Um trabalho realizado pela National Adult Tabacco Survey, centro de pesquisa em consumo de tabaco americana, que utiliza dados da CDC, mostrou que, nos Estados Unidos entre 2013 e 2014, o uso de cigarros eletrônicos, conhecidos como vaporizadores (vapes ou e-cigarettes), já correspondia isoladamente a 7% das formas de consumo de nicotina, e seu uso vem crescendo cada vez mais.
Seu uso tem diversas controvérsias na Literatura. Estudos apontam importantes taxas de sucesso em seu uso para aqueles pacientes que desejam parar de fumar, funcionando como uma ponte para tal objetivo. Por outro lado, esses dados ainda não são sólidos na Literatura e sua validade externa ainda é questionável, bem como os efeitos adversos de seu uso a médio e longo prazo também são ainda pouco claros, uma vez que o consumo deste tipo de produto teve seu aumento na última década.
Mas o que é o cigarro eletrônico e a que ele se propõe? Quais as diferenças quando comparado com o cigarro tradicional?
Nos cigarros tradicionais, o tabaco é um dos principais componentes deletérios à saúde e já foi associado a diversas condições de morbidade e mortalidade secundária, levando ao aumento do número de doenças incluindo câncer de pulmão, hipertensão e doença coronariana. A combustão do tabaco é a principal responsável por esses diversos efeitos, uma vez que ela produz substâncias com tal potencial deletérios ao organismo.
Os cigarros eletrônicos surgem nesse contexto. São dispositivos que produzem vapor a partir da energia gerada por baterias e não têm a combustão como uma etapa de seu processo de funcionamento. Os cigarros eletrônicos, a partir de um mecanismo ativado pela sucção, geram calor para vaporizar uma solução (que contém ou não nicotina) a ser consumida pelo usuário. Assim, usuário do cigarro eletrônico pode consumir nicotina sem consumir os demais componentes deletérios, produzidos a partir da combustão do tabaco.
Esta é uma das propostas entre as possíveis terapias de substituição de nicotina, importante passo para aqueles que buscam parar de fumar. Mas seria o cigarro eletrônico a melhor que o adesivo transdérmico ou outras abordagens? O cigarro eletrônico é aquele que mais se aproxima do ato de fumar um cigarro convencional, uma vez que o consumo de nicotina ainda é feito a partir da via inalatória. Assim, os rituais e gestos do hábito de fumar podem ser preservados. Pelo relato de tabagistas, os dispositivos apresentam boa adesão devido a esses fatores, podendo funcionar como um facilitador do processo de parar o consumo do cigarro tradicional.
O cigarro eletrônico parece ser uma proposta promissora para aqueles que querem parar de fumar, não é verdade? Mas existem diversas outras situações que tornam essa primeira ideia controversa. Primeiramente, existem mais de 450 marcas de cigarros eletrônicos disponíveis e mais de 7.500 líquidos para consumo nesses dispositivos. Isso significa que não há consistência entre essas substâncias informando explicitamente seu conteúdo de nicotina ou seus ingredientes. Além disso, a combinação infinita de partes trocáveis entre os dispositivos interfere ainda mais na exposição do usuário, e pode levar a uma série de implicações secundárias a saúde, por variações na composição e na forma de entrega do vapor. Entre marcas e modelos da mesma marca, foram observadas variações no desempenho, incluindo a força da inalação necessária para o uso e a densidade do aerossol produzido.
Apesar do consumo da fumaça pela combustão do tabaco não estar presente nos cigarros eletrônicos, o processo de extração de nicotina da folha do tabaco, necessário para a produção dos líquidos de consumo pelos vapes, gera outras substâncias deletérias como anatabina, betanicotirina, cotinina, miosmina, nicotina-N-óxido, nornicotina e anabasina. Nas terapias de substituição de nicotina (como o adesivo transdérmico), as concentrações desses componentes são reguladas, o que não ocorre com os líquidos que abastecem os cigarros eletrônicos. As nitrosaminas específicas do tabaco, produzidas durante a sua combustão e pelo processo de extração de nicotina, são cancerígenas e também foram encontradas nos cigarros eletrônicos em níveis muito inferiores aos dos cigarros convencionais. O dietileno glicol, que é uma substância bastante prejudicial à saúde, foi encontrado em pelo menos 15 cartuchos de cigarro eletrônico testados pelo FDA. Além disso, foram encontrados, em alguns desses cartuchos, concentrações 20% maiores de nicotina do que aquelas relatadas pelo fabricante, bem como também foi encontrado nicotina naquelas soluções ditas sem nicotina.
E para nos ajudar ainda mais a avaliar ponderações sobre o uso dos vaporizadores, a The New England Journal of Medicine lançou recentemente (20 de setembro de 2019) uma publicação com dados alarmantes. Sua publicação faz um alerta preocupante quanto ao uso desses dispositivos, trazendo dados de vigilância digital em tempo real a respeito de doença pulmonar induzida por cigarro eletrônico nos Estados Unidos.
Em seu texto, os dados epidemiológicos são os mais impressionantes. Os dados online coletados de fontes incluindo relatórios de testemunhas oculares e alertas oficiais validados foram selecionados e classificados por caso, local e horário, incluindo dados de casos suspeitos e confirmados de doença pulmonar grave, pelo uso de vapes, desde fim de julho de 2019 até então. Os números vão de 8 casos, em julho de 2019, a 908 casos, em setembro de 2019, distribuídos nos mais diversos estados do país. Esses achados destacam uma epidemia emergente, embora os casos até então definidos provavelmente resultem em uma subestimação da verdadeira importância dessa doença, que precedeu o primeiro caso documentado em julho de 2019 e, a partir de então, teve maior número de diagnósticos e associação com o uso do cigarro eletrônico.
A doença pulmonar grave, associada ao uso dos cigarros eletrônicos, pode se apresentar de forma aguda, com sintomas como dispneia, taquipneia, tosse, dor torácica, sintomas gastrointestinais como náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal.
Uma fisiopatologia bem definida desses casos de doença pulmonar permanece desconhecida. As possíveis causas incluem formação de aerossóis de compostos aromatizantes dos cartuchos dos cigarros eletrônicos, a adulteração de dispositivos com óleos ou vitamina E à base de tetra-hidrocanabinol (THC), principal substância psicoactiva encontrada nas plantas do gênero Cannabis, ou o uso de cigarros eletrônicos não autorizados para a comercialização.
De forma concreta, o que sabemos hoje sobre o uso dos vaporizadores é bastante escasso. Entretanto, a crescente popularidade e o uso predominante de cigarros eletrônicos, comercializados como uma alternativa mais segura ao fumo, tornam-se uma preocupação, por não condizerem com uma verdade absoluta, podendo inclusive, de maneira oposta, representar uma ameaça à saúde pública. Os resultados deste relatório sugerem que a presença do vapor produzido pelos vapes nos pulmões podem causar doença grave de forma aguda e subaguda, atingindo inclusive proporções epidêmicas, com perspectiva de aumento da incidência de casos como estes.
Sendo assim, é necessária uma vigilância adicional para monitorar a evolução e a disseminação de surtos relacionados ao vaping. Ademais, é importante que estudos adicionais sejam realizados para que possamos compreender quais são as consequências do uso crônico destes dispositivos a médio e longo prazo. Hoje, apesar dos cigarros eletrônicos consistirem em possíveis estratégias para o abandono do tabagismo, não há dispositivos aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration) para uso como terapia de substituição de nicotina. Portanto, faz parte da prática médica a orientação adequada quanto aos riscos associados ao uso desse tipo de produto aos nossos pacientes.