O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença crônica autoimune cuja etiologia não é totalmente conhecida, e que é diagnosticada essencialmente com base na anamnese, exame físico completo e exames laboratoriais.
Estima-se que a doença resulta da interação de fatores genéticos, hormonais, ambientais e infecciosos que levam à perda da tolerância imunológica, com produção de anticorpos.
Portanto, pessoas que nascem com susceptibilidade genética para a doença, em algum momento, após uma interação com fatores ambientais (irradiação solar, infecções virais ou por outros microorganismos), passam a apresentar essas alterações imunológicas.
Diante disso, o lúpus constitui um desafio para quem diagnostica e trata, desafio esse que envolve diferentes especialistas da Medicina Interna, visto que é uma doença pleomórfica, com ampla variedade fenotípica de apresentação, gravidade e curso clínico, o qual evolui habitualmente com períodos de atividade e remissão.
Devido à grande variedade de apresentações clínicas, diferentes sinais e sintomas que podem representar manifestações iniciais da doença, critérios diagnósticos foram estabelecidos para auxiliar os médicos no diagnóstico da doença.
Além disso, é um tema importante para as provas de residência médica.
Qual a importância do conhecimento dos critérios diagnósticos do lúpus?
A incidência estimada em diferentes locais do mundo é de aproximadamente 1 a 22 casos para cada 100.000 pessoas por ano, e a prevalência pode variar de 7 a 160 casos para cada 100.000 pessoas.
No Brasil, estima-se uma incidência em torno de 8,7 casos para cada 100.000 pessoas por ano, de acordo com estudo epidemiológico realizado na região nordeste.
A maioria dos pacientes tem um curso relativamente benigno, porém, a sobrevida global é menor quando comparada à da população geral.
A mortalidade no LES segue um padrão bimodal:
– Nos estágios iniciais, a morte é causada principalmente pela infecção, seguida pela atividade renal ou do sistema nervoso central (SNC) – grave
– Nos estágios mais avançados da doença, há aumento na mortalidade por doenças cardiovasculares associadas à aterosclerose, parcialmente relacionadas com a corticoterapia e com a inflamação crônica
A mortalidade dos pacientes com LES é cerca de 3 a 5 vezes maior do que a da população geral, e está relacionada à atividade inflamatória da doença, especialmente quando há acometimento renal e do sistema nervoso central (SNC), ao maior risco de infecções graves decorrentes da imunossupressão e, tardiamente, às complicações da própria doença e do tratamento, sendo a doença cardiovascular um dos mais importantes fatores de morbidade e mortalidade dos pacientes.
Quem geralmente é mais acometido pela doença?
Ainda que possa ocorrer em qualquer idade, raça e sexo, o lúpus acomete principalmente mulheres jovens, entre os 20 e 45 anos, com maior incidência por volta dos 30 anos.
Afeta de 10 a 12 vezes mais o sexo feminino que o masculino.
De acordo com a cartilha sobre Lúpus feita pela Sociedade Brasileira de Reumatologia, as estimativas indicam que existam cerca de 65.000 pessoas com lúpus no Brasil, sendo a maioria mulheres.
Acredita-se assim que uma a cada 1.700 mulheres no Brasil tenham a doença.
Como exemplo, em uma cidade como o Rio de Janeiro teríamos cerca de 4.000 pessoas com lúpus e, em São Paulo, aproximadamente 6.000.
KEYPOINTS DA CLÍNICA DO LÚPUS
Fadiga é uma das queixas mais prevalentes do LES em atividade.
Febre é verificada na maioria dos pacientes no momento do diagnóstico, geralmente moderada e com resposta rápida ao glicocorticóide, perda de peso, mialgia e linfadenopatia reacional periférica também são sintomas comumente encontrados em paciente com LES.
Depois desses sintomas constitucionais, o envolvimento musculoesquelético é a manifestação mais frequente, sendo detectado em 90% dos pacientes durante a evolução da doença.
