Vamos para mais um artigo sobre a “História da Medicina”? Vocês já pararam para pensar como seria a vida de muitos pacientes, e até mesmo grande parte da Medicina e da Cardiologia sem o desenvolvimento dos procedimentos de troca valvar?
Muitos afirmam que, com o avançar das tecnologias percutâneas, as cirurgias abertas de troca valvar não terão mais espaço na Medicina moderna. No entanto, acredito que sempre teremos indicações precisas!
O que temos de métodos e de tecnologias hoje sobre este assunto é o resultado de um esforço tremendo de médicos clínicos, cirurgiões, engenheiros que, durante os últimos 50-60 anos, vieram testando diversos modelos de terapêutica intervencionista.
Obviamente o que temos hoje ainda está longe de ser o ideal ou de substituir uma valva nativa, porém é capaz de salvar muitas vidas e melhorar a qualidade de outras tantas.
Encontrar a resolução para os problemas gerados pelas próteses valvares sempre foi e continua sendo o ânimo e o desafio básico dos profissionais que trabalham diariamente com isso, em busca de uma “nova” valva definitiva.
ANTES DE PROSSEGUIRMOS NA NOSSA HISTÓRIA, QUAL O CORRETO? VALVA OU VÁLVULA?
No dia a dia, as pessoas nomeiam das duas formas, sendo mais utilizado o termo “válvula”. Porém, o que pouca gente sabe é que, teoricamente, o mais adequado seria valva para o aparato inteiro, ou seja, “valva aórtica”, “valva mitral”, “valva tricúspide” e “valva pulmonar”.
É meio “esquisito”, né? Mas é isso mesmo! O nome “válvula” estaria correto quando desejássemos nos referir a cada estrutura valvar, como as cúspides.
Na prática, não há certo e errado. Ninguém irá te recriminar por usar um termo ou outro (pelo menos, acredito que não).
QUAIS SÃO AS NOSSAS VALVAS CARDÍACAS?
São quatro! Duas no lado direito e duas no lado esquerdo. Servem, basicamente, para “direcionar” o fluxo sanguíneo para o sentido correto.
. As valvas do lado direito: temos uma valva atrioventricular, que é a tricúspide (separa o átrio direito do ventrículo direito), e a valva pulmonar que se encontra entre o ventrículo direito e a artéria pulmonar.
. Do lado esquerdo: também temos uma valva atrioventricular, a bicúspide (conhecida mais popularmente por mitral) e valva aórtica, responsável por direcionar o fluxo sanguíneo do ventrículo esquerdo para a artéria aorta.
Um detalhe: Você sabe por que a valva mitral é conhecida assim? Vamos para a resposta! Como ela é formada por duas cúspides, que juntas assumem a forma de um chapéu de bispo, conhecido como mitre, o nome ficou valva MITRAL! Até que realmente lembra, não é mesmo!?
DE QUE SÃO FORMADAS AS VALVAS NATIVAS?
Para maiores detalhes, possuímos alguns artigos no nosso blog que falam sobre a anatomia do coração, manobras para avaliar as funções valvares e vários outros temas interessantes!
No entanto, vamos revelar sua constituição básica:
– Valvas atrioventriculares (mitral e tricúspide): formadas essencialmente por um anel fibroso, que serve de arcabouço para suas inserções na transição atrioventricular. Além disso, possuem as cúspides (que dão nome às mesmas), presas por cordas tendíneas aos músculos papilares ancorados na parede ventricular. Histologicamente, as cúspides são constituídas por tecido conjuntivo frouxo, com variável quantidade de colágeno, proteoglicanos e fibras elásticas.
– Valvas semilunares (aórtica e pulmonar): apresentam três válvulas ou folhetos semilunares. Não possuem um anel fibroso tão bem definido como as atrioventriculares.
O CONTEXTO HISTÓRICO DAS PRÓTESES VALVARES E DA TROCA VALVAR:
– Primeira lesão a se pensar em tratar cirurgicamente:
A primeira lesão valvar a ter o tratamento cirúrgico cogitado foi a estenose mitral.
