A doença de Wilson (DW) é uma doença autossômica recessiva, causada por uma mutação do gene ATP7B, resultando em metabolismo anormal do cobre. Em termos gerais, as principais características clínicas da doença incluem o acometimento hepático, a presença de distúrbios neurológicos, a vigência dos anéis Kayser-Fleischer (K-F) e a osteoporose.
Em termos de prevalência, sabe-se que a doença consiste em um acometimento raro. Prova disso é que você dificilmente já presenciou muitos pacientes com esse diagnóstico, exceto em serviços especializados e de referência no assunto. Ainda vale a pena mencionarmos que a prevalência da Doença de Wilson (DW) na China é maior do que nos países ocidentais.
Já no que se refere a uma visão geral sobre o diagnóstico, sabe-se que o diagnóstico precoce e o tratamento ao longo da vida levam a melhores resultados. Nesse contexto, orientações alimentares, como evitar consumo de mariscos, de nozes, de cogumelos chocolate, dentre outros produtos, bem como a introdução de tratamento medicamentoso devem ser criteriosamente analisados e o paciente deve ser instruído. Ainda, alguns estudos mostraram que a combinação de medicina tradicional chinesa e medicina ocidental é a melhor abordagem para o tratamento da DW. No entanto, é nítida a necessidade de identificação de melhores tratamentos e de mais estudos com o objetivo de aprimorar as opções de tratamento.
Você já ouviu falar na Doença de Wilson? Já ouviu falar sobre os tais anéis de Keyser Fleisher? Se a sua resposta for sim, vem com a gente entender melhor sobre essa doença! Caso contrário, está na hora de ler um pouco sobre uma patologia que, apesar de rara, tem grande importância no aprendizado clínico e achados muito interessantes. Vamos lá?
Introdução
A doença de Wilson (DW), a qual também é com frequência denominada “degeneração hepatolenticular”, é uma doença de caráter autossômico recessivo que interfere no processo de metabolização do cobre (Cu), devido a uma mutação do gene ATP7B. Ao contrário do que muitos pensam, essa doença não foi descoberta há tão pouco tempo. Na realidade, a Doença de Wilson foi identificada pela primeira vez por Wilson já em 1912. Interessante, não é mesmo?
Mais interessante ainda é sabermos que, na época, Cheng relatou os dois primeiros casos de pacientes portadores da doença na China, país onde, como dissemos anteriormente, está concentrado uma maior prevalência de casos, quando comparado ao que temos no ocidente. No entanto, mesmo já existindo esses relatos, foi apenas após a década de 1950 que a pesquisa sobre a DW começou a surgir e a desenvolver. Somado a isso, observou- se aumento expressivo do número de casos relatados nos países ocidentais.
O que causa a doença? Quais são os genes envolvidos?
O gene relacionado ao acometimento pela Doença de Wilson (DW) está localizado no cromossomo 13q14-21. Mais especificamente, esse gene ATP7B codifica uma ATPase do tipo P, que participa da síntese de ceruloplasmina e da excreção de cobre. Nesse sentido, podemos dizer que o gene ATP7B codifica um canal intracelular de cobre, que tem papel fundamental no transporte deste mineral pelo nosso organismo. Esse canal tem como função principal possibilitar o acoplamento do cobre à ceruloplasmina (também conhecida por ferroxidase ou ferro(II): oxigênio oxidorredutase), a qual, por sua vez, consiste em uma α-2-globulina sintetizada no parênquima hepático, que atua no transporte do cobre às diferentes regiões do corpo. Acredita-se que a ausência de cobre ligado à ceruloplasmina deixe a molécula menos estável, sendo o motivo pelo qual o nível circulante desta glicoproteína nos pacientes com Doença de Wilson está reduzido.
Além disso, o canal intracelular de cobre codificado pelo gene ATP7B possui a função primordial na remoção do cobre das células do fígado. Dessa maneira, o funcionamento inadequado do canal de cobre em questão, decorrente de mutações genéticas, promove dois eventos principais. O primeiro consiste no comprometimento da ligação do cobre com o seu transportador ceruloplasmina, o que provoca, como consequência, depósito anômalo do mineral em diferentes órgãos e tecidos. O segundo evento digno de nota decorre do fato de que, nesse ínterim, as células do fígado – que são as responsáveis pela eliminação do excesso de cobre do organismo através da bile – não conseguem suprir esta função de maneira adequada e também acabam por acumular o mineral. Por sua vez, o depósito/acúmulo anômalo de cobre promove disfunção dos diferentes órgãos e, consequentemente, os sintomas clínicos.
Epidemiologia
A doença de Wilson nos países ocidentais
Sternlieb e Scheinberg inicialmente estimaram a incidência de Doença de Wilson em 5 / 1.000.000, em 1968, sendo essa doença, portanto, um distúrbio raro. De 1949 a 1977, Bachman et al. estudou a DW em Leipzig, na Alemanha, e calculou que a prevalência de WD era de 29 / 1.000.000 de nascimentos. Já em 1981, Saito relatou que a prevalência da patologia em questão era de 33 / 1.000.000 de nascimentos.
E os estudos de prevalência não pararam por aí. Em 1991, Park et al. tentaram determinar a prevalência de DW na Escócia, examinando registros hospitalares computadorizados, resultados de pesquisas e atestados de óbito. Eles identificaram 21 pacientes com WD em uma população de 5.090.700, para uma prevalência de 4 / 1.000.000. Ainda, em 1993, Reilly et al. usaram uma abordagem metodológica semelhante para determinar a prevalência de WD na República da Irlanda e identificaram 26 casos em um período de 19 anos. Pacientes em 5 desses casos morreram antes de serem formalmente diagnosticados.
