É sabido que o etilismo é um grande problema de saúde pública. Cabe lembrar que o uso excessivo de álcool pode influenciar diretamente no bom funcionamento do aparelho digestivo, embora todos os outros órgãos do corpo humano possam ser – e normalmente são – afetados. Alguns dos órgãos afetados pelo alcoolismo são: sistema nervoso central (com a clássica síndrome de Wernicke-Korsakoff), os músculos esqueléticos, o sistema cardiovascular, sistema endócrino e o sistema hematopoiético.
Além de todas essas alterações sistêmicas, os etilistas crônicos ainda têm uma maior predisposição a desenvolver alguns tipos de câncer, como o câncer de boca, faringe, esôfago, pâncreas, cólon e o carcinoma hepatocelular. Todavia, de todas essas alterações e predisposições, uma das de maior relevância é a hepatite alcoólica.
Fatores de risco
Pacientes com hepatite alcoólica geralmente têm uma história de uso diário pesado de álcool (>100 g por dia) por mais de 20 anos. Em alguns casos, os pacientes terão aumentado recentemente a ingestão de álcool em resposta a eventos estressantes de vida. Nesse sentido, é importante obter um histórico detalhado do uso de álcool, complementado pelo uso dos questionários CAGE ou AUDIT para estabelecer a probabilidade de consumo ou abuso de álcool problemático. Outros fatores de risco são hepatopatias crônicas concomitantes, alguns distúrbios genéticos e desnutrição.
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Patogênese
Mas o que leva o indivíduo a desenvolver o quadro de hepatite alcoólica? Já é sabido que ela se desenvolve pelo uso excessivo e abusivo de álcool e, também, devido a alguns fatores ambientais, como, por exemplo nutrição, coinfecção com o vírus da hepatite B e C, entre outros. O etanol é uma substância que é metabolizada pelos hepatócitos, sendo assim há uma enzima que auxilia no processo de metabolização, que é chamada de álcool desidrogenase (ADH). Essa enzima vai oxidar o etanol e transformá-lo em acetaldeído, que também é convertido posteriormente em acetil-CoA.
É importante lembrar que todo esse processo é responsável pela formação de radicais livres. Além da ADH, que é uma enzima importante no processo de metabolização do álcool em baixas concentrações, há o citocromo P450, principal responsável pela metabolização do álcool em altas concentrações, também conhecido como CYP2E1. Sendo assim, convém-se que os mecanismos responsáveis pela agressão dos hepatócitos na hepatite alcóolica são o estresse oxidativo e as modificações da atividade de algumas proteínas. Relembrando que o estresse oxidativo nada mais é do que um desbalanço entre a quantidade de agentes pró-oxidantes e agentes antioxidantes. Esses radicais livres são responsáveis pela agressão direta ao hepatócito, interferindo com o seu DNA.
Manifestações clínicas e laboratoriais da hepatite alcoólica
Os pacientes podem ser assintomáticos. Quando sintomáticos, os sinais e sintomas incluem:
- Icterícia;
- Anorexia;
- Febre;
- Dor abdominal no quadrante superior direito ou em epigástrio;
- Distensão abdominal;
- Fraqueza muscular proximal.
Ademais, pacientes com hepatite alcoólica grave ou cirrose subjacente podem apresentar sinais de encefalopatia hepática.
O exame físico pode mostrar hepatomegalia e ascite. Além disso, a presença de estigmas de doença hepática crônica sugere doença avançada com cirrose subjacente. Já os exames laboratoriais revelam:
- Elevações moderadas de AST e ALT;
- Relação AST: ALT ≥2;
- Bilirrubina sérica elevada;
- Gama-glutamil transferase elevada;
- Leucocitose com predominância de neutrófilos;
- INR elevado;
- Macrocitose (sugere doença de longa data).
Em relação aos exames de imagem (ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética), pode-se observar alterações gordurosas no fígado, evidências de cirrose subjacente ou ascite.
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Diagnóstico da hepatite alcoólica
As características clínicas e laboratoriais são frequentemente adequadas para estabelecer o diagnóstico de hepatite alcoólica em um paciente com etilismo importante de longa data, desde que o paciente não tenha fatores de risco para outras causas de hepatite aguda. Nesses pacientes, o diagnóstico clínico de hepatite alcoólica se baseia na presença de icterícia, aminotransferases moderadamente elevadas, relação AST: ALT ≥ 2, bilirrubina sérica elevada e INR elevado. Além disso, a presença de febre ou leucocitose corrobora para o diagnóstico.
Em um paciente com doença hepática crônica, o diagnóstico de hepatite alcoólica pode ser difícil. Nesses pacientes, o diagnóstico é feito com base nos achados clínicos e na probabilidade de um diagnóstico alternativo.
Nos casos de dúvida diagnóstica ou diagnóstico inconclusivo pode ser necessário biópsia hepática. Os achados histológicos na hepatite alcoólica são: esteatose (micro ou macrovesicular); balonismo hepatocelular com rarefação citoplasmática; infiltração por neutrófilos ou linfócitos; corpos de Mallory-Denk; fibrose com distribuição perivenular, perisinusoidal e pericelular; colestase; e proliferação do ducto biliar.
Tratamento
Em relação ao tratamento desta condição grave, pode-se dividir em 3 principais blocos: a abstinência alcoólica, o tratamento de suporte e o tratamento com base em medidas específicas.
O simples fato de o paciente com hepatite alcoólica cessar o etilismo pode modificar significativamente o curso da doença, gerando uma melhora no seu prognóstico.
Quanto ao tratamento de suporte, o paciente deve ser internado em unidade hospitalar a fim de realizar uma investigação completa dos órgãos que já foram afetados pelo álcool e avaliar a presença de cirrose subjacente e suas complicações. Além disso, o paciente deve receber suporte nutricional com aporte calórico e proteico adequado, além de uma suplementação vitamínica, pelo fato desses pacientes serem desnutridos na maioria das vezes. Também se faz necessária a identificação e o tratamento de infecções bacterianas secundárias.
Já nas medidas específicas, recomenda-se o uso de corticosteroides, especialmente pacientes com hepatite alcoólica grave. Outro medicamento é a pentoxifilina, indicada para pacientes com contraindicações aos glicocorticoides.
Conclusão
Sabe-se, ainda, que o prognóstico dos pacientes portadores de hepatite alcoólica é ruim e bastante reservado, com taxas de mortalidade em 30 dias em mais de 50% dos pacientes diagnosticados. Nesse sentido, é extremamente importante que medidas de prevenção primária sejam disseminadas na sociedade, impedindo que indivíduos etilistas crônicos progridam para o estágio grave da doença.
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