– A ideia inicial:
A ideia de realizar cirurgias e intervenções nas valvas cardíacas teve início em 1902, quando AW Lane sugeriu ao editor do Lancet, ET Shaw, que um indivíduo portador de estenose mitral poderia se beneficiar se uma pequena incisão fosse realizada em seu aparato valvar. No início, essa hipótese foi rechaçada por diversos médicos, cientistas e pesquisadores.
Nas 3 décadas seguintes a essa ideia, os mais variados cirurgiões experimentaram algumas técnicas cirúrgicas.
– A partir de 1945:
A partir do ano de 1945, esses testes experimentais começaram a ser utilizados a fim de abrir a valva mitral estenosada de alguns pacientes. As técnicas consistiam basicamente na secção dos folhetos valvares. Diversos foram os nomes empenhados nessa primeira empreitada: Harken (1948), Bailey (1949), Smith (1950), Brock (1951).
Com todos esses esforços, apesar de poucos pacientes submetidos a essa intervenção, foi se estabelecendo o real valor do tratamento cirúrgico da estenose mitral.
Ainda assim, nos anos 1950, algumas próteses valvares foram idealizadas e experimentadas, tanto nos anéis atrioventriculares de cães quanto em alguns poucos pacientes humanos, sem nenhum sucesso.
– Uma grande reviravolta:
Com o aperfeiçoamento da técnica de circulação extracorpórea (CEC), os primeiros modelos de próteses valvares foram criados e testados, com diversas técnicas, para a correção das insuficiências mitral, tricúspide e aórtica.
Os primeiros “experimentos” das próteses valvares mitrais e aórticas foram realizados em cães. Lamentavelmente, os resultados foram algo desencorajadores no momento inicial, devido à baixa resistência dos animais à CEC, além de outros problemas como a dificuldade de materiais resistentes e com pouca propensão trombótica.
– As primeiras próteses valvares:
Foram idealizadas entre 1957 e 1965, feitas com tecidos sintéticos ou com polímeros plásticos, tendo como modelo as próprias valvas nativas (algumas possuíam até cordas tendíneas!!!).
Dessa época, são as valvas de cúspide única moldadas em plástico e fixada a um anel rígido de “Mylar”, silicone ou aço inoxidável; as cópias da valva mitral com folhetos flexíveis de “Dacron”; “Teflon”; e até mesmo uma valva construída com tecido de pericárdio autógeno.
– A primeira valva com sucesso e seus problemas:
As primeiras valvas implantadas com sucesso e apresentando resultados funcionais também foram realizadas em cães. Eram formadas por uma “bola” de aço aprisionada por uma estrutura rígida de “Teflon” ou de “lucite”.
Em conjunto com esta, estava a valva de “bola” testada por Starr em 1960, constituída oir uma gaiola de “lucite” e uma bola de silicone, além de uma gaiola de “Vitallium”. Esse modelo foi utilizado para a substituição mitral e aórtica de alguns pacientes.
À medida que a bola se movia para frente e para trás devido às mudanças de pressão, ela servia como uma valva unidirecional. Ainda em 1952, o cirurgião americano Charles Hufnagel implantou uma valva de esfera em gaiola em um paciente com lesão valvar aórtica.
As valvas posteriores substituíram a bola móvel por um disco ou por folhetos semicirculares, além da utilização de carbono pirolítico que reduziria a formação de coágulo sanguíneo.
– A sequência:
O uso clínico das próteses se fez por necessidade a partir de 1960. Os resultados, até então, não eram tão animadores e não se tinha conhecimento algum sobre as consequências de tais dispositivos a longo prazo.
Eram estruturas grandes, trombogênicas, forneciam resistência ao fluxo sanguíneo e mantinham gradientes pressóricos transvalvares importantes.
No entanto, na ocasião, as estruturas que existiam (valvas de folhetos plásticos, de bola ou de disco) foram implantadas em pacientes cuja gravidade das lesões tinha como uma possível troca a única possibilidade de sobrevivência.
Durante anos e anos, diversos modelos e materiais foram testados. Todos sem muito sucesso. O início da mudança ocorreu com as primeiras valvas formadas por pericárdio bovino ou suíno, em 1974.
