Introdução
A hanseníase, também chamada popularmente pelo termo “lepra“, é uma doença milenar, com registro até nos textos bíblicos. No entanto, até os dias de hoje, trata-se de uma doença muito prevalente, especialmente em nosso país. A grande diferença é que existe tratamento já há alguns anos, e é uma doença na imensa maioria dos casos curável. Portanto, é importante saber reconhecer, diagnosticar e tratar esse mal, que, historicamente, carrega um estigma social muito grande. Vamos conhecer a Hanseníase?
O que causa a Hanseníase?
A Hanseníase é causada por uma micobactéria, Mycobacterium leprae, também chamado de Bacilo de Hansen, que, assim como as outras micobactérias, é um bacilo álcool-ácido resistente (BAAR) que não é detectada pelas colorações convencionais e nem cresce nos meios de cultura tradicionais.
O Bacilo de Hansen é transmitido por secreções de vias aéreas superiores eliminadas por indivíduos multibacilares sem tratamento ao falarem, tossirem ou espirrarem. Não há transmissão por fômites (objetos de uso pessoal) e os pacientes paucibacilares não são transmissores. Assim que é instituído o tratamento, os multibacilares deixam de transmitir o bacilo.
Apesar de já ter sido indicado o isolamento total dos pacientes com hanseníase no passado, hoje entendemos que não se trata de uma doença altamente contagiosa, sendo a infecção mais comum no caso de contato íntimo e duradouro com o indivíduo multibacilar.
Assim como a tuberculose, causada por outra micobactéria (Mycobacterium tuberculosis), a hanseníase não responde aos esquemas de antimicrobianos tradicionais, sendo necessária Poliquimioterapia (PQT) com combinação de alguns agentes mais específicos para essa doença, conforme falaremos mais adiante.
Qual é a fisiopatologia da Hanseníase?
O Bacilo de Hansen apresenta tropismo e melhor crescimento em regiões do corpo com temperaturas mais baixas (27-33ºC), como pele, nervos superficiais e epitélio do trato respiratório superior. Uma vez nesses locais, a infecção provoca inflamação e edema, podendo formar granulomas, especialmente nas células de Schwann e nos nervos periféricos, causando sua desmielinização que é a base da neuropatia que caracteriza a doença. Apesar de existirem sítios preferenciais, o bacilo pode ganhar a corrente sanguínea e se disseminar pela via hematogênica, acometendo órgãos internos em casos mais graves.
A grande maioria das pessoas imunocompetentes que têm contato com o patógeno não desenvolve a doença, pois seu sistema imune é capaz de conter o crescimento do bacilo. Indivíduos com algum comprometimento da imunidade ou com predisposição genética são os mais suscetíveis às formas mais graves.
Assim como outras micobactérias, M. leprae apresenta crescimento muito lento, dobrando sua população a cada duas semanas. Com isso, o período de incubação é bem longo, podendo ser de 6 meses até 10 anos.
Quais são as manifestações clínicas da Hanseníase?
A Hanseníase aparece como máculas hipocrômicas com alteração da sensibilidade superficial (calor, dor e tato), podendo também ser hipercrômicas. Essas são as chamadas “máculas anestésicas”, características da doença.
Podem também ocorrer cãibras e parestesia em membros, com possibilidade de feridas e queimaduras não percebidas pelo paciente, aparecimento de nódulos ou tubérculos e queda de pelos, especialmente nas sobrancelhas, o que é chamado madarose.
Podem ainda ser identificados espessamento de nervos periféricos, palpáveis ao exame físico, e, em casos mais avançados, perda de força, lagoftalmia e perfuração do septo nasal.
Além disso, podem surgir alguns sinais e sintomas sistêmicos como: Febre, artrites, hepatoesplenomegalia, fraqueza muscular, fenômeno de Raynaud entre outros.
Quais as formas clínicas da hanseníase?
