Com quase toda certeza você já ouviu falar de um fármaco chamado talidomida. Se tiver um pouco mais de estrada na Medicina, e/ou na vida, certamente conhece. Caso contrário, se é um pouco mais novo e não conhece, nunca ouviu falar, este artigo vai contar um pouco dessa história trágica na Medicina.
Guilherme, e por que eu preciso saber de História da Medicina, e ainda por cima “trágica”? Bom, além de ser cultura médica, curiosidades, conhecer o avanço da Medicina e tudo que já passamos para chegar onde chegamos, contribui para que não cometamos os mesmos erros do passado e também sempre pensemos em perspectivas futuras.
SOBRE O SURGIMENTO DA TALIDOMIDA:
No final dos anos 1950, a talidomida começou a ser comercializada com status de “droga mágica”, principalmente contra náuseas, cefaleia e insônia, especialmente nas gestantes a fim de combater as náuseas intensas e êmese gravídica.
A primeira marca foi a “Contergan” e, rapidamente, tornou-se um dos medicamentos líderes de vendas na Europa e, ainda mais, na Alemanha, país de origem da droga.
Foi desenvolvida pela companhia farmacêutica Chemie Grunenthal, alemã (na época, Alemanha Ocidental). Além dos efeitos citados no parágrafo anterior, a droga também foi testada como anticonvulsivo para pacientes com epilepsia.
No entanto, esse possível efeito foi descartado por se perceber que a droga exercia um efeito ainda mais vantajoso: induzia a um sono natural e prolongado. O produto foi divulgado como “completamente atóxico” e podia ser consumido sem prescrição médica.
A divulgação e a campanha desenvolvida pela Grunenthal foram impressionantes, na época, e logo a medicação estave presente em todos os continentes do mundo, e sendo comercializada em 46 países.
Era uma descoberta e tanto!
Realmente parecia uma medicação salvadora de todos os males, sendo divulgada pela própria empresa como capaz de combater “irritabilidade, baixa concentração, estado de pânico, ejaculação precoce, tensão pré menstrual, medo de ser examinado, desordens funcionais do estômago e vesícula biliar, doenças infecciosas febris, depressão leve, ansiedade, hipertireoidismo e tuberculose.”.
E ONDE ESTÃO OS PROBLEMAS?
Rapidamente, os danos provocados pela droga começaram a surgir: tonturas e neuropatia periférica foram alguns dos sintomas mais precocemente descritos.
OK, GUILHERME! MAS, SE É UMA DROGA TÃO “SALVADORA”, E ESSES EVENTOS FOREM RAROS, DE REPENTE VALE O RISCO! O QUE MAIS ELA CAUSOU / PODE CAUSAR PARA SER CHAMADA DE “TRAGÉDIA”?
Vamos começar este tópico com algumas das descrições que ocorreram na época (edição de 10 de agosto de 1962 da “TIME”): “…bebês continuavam a nascer com focomelia, ou “membros de foca” que pareciam nadadeiras. Relatórios apavorantes continuaram chegando. Até agora… perto de 8.000 bebês nasceram deformados porque suas mães usaram uma pílula tranquilizante para dormir chamada talidomida, [tornando este] o maior desastre de prescrição na história da medicina. Os ossos longos dos braços dos bebês não se desenvolveram e às vezes os dedos brotavam dos ombros.”
Acho que já deu pra imaginar a dimensão do problema, né?
ALGUNS DOS EFEITOS TERATOGÊNICOS:
Foi realmente um terror com o nascimento de muitas crianças com malformações, com impacto para o restante da vida de muitas dessas pessoas. Como exemplos, podemos citar:
– Focomelia (subdesenvolvimento dos membros superiores, muitas vezes com as mãos e pés diretamente conectados ao tórax);
– Mal formação das orelhas;
– Anomalias oculares (microftalmia, anoftalmia);
– Paralisias faciais;
– Cardiopatia congênita (defeitos do septo interventricular, coarctação da aorta, Tetralogia de Fallot);
– Surdez;
– Anomalias de laringe, traqueia e dos pulmões
Além dos citados, uma gama enorme de malformações pode ocorrer: anomalias estruturais dos órgãos genitais, atresia renal, alteração da bexiga.
COMO SE CHEGOU À CONCLUSÃO DE QUE A CAUSA ERA A TALIDOMIDA?
Em 1961, o obstetra australiano William McBride e o pediatra alemão Widukind Lenz estudaram o número crescente de recém natos com “membros de foca” e alertaram que a talidomida era a causa.
A SORTE AMERICANA:
A talidomida, na época, estava sendo comercializada em todo o mundo, e em escala gigantesca. Porém, nos Estados Unidos, a médica Frances Kelsey da Food and Drug Administration (FDA) recusou vários pedidos para aprovar o uso da talidomida em território norteamericano, acreditando que a droga não havia sido testada de forma adequada em mulheres grávidas nem havia provado ser eficaz.
E COMO UMA COISA DESSAS PÔDE OCORRER?
Ao contrário do que temos hoje, a droga não foi testada de forma rigorosa para analisar potenciais efeitos teratogênicos. Após esse episódio, toda e qualquer droga que tenha como objetivo ser comercializada deve passar por testes intensos para avaliar seu potencial teratogênico e riscos para a gestação.
UMA BOA CONSEQUÊNCIA DO FATO:
Como resultado de todo esse desastre, em 1962, os Estados Unidos promulgaram leis exigindo que todas as drogas, antes de sua aprovação, fossem testadas para verificar sua segurança durante a gestação.
ALÉM DESSE, ALGUM EFEITO BENÉFICO DA TALIDOMIDA?
Apesar de toda essa iatrogenia descrita, pesquisadores descobriram, com o tempo, alguns possíveis usos benéficos da medicação, totalmente diferentes dos usos iniciais. É uma droga que pode ser utilizada no tratamento da hanseníase, além de alguns casos de mieloma múltiplo que demonstram certo benefício.
Para que mulheres possam fazer o uso da medicação, atualmente, elas devem ser submetidas a testes periódicos para verificar possibilidade de gestação, além de tomarem todas as precauções para evitar uma possível gravidez.
Após diversos estudos, a talidomida demonstrou ser uma droga com importante efeito de inibição da angiogênese e antinflamatório.
Nos dias atuais, ainda existem estudos para a investigação da ação e possíveis efeitos benéficos dessa droga.