suspeitada naqueles casos com persistência dos sintomas de olhos e/ou boca seca, com envolvimento das parótidas e aumento inexplicável dos números de cáries, com envolvimento autoimune comprovado.
Não há um único teste diagnóstico específico para Síndrome de Sjogren, mas sim um conjunto de sinais/sintomas em associação com alguns exames complementares que nos levam ao diagnóstico.
Então, vamos avaliar os critérios diagnósticos (o paciente deve apresentar, pelo menos, um critério clínico + critério laboratorial):
. Achados objetivos de ressecamento ocular e/ou oral: o paciente deve apresentar marcadores objetivos de ressecamento ocular (ex.: teste de Schirmer com < 5 mm/5 minutos – explicarei posteriormente como funciona o teste – ou coloração anormal da superfície ocular) ou de ressecamento oral (teste de Saxon ou sialometria). Uma opção para esses testes é a realização de exames de imagem como ressonância nuclear magnérica (RNM) ou ultrassonografia (USG) que demonstrem evidência de anormalidades glandulares sugestivas de SS.
. Evidências autoimunes sorológicas ou histopatológicas: o paciente deve apresentar o anticorpo anti-Ro/SSA com ou sem o anti-La/SSB, biópsia de glândulas salivares positiva ou diagnóstico definitivo de alguma doença sistêmica como artrite reumatoide, lúpus eritematoso sistêmico, esclerose sistêmica ou miopatia inflamatória idiopática.
Alternativamente, o paciente pode apresentar anticorpo anticentrômero ou uma combinação de fator antinuclear (FAN) maior ou igual a 1:320 com um fator reumatoide positivo.
E o que é a Síndrome de Sjogren secundária?
Esse termo pode ser utilizado para aqueles pacientes que apresentam disfunção das glândulas lacrimais ou salivares no contexto de uma doença reumática sistêmica bem estabelecida (como os exemplos citados acima). Por exemplo, clínica de Síndrome de Sjogren em um paciente que apresente diagnóstico de LES ou de artrite reumatoide, e por aí vai…
Guilherme, você pode citar alguns exemplos de diagnósticos diferenciais?
Claro! Porém, por se tratar de um tema muito extenso, minha ideia não é esgotar o assunto nem citar cada detalhe desses diagnósticos diferenciais. Então, vamos lá para alguns exemplos:
– Síndrome “sicca” relacionada com a idade;
– Doença relacionada com IgG4;
– Sialadenite linfoepitelial benigna;
– Linfoma;
– Sarcoidose;
– Hepatite C;
– HIV
Como funcionam os testes diagnósticos? E esse tal de Schirmer?
Vamos tentar entender um pouco melhor como funcionam esses testes:
. Teste de Schirmer: nada mais é do que a aferição da produção de lágrimas. Utiliza-se uma tira de papel estéril, proveniente de um kit específico e padrão, colocando-a sobre a margem de cada pálpebra inferior do paciente, entre o terço médio e lateral. Após isso, marca-se 5 minutos e posteriormente é aferido o grau de umedecimento das tiras após o paciente permanecer com os olhos parcialmente fechados.
Umedecimento da tira inferior a 5 mm indica deficiência lacrimal e já é um dos critérios para SS. Geralmente os resultados são proporcionais nos dois olhos (no caso da SS).
. Coloração da superfície ocular: danos existentes nas células epiteliais da conjuntiva e da córnea podem ser demonstrados com o uso de alguns corantes específicos que colorem o tecido desvitalizado. O corante “Rosa Bengala” é um desses. Como este é doloroso nos pacientes com deficiência de produção lacrimal, ele pode ser substituído por corantes verdes de fluoresceína e lissamina.
Após o uso dos corantes, a coloração da superfície ocular é pontuada de acordo com alguns esquemas (ex.: pontuação de van Bijsterveld). De acordo com a pontuação, isso sugere ou não síndrome “sicca”.
Agora vamos falar dos testes que aferem a disfunção das glândulas salivares.
. Cintilografia das glândulas salivares: fornece uma imagem dinâmica da função das principais glândulas salivares. A descoberta de uma captação muito baixa do radionuclídeo, apesar de pouco sensível, é específica da SS. Aproximadamente um terço dos pacientes com Síndrome de Sjogren apresentam testes positivos.
. Sialometria: os resultados da sialometria indicando hipofunção da glândula pode servir de suporte para o diagnóstico de Síndrome de Sjogren.
. Imagem das glândulas salivares: tanto a RNM quanto a ultrassonografia podem ser usadas para definir alterações do parênquima das glândulas salivares, podendo contribuir para o diagnóstico da Síndrome de Sjogren.
Pode falar um pouco melhor sobre os testes séricos de autoimunidade?
Os pacientes podem ser testados para anticorpos anti-Ro/SSA e anti-La/SSB (mais específicos para a doença, não necessitando da positividade dos dois para o diagnóstico da doença). Além disso, FAN positivo em título maior ou igual a 1:320 em combinação com positividade do Fator Reumatoide também pode ser indicativo da doença.