A Hanseníase pode ser classificada de diversas formas, seja pela clínica, pela histopatologia ou pela quantidade de lesões. As classificações mais importantes são as seguintes:
— A classificação de Ridley-Jopling leva em conta a resposta imune do hospedeiro, variando de uma forma leve nos indivíduos com resposta celular adequada e menor carga de bacilos (forma paucibacilar ou tuberculoide), até uma forma mais grave e deformante com maior carga bacilar naqueles com imunidade prejudicada (multibacilar ou lepromatosa). Existem formas intermediárias a essas duas, que são chamadas de borderline e podem tender mais a um ou a outro extremo (borderline tuberculoide, borderline-borderline e borderline lepromatosa). Formas precoces, nas quais ainda não foi definida a clínica são chamadas de indeterminadas.
— A classificação de Madrid divide a doença em :
- Indeterminada, que é a fase inicial, comum a todos os doentes, podendo ser imperceptível ou marcada pela presença de mácula única, com bordas mal definidas, com diminuição da sensibilidade térmica e dolorosa, mas tato preservado;
- Tuberculóide, na qual há uma pápula anestésica com bordas elevadas e bem delimitadas, ou então o espessamento de um único nervo causando parestesia em seu território de inervação. É uma forma paucibacilar e a baciloscopia é negativa. Esses doentes não são transmissores.
- Dimorfa, na qual já há várias máculas hipo ou hipercrômicas, anestésicas, de bordas elevadas e mal delimitadas. Pode haver comprometimento assimétrico de nervos periféricos. Essa é a forma mais comum da doença e os indivíduos são considerados multibacilares.
- Virchowiana, que é a forma mais grave e contagiosa da doença, caracterizada por pele difusamente infiltrada e com poros alargados, com surgimento de nódulos assintomáticos (os hansenomas). O paciente pode apresentar a típica fácies leonina, com nariz alargado, perda dos supercílios, madarose e pele infiltrada. Pode haver espessamento simétrico dos nervos periféricos. A baciloscopia dos lóbulos da orelha e dos cotovelos é positiva, servindo como confirmação diagnóstica.
A classificação da OMS é baseada simplesmente no número de lesões da pele, e foi desenvolvida para lugares onde não há profissionais com experiência ou recursos laboratoriais para suporte diagnóstico da hanseníase:
- Paucibacilar é aquele paciente com < 5 lesões, sem detecção de bacilos em esfregaços de pele;
- Multibacilar é aquele paciente com > 6 lesões, com detecção de bacilos em esfregaços de pele;
- Pacientes com lesão única são colocados em uma categoria própria.
O que são as reações imunológicas da Hanseníase?
Alguns pacientes com Hanseníase podem apresentar reações imunológicas agudas, sobretudo os multibacilares. Essas reações, cujo mecanismo não é 100% compreendido, podem ser de dois tipos principais:
— Reação hansênica tipo 1 ou reação reversa: é decorrente da melhora das resposta imune celular e se manifesta com aparecimento de sinais inflamatórios nas lesões pré-existentes, podendo ocorrer febre e agravamento da neurite. Pode acelerar o processo de dano neurológico se não for abordada precocemente. É mais comum nas formas clínicas borderline.
— Reação hansênica tipo 2 ou eritema nodoso por hanseníase: se caracteriza pelo surgimento de máculas e nódulos dolorosos que podem evoluir para pústulas e úlceras. Suspeita-se que envolva formação de imunocomplexos e pode ter manifestações sistêmicas, como vasculite, artrite de grandes articulações, orquite e glomerulonefrite. O chamado Fenômeno de Lúcio consiste em lesão necrotizante de pele por vasculopatia, que aparece de forma súbita e implica em risco de morte. É mais comum nas formas clínicas lepromatosas.
O tratamento da reação imunológica tipo 1 (reação reversa) envolve o uso de corticoides sistêmicos, principalmente prednisona, ou dexametasona, por via oral.
Já o tratamento da reação tipo 2 (eritema nodoso hansênico), nas formas mais leves, pode ser feito com o imunomodulador Talidomida, que deve ser associado a prednisona e AAS, para os casos graves.