Artrite, artralgia, mialgia, perda de massa óssea com aumento do risco de osteoporose e fraturas associada com uso crônico de glicocorticoide e deficiência de vitamina D decorrente da baixa exposição solar, osteonecrose (necrose asséptica de múltiplas articulações, principalmente da cabeça do fêmur, pode ocorrer em pacientes em uso de GC em dose elevada por longos períodos além de pacientes com SAF).
O envolvimento dermatológico é comum e pode ser bastante variado. Fotossensibilidade após exposição à radiação solar ou artificial (por lâmpadas fluorescentes ou halógenas) é encontrado na maioria dos pacientes, alopecia não cicatricial, lesões cutâneas agudas (rash malar, lúpus bolhoso, NET-like), subagudas (lúpus psoriasiforme, anular policíclico rash discoide, lúpus bolhoso), crônicas (lúpus discoide, lesões de mucosa, profundo, verrucoso/hipertrófico, túmido, chillblain).
A pericardite é a manifestação cardiológica mais comum, podendo ser clínica ou subclínica e ocorre em até 55% dos pacientes, a miocardite está frequentemente associada à pericardite e ocorre em 25% dos casos.
A endocardite de Libman-Sacks é caracterizada por lesões verrucosas, localizadas especialmente nas valvas aórtica e mitral, sendo descritas em até 43% dos pacientes.
Renal: Hematúria e proteinúria são persistentes são os achados mais observados. Nefrite lúpica pode cursar com síndrome nefrítica ou nefrótica, consumo de complemento, positivação do antiDNA nativo e, nas formas mais graves, trombocitopenia e perda de função renal.
Os sintomas psiquiátricos podem ser divididos em eventos causados por danos imunomediados no SNC, ou primários e por repercussão da doença em outros órgãos ou complicações terapêuticas.
Cefaleia refratária a analgésicos comuns, crises convulsivas, psicose, acidente vascular encefálico, polineuropatia periférica, mononeurite múltipla, mielite transversa.
Envolvimento pulmonar ou pleural ocorre em 50% dos casos dos pacientes. A pleurite é a manifestação mais comum derrame pleural de pequeno a moderado volume, geralmente bilateral.
Acometimento do parênquima pulmonar pode ocorrer, mas é raro. Caso esteja presente, deve-se investigar a associação com outras doenças reumatológicas, como esclerose sistêmica e miopatias inflamatórias.
Hipertensão arterial pulmonar pelo LES é rara; quando há hipertensão pulmonar, deve-se investigar a presença de TEP crônico associado à SAF secundária ou associação com outras doenças, como esclerose sistêmica.
Os sintomas gastrointestinais podem ser causados pelo uso crônico de AINES e corticoide, e podem levar à doença ulcerosa péptica. Acometimento hepático é muito raro.
Casos raros de pseudoobstrução intestinal crônica (CIPO) pelo LES vêm sendo descritos. As manifestações GI podem resultar de vasculite intestinal ou diminuição da motilidade intestinal.
Além disso, pode haver pancreatite resultante de LES ou talvez do tratamento com altas doses de corticoides e/ou azatioprina.
As manifestações podem incluir dor abdominal resultante de serosite, náuseas, vômitos, sintomas de perfuração intestinal e pseudo-obstrução
O envolvimento hematológico inclui leucopenia (geralmente linfopenia, com < 1.500 células/μL), anemia (hemolítica autoimune) e trombocitopenia (algumas vezes, trombocitopenia autoimune de tratamento contínuo).
A trombose venosa ou arterial recidivante, trombocitopenia e alta probabilidade de complicações obstétricas ocorrem em pacientes com anticorpos antifosfolipídicos.
EXAMES PARA DIAGNÓSTICO
• Hemograma
completo com contagem de plaquetas;
• Contagem de
reticulócitos;
• Teste de Coombs direto;
• Velocidade
de hemossedimentação (VHS);
• Proteína C reativa;
•
Eletroforese de proteínas;
• Aspartato-aminotransferase
(AST/TGO);
• Alanina-aminotransferase (ALT/TGP);
•
Fosfatase alcalina;
• Bilirrubinas total e frações;
•
Desidrogenase láctica (LDH);
• Ureia e creatinina;
•
Eletrólitos (cálcio, fósforo, sódio, potássio e cloro);
•
Exame qualitativo de urina (EQU);
• Complementos (CH50, C3 e
C4);
• Albumina sérica;
• Proteinúria de 24 horas ou
relação proteína/creatinina;
• VDRL;
• Avaliação
de autoanticorpos (FAN, anti-DNA nativo, anti-Sm, anticardiolipina
IgG e IgM, anticoagulante lúpico, anti-La/SSB, anti-Ro/SSA e
anti-RNP).