No início, eram produzidas de forma artesanal e, somente posteriormente, começaram a ser fabricadas industrialmente em condições adequadas de esterilização e conservação, e são largamente utilizadas até hoje (as famosas próteses biológicas).
Após diversos aprimoramentos, nos anos 80 começaram a ser utilizadas valvas de disco pivotante, preso a um anel rígido, permitindo aberturas de 50 a 80 graus, em relação ao plano do anel (ex.: Bjork-Shiley, Lillehei-Kaster, Omnicience, Medtronic-Hall e a de Hall-Kaster são exemplos de modelos, alguns até hoje utilizados).
Nesses anos, houve um fluxo enorme de trocas valvares, o que possibilitou uma maior avaliação sobre o desempenho clínico precoce e duradouro das próteses valvares.
– Os anos 1990:
Meio século após as primeiras tentativas de tratar lesões valvares, várias das mais variadas dúvidas sobre o tratamento cirúrgico dessas condições já haviam sido respondidas.
– Dias atuais:
No momento, as técnicas e próteses utilizadas na troca valvar são muito mais rebuscadas do que se foi no passado, como podemos ver. Apesar disso, ainda temos muitos problemas e desafios a serem enfrentados envolvendo a troca valvar.
O fato é que, se bem indicada, a troca valvar pode realmente salvar vidas e fornecer uma qualidade muito maior para os pacientes sintomáticos e sob risco.
Cada vez mais utilizamos e conhecemos técnicas menos invasivas e que podem ser indicadas para um grupo seleto de pacientes com menor taxa de complicações e intercorrências futuras. Essas são as técnicas percutâneas, como a substituição da valva aótica por cateter (mais conhecida como TAVI ou TAVR).
Outra de grande importância, com resultados animadores e sendo minimamente invasiva, é o dispositivo conhecido como “MitraClip” (bem indicada em alguns casos de regurgitação mitral – é como se “grampeássemos” a valva mitral, restando uma pequena estenose valvar).
Há a esperança de cada vez mais dispositivos como esses sejam descobertos e empregados na Medicina. No entanto, acredito que alguns pacientes ainda terão indicações para as próteses valvares tradicionais por intervenção cirúrgica. Fica a esperança da descoberta de novas próteses com menor taxa de complicações.
QUAIS SÃO OS TIPOS DE PRÓTESES VALVARES, SUAS VANTAGENS E DESVANTAGENS EM COMPARAÇÃO UMA COM A OUTRA?
– Próteses biológicas:
. Vantagens: é uma prótese mais “segura” no que diz respeito ao risco de formação de trombos; menor tempo de anticoagulação contínua; tratamento de mais fácil adesão.
. Desvantagens: necessidade de troca da prótese mais precocemente por sofrerem degeneração, com durabilidade variando a depender de qual topografia é implantada (aórtica, mitral), podendo durar de 10 a 15 anos. Dependendo da idade do paciente, isso significa 1 ou 2 reoperações durante a vida.
– Próteses mecânicas:
. Vantagens: mais duradoura do que a biológica, podendo durar por toda a vida, em alguns casos. Portanto, geralmente necessita menos de uma reoperação por desgaste da própria valva.
. Desvantagens: necessita de anticoagulação por toda a vida, e com vigilância intensiva sobre o alvo do INR. Isso possibilita maior falha de adesão, maior carga trombótica do próprio dispositivo, maior taxa de sangramentos como efeitos adversos do anticoagulante.
GUILHERME, ENTÃO QUAL PRÓTESE DEVO ESCOLHER PARA O MEU PACIENTE?
Talvez essa seja uma das principais dúvidas quando o assunto é troca valvar. Muitas vezes tanto para o médico quanto para o paciente. Não há uma resposta totalmente correta, a não ser em raras exceções.
Para chegarmos à resposta mais adequada para o nosso paciente, deve-se levar em conta diversos fatores como: idade, possível sobrevida do paciente, questões socioeconômicas (capacidade de manter de forma correta o tratamento anticoagulante pela vida toda), facilidade de compreender o tratamento proposto, contraindicações a uma prótese ou outra, e várias outras questões que devem ser decididas em conjunto com o paciente.