Como é feito o diagnóstico da Hanseníase?
O diagnóstico da hanseníase se baseia na suspeita clínica, que deve ser investigada por meio de avaliação dermatoneurológica minuciosa, com teste de sensibilidade das lesões, avaliação da sudorese e palpação, percussão e avaliação funcional dos nervos.
Podem ser realizados testes adicionais, como biópsia das lesões na pele para baciloscopia, histopatológico e PCR. A baciloscopia só será positiva nos doentes multibacilares, e, portanto, sua negatividade não exclui o diagnóstico de hanseníase.
Essa avaliação dermatoneurológica deve ser repetida periodicamente durante o tratamento e, até mesmo, alguns anos após o seu término, buscando identificar recidivas.
Como é feito o seu tratamento?
Conforme dito anteriormente, o tratamento da Hanseníase deve ser feito com uma combinação de antibióticos específicos com ação contra M. leprae, o que é chamado de Poliquimioterapia. Isso é necessário, pois, assim como M. tuberculosis, o agente da lepra apresenta uma configuração de parede celular bem diferente das bactérias Gram positivas e Gram negativas, sendo resistente aos antibióticos mais comumente usados em infecções bacterianas.
São 3 as drogas usadas no esquema de tratamento da Hanseníase: Rifampicina, Clofazimina e Dapsona. O esquema é o mesmo, tanto para indivíduos paucibacilares, quanto multibacilares. O que muda é a duração do tratamento e a quantidade de doses administradas.
O esquema único de tratamento da hanseníase é o seguinte:
- Rifampicina em dose mensal de 600 mg (2 cápsulas de 300 mg) supervisionada +
- Clofazimina em dose mensal de 300 mg (3 cápsulas de 100 mg) supervisionada e dose diária de 50 mg autoadministrada +
- Dapsona em dose mensal de 100 mg (1 comprimido de 100 mg) supervisionada e dose diária de 100 mg autoadministrada.
Tabela 1. Esquema único de tratamento da Hanseníase e tempo de duração do tratamento de acordo com a forma clínica.
Para indivíduos paucibacilares, o tratamento é considerado completo quando esse esquema é repetido por 6 meses, não necessariamente seguidos, num espaço de 9 meses. Já para os multibacilares, o esquema deve ser feito por 12 meses, num espaço de 18 meses.
Como podemos perceber, as doses mensais das medicações são supervisionadas, ou seja, devem ser administradas em uma unidade de saúde, na presença de um profissional de saúde, sendo as doses diárias entregues mensalmente ao paciente, para que ele tome em casa.
Em caso de intolerância a algum dos fármacos do esquema, podem ser empregados outros agentes em substituição, como Ofloxacino e Minociclina. Caso, após o tempo preconizado de tratamento, o indivíduo ainda apresente lesões ativas da doença, ele deve ser encaminhado a centros especializados para tratamento especial de Hanseníase.
É importante lembrar que o tratamento é capaz de eliminar o bacilo e terminar a infecção, mas não é capaz de regenerar as lesões de nervos e deformidades que a doença pode ter causado. Sendo assim, é imprescindível o diagnóstico precoce e a instituição do tratamento adequado o mais breve possível, a fim de evitar complicações.
Conclusão
A Hanseníase ainda é uma doença de grande importância epidemiológica em nosso país. É um mal estigmatizante, mas que apresenta tratamento eficaz e deixa de ser transmitida assim que ele é instituído. Por isso, devemos aprender a reconhecer e abordar corretamente os casos de Hanseníase que podem aparecer num ambulatório de dermatologia, neurologia, clínica médica, ou em qualquer cenário de assistência à saúde.
Hanseníase é uma doença infecciosa, contagiosa, mas curável e o diagnóstico e tratamento precoces são nossas melhores armas no seu combate e na superação do preconceito historicamente instituído aos pacientes, que devem ser acolhidos.