AUTOANTICORPOS
Fator Antinuclear (FAN) Teste de screening (Sensibilidade = 95-98%). Baixa especificidade.
Anti-dsDNA : Alta especificidade, baixa sensibilidade. Relação com atividade de doença, principalmente renal.
Anti-Sm : Maior especificidade, porém baixa sensibilidade.
Anti-Ro (SSA) / Anti-La (SSB) Associação com lesões cutâneas subagudas e crônicas, síndrome de Sjögren e lúpus neonatal.
Anti-P ribossomal : Relação com psicose lúpica.
Anti-beta2-glicoproteína I IgM, IgG e IgA : Relacionada a síndrome do anticorpo antifosfolipídio.
Anticardiolipina IgM, IgG e IgA : Relacionada a síndrome do anticorpo antifosfolipídeo.
Anticoagulante lúpico Relacionada a síndrome do anticorpo antifosfolipídeo.
Anti-histona : Presente em 70% dos LES. No lúpus farmacoinduzido, deve estar obrigatoriamente presente (100% dos casos).
Teste de Coombs Direto : Denota hemólise imunomediada.
Exames radiológicos são indicados na suspeita de alterações (derrame pleural, doença pulmonar intersticial, vasculite, síndrome do anticorpo antifosfolipídeo).
Ecocardiograma é indicado para avaliação de acometimento valvar e o espessamento valvar é a alteração mais encontrada. Também indicado para avaliação de hipertensão pulmonar, derrame pericárdico / pericardite, endocardite de Libman-Sacks.
RNM de Crânio: Indicado para avaliação neurolúpus, vasculite em SNC ou acidente vascular encefálico.
Outros exames
Artrocentese: Indicada, principalmente, para alívio em pacientes com derrame articular importante. Se monoartrite, o líquido sinovial deve ser enviado para culturas, visando descartar a possibilidade de artrite séptica.
Punção Lombar: Indicada em vigência de febre e sintomas neurológicos, para exclusão de infecção do SNC. Achados compatíveis com inflamação podem estar presentes durante a atividade de doença no neurolúpus.
Biópsia Renal indicada na presença de:
Creatinina sérica crescente na ausência de outra causa;
Proteinuria maior que 1,0 g na urina de 24 horas ou estimada pelo spot urinário;
Proteinuria maior que 0,5 g na urina de 24 horas associada com hematuria ou cilindros celulares (confirmados em dois testes em curto período de tempo entre eles), na ausência de outras causas.
CRITÉRIOS CLASSIFICATÓRIOS
Com base em evidências emergentes e em contribuições multidisciplinares e internacionais, em 2019, um comitê de direção indicado pela Liga Europeia Contra o Reumatismo (EULAR) e o Colégio Americano de Reumatologia (ACR) desenvolveram novos critérios de classificação para o lúpus eritematoso sistêmico (LES).
Projetado para aumentar a sensibilidade e especificidade de classificação, esses critérios foram indicados para inclusão em estudos e ensaios de pesquisa do LES, e não para fins de diagnóstico. Este relatório foi publicado no Annals of the Rheumatic Diseases (Anais de Doenças Reumáticas).
Foi definido FAN positivo a qualquer momento como critério de entrada obrigatório. Um novo critério clínico, febre inexplicável, revelou-se comum e notavelmente característico para o LES, porém as infecções devem ser suspeitas primeiro principalmente quando a PCR está elevada.
O EULAR / ACR definiu FAN positivo a qualquer momento como critério de entrada obrigatório. Na revisão da literatura, 13.080 pacientes demonstraram FAN ≥1: 80 com sensibilidade de97,8% (variação de 96,8% a 98,5%; IC95%).