E a biópsia da glândula salivar?
Constitui um importante teste diagnóstico! Nos pacientes que possuem evidência de doença sistêmica autoimune, a biópsia de glândula salivar é essencial para a confirmação diagnóstica.
Outra importância é a diferenciação entre outras doenças que podem confundir o diagnóstico: sarcoidose; doença relacionada ao IgG4; amiloidose.
Agora que temos uma noção melhor da doença, podemos falar sobre tratamento?
Primeiro, vamos falar sobre os principais objetivos do tratamento, que consistem na melhora dos sintomas de boca seca, olho seco, prevenir complicações do ressecamento das mucosas (ex.: infecções orais; úlcera da córnea) e detecção e manuseio das manifestações e complicações sistêmicas da doença.
. Tratamento da boca seca: a terapêutica dessa situação compreende uma série de ações para a amenização da boca seca, mas também diversas atitudes profiláticas. Por exemplo, medidas básicas de autocuidado odontológico, além da prevenção das cáries dentárias e também acompanhamento odontológico preventivo regular; utilização de saliva artificial naqueles pacientes que a estimulação mecânica do fluxo salivar ou da água não são suficientes; uso de agonistas muscarínicos (ex.: pilocarpina) em pacientes que não respondem nem ao estímulo mecânico nem à saliva artificial.
Algumas medidas são indicadas a todos os pacientes:
– Prevenção da boca seca;
– Estimulação e secreções;
– Acompanhamento dentário
Como fazer a “prevenção da boca seca”?
. Medidas como otimização da hidratação, ingesta de bebidas livres de açúcar, evitar bebidas que possam irritar a mucosa oral, como aquelas a base de álcool, café e nicotina;
. Evitar medicações que podem piorar o sintoma de “boca seca” (ex.: anticolinérgicos)
Como realizar a estimulação mecânica do fluxo salivar?
Essa medida só é possível naqueles pacientes que ainda apresentam algum fluxo salivar residual. Tais medidas são:
. Ingerir estimulantes salivares (ex.: balas ou pastilhas sem açúcar; gomas de mascar sem açúcar).
. Tratamento do olho seco: algumas medidas gerais são preconizadas como: evitar uso de medicamentos que possam piorar essa queixa; óculos para minimizar a evaporação das lágrimas (principalmente óculos com armação grande); evitar ambientes muito secos ou com muito vento; evitar permanecer perto de tabagistas (a fumaça pode agir como irritante aos olhos); uso de umidificadores do ambiente podem ser benéficos; evitar ficar muito tempo de frente para telas, como a da TV ou do computador (comprovadamente, isso leva a uma menor frequência de piscadas, tornando os olhos ainda mais secos); lágrimas artificiais devem ser utilizadas regularmente para ajudar a prevenir complicações e aumentar o conforto quando o indivíduo for se expor a locais mais secos.
Lágrimas artificiais: o uso delas é recomendado para todo o paciente com diagnóstico de SS, a despeito do nível de gravidade da doença. No mercado farmacêutico, encontramos diversos tipos de lágrimas artificiais, variando sua composição, conservantes, osmolaridade e viscosidade (o ideal é que o oftalmologista ou médico especialista em Síndrome de Sjogren possa indicar a melhor formulação para cada paciente). A maioria das lágrimas artificiais é composta por hidroxipropilmetilcelulose.
A frequência do uso deve ser guiada de acordo com o grau de necessidade e de alívio de cada paciente (aquelas que contêm conservantes não devem ser utilizadas por mais de quatro vezes por dia).
. Tratamento das manifestações sistêmicas: o acompanhamento e manejo do paciente com diagnóstico de Síndrome de Sjogren deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar devido ao acometimento de diversos órgãos e sistemas.
Todo paciente deve receber orientações e educação continuada sobre as medidas de autocuidado e os benefícios da cessação de tabagismo, dieta apropriada, uso correto dos medicamentos, cuidados preventivos, imunizações e aconselhamento sobre gravidez.
O tratamento dos pacientes que apresentam envolvimento sistêmico depende do tecido acometido, podendo se beneficiar muitas vezes do uso de imunossupressores e agentes biológicos.
Qual o prognóstico do paciente com Síndrome de Sjogren?
Convenhamos, o que nenhum de nós tem dúvidas é que a qualidade de vida desses pacientes é bastante reduzida quando comparada a de uma pessoa saudável. No entanto, no que diz respeito à mortalidade os estudos são bastante controversos.
Alguns dados podem nos sugerir sobre uma maior mortalidade nesses pacientes. Os mais relevantes são: presença de linfoma e/ou lesão em estágio terminal de envolvimento pulmonar ou renal; vasculite; hipocomplementenemia; crioglobulinemia; doença grave das glândulas exócrinas. Esses fatores são associados com mortalidade mais precoce nesse perfil de pacientes.
UFA!!! APÓS ESSE TEXTO, ESPERO QUE A SÍNDROME DE SJOGREN TENHA CLAREADO UM POUCO MAIS NA SUA CABEÇA!!!