Um total de 99,5% dos pacientes com LES precoce eram positivos para FAN. Se o FAN for persistentemente negativo nos pacientes, eles não poderão ser classificados como LES.
Recomendações para critérios aditivos
O EULAR / ACR sugere que o critério não seja contabilizado para a classificação do LES se houver um diagnóstico mais provável do que o LES.
A ocorrência única de um critério é suficiente para contar como LES; onde ocorrem vários critérios, eles não precisam estar presentes simultaneamente.
Para melhorar a sensibilidade, uma classificação do LES requer pelo menos 1 critério clínico. Os critérios são ponderados de acordo com sua contribuição relativa à classificação individual de LES; somente o critério ponderado mais alto em um domínio é contado.
A biópsia renal com nefrite lúpica classe 3 ou 4 carrega mais peso para o LES; este critério, juntamente com a presença de um FAN positivo, pode ser classificado como LES.
Recomendações para domínios e critérios clínicos
Critérios Constitucionais
A febre inexplicada, definida como temperatura> 38,3 ° C, foi contada como um novo critério clínico, pois a febre é comum e bastante característica, especialmente no LES de início recente.
Critérios Hematológicos
O domínio hematológico inclui a presença de leucopenia, definida como uma contagem de glóbulos brancos <4,0 × 109 / L pelo menos uma vez, trombocitopenia, definida como uma contagem de plaquetas <100 × 109 / L; e hemólise autoimune, definida como evidência de reticulocitose, baixa haptoglobina, bilirrubina indireta elevada ou desidrogenase de lactato e teste de Coombs positivo.
Critérios neuropsiquiátricos
Manifestações neuropsiquiátricas do LES foram adicionadas nos critérios de classificação do SLICC de 2012; as definições de doença foram refinadas para incluir delirium, psicose ou convulsão nas recomendações EULAR / ACR de 2019, e foram avaliadas quanto à sua sensibilidade.
Critérios Mucocutâneos
Da mesma forma, manifestações mucocutâneas também foram adicionadas aos critérios de classificação do SLICC de 2012. O EULAR / ACR melhorou a sensibilidade dos critérios existentes, refinando as definições de manifestações mucocutâneas para incluir alopecia não cicatricial, úlceras orais, lúpus cutâneo ou discoide subagudo e lúpus cutâneo agudo.
Critérios serosais
Os critérios no domínio seroso incluem derrame pleural ou pericárdico e pericardite aguda definida por imagem (ultrassonografia, raio-x, tomografia computadorizada ou ressonância magnética) e / ou evidência clínica.
Critérios músculo-esqueléticos
O envolvimento articular, definido como sinovite envolvendo 2 ou mais articulações caracterizadas por edema ou derrame articular, ou como sensibilidade em 2 ou mais articulações com pelo menos 30 minutos de rigidez matinal, apresentou maior sensibilidade e especificidade combinadas em comparação com a definição de artrite como sinovite de 2 ou mais articulações.
Critérios Renais
Manifestações renais incluídas nos critérios de classificação do LES são presença de proteinúria> 0,5 g / 24 horas, biópsia renal classe 2 ou 5 nefrite lúpica e biópsia renal classe 3 ou 4 nefrite lúpica.
O objetivo era aumentar a sensibilidade à alta sensibilidade dos critérios SLICC, e uma histologia renal significativa na presença de FAN positivo é suficiente para classificar um paciente como LES.
O EULAR / ACR recomenda o uso da positividade do FAN como critério de entrada.
Os novos critérios de classificação demonstraram excelente sensibilidade e especificidade em comparação com a sensibilidade e especificidade dos critérios do ACR 1997 e SLICC 2012 para a classificação do LES.
Excelente artigo, meus parabéns. Muito completo e didático. Serviu como referência nos meus estudos. Abraço.
Ficamos lisonjeados com os seus elogios!
Parabéns pelo artigo. Só senti falta da referência bibliográfica.
Obrigado pelo comentário, Claudio! Pedimos perdão pela ausência de uma referência bibliográfica. Não costumamos colocar mesmo não em nosso artigos. Por isso, agradecemos pela sugestão!