Entre 1950 e 1969, a taxa de natalidade ajustada de indivíduos com DP era de 17 / 1.000.000, o que equivalia a uma frequência gênica de 0,41% e a incidência de heterozigotos era de 0,82%. A fim de explicar o maior nível de parentesco, a frequência do gene foi modificada para 0,36% e a incidência de heterozigotos foi modificada para 0,72% para fornecer uma estimativa mínima da doença.
O sequenciamento do ATP7B em 1.000 participantes do controle no Reino Unido permitiu que a frequência de um indivíduo carregando dois alelos ATP7B mutantes fosse estimada em 1 / 7.026. A mutação mais comum na Europa e na América do Norte é a p.H1069Q.
A doença de Wilson na Ásia
A OMS estima que a prevalência global da DW é de 1 / 10.000 a 1 / 30.000, sendo a prevalência da doença maior na China do que no Ocidente. Desde a primeira estimativa da Doença de Wilson, em 1968, um progresso considerável foi feito na China. Cheng et al. realizou duas pesquisas consecutivas em três municípios da província de Anhui (condados de Jinzhai, Hanshan e Lixin). Um total de 153.370 indivíduos foram examinados, e 9 indivíduos com DW foram identificados.
Nesse contexto, três desses indivíduos apresentavam sintomas neurológicos, 1 apresentava sintomas hepáticos, 1 apresentava sintomas hepáticos e neurológicos, e os 4 pacientes restantes apresentavam outros sintomas. Dos 8 indivíduos nos quais foram detectadas mutações genéticas, 7 tinham mutações no gene ATP7B. O outro indivíduo não teve uma mutação ATP7B, mas seus resultados de testes bioquímicos de cobre preencheram os critérios diagnósticos para a Doença de Wilson.
Ainda nesse estudo, a incidência de DW foi de 1,96 / 100.000 e a prevalência foi de 5,87 / 100.000. Em todos os casos identificados, o diagnóstico baseou-se em características clínicas, parâmetros bioquímicos e presença de anéis de Kayser-Fleischer (K-F). No entanto, aqui presenciamos uma limitação: dado que os anéis K-F podem estar ausentes, os pacientes podem ser assintomáticos, mas têm outras anormalidades bioquímicas comuns, como as limitações técnicas dos níveis de rastreamento e as diferenças de especialização entre os médicos. Assim, a prevalência real de DW pode ser subestimada. De acordo com uma análise de haplótipos de 660 participantes em Hong Kong, a incidência de WD entre chineses foi estimada em 1 / 5,400, o que indica que a taxa de mortalidade média de pacientes chineses com Doença de Wilson é maior do que na população americana ou europeia.
Além disso, é importante mencionarmos que, em uma pesquisa com 500 participantes coreanos saudáveis, a prevalência de Doença de Wilson foi menor que 1/3000 e a frequência de portadores foi de 1/27. A epidemiologia molecular do ATP7B nessas populações também foi confirmada pelo fato da doença ser mais prevalente em asiáticos do que em caucasianos. Enquanto a mutação mais comum na Europa e na América do Norte é a p.H1069Q, a mutação mais comum na Ásia é a p.Arg778L.
Aspectos clínicos
Nesse momento, você deve estar ansioso querendo conhecer as manifestações clínicas dessa doença, não é mesmo? Então vamos direto ao ponto e falar sobre o que você estava esperando… Como fazer para identificar achados compatíveis com a patologia no seu paciente? Quais dados são relevantes para que se tenha a doença de Wilson como uma hipótese diagnóstica?
As manifestações clínicas da Doença de Wilson devem-se, principalmente, ao acometimento hepático e do sistema nervoso central, os quais são extremamente variáveis. Caso não haja tratamento e acompanhamento adequados, a doença pode evoluir com quadros graves de insuficiência hepática, doença neuropsiquiátrica, falência hepática e até mesmo levar ao óbito.
Uma revisão dos registros médicos de pacientes com DW no Hospital Shengjing de 1993-2001 indicou que 20,3% (27/133) tinham sintomas neurológicos no diagnóstico, e 69,9% (93/133) tinham sintomas hepáticos no momento do diagnóstico. Os sintomas hepáticos são principalmente disfunção hepática, incluindo hepatite aguda ou crônica, cirrose, encefalopatia hepática e hepatite fulminante. No entanto, os pacientes sem manifestações neurológicas podem ser diagnosticados erroneamente. De acordo com um dado, apenas 33,1% (44/133) dos pacientes foram diagnosticados corretamente quando vistos inicialmente.
As manifestações hepáticas
De forma resumida, observa- se que as manifestações hepáticas podem variar de um quadro assintomático até cirrose descompensada. Alguns casos podem se apresentar como hepatite fulminante.
Manifestações clínicas do sistema nervoso central
O acometimento do sistema nervoso central (SNC) pode, em algumas situações, ser a forma de apresentação da doença. Os sinais e sintomas mais frequentes são anormalidades motoras similares às da Doença de Parkinson, incluindo distonia, hipertonia, rigidez, tremores e disartria. Até 20% dos pacientes podem ter sintomas exclusivamente psiquiátricos, os quais são em geral muito variáveis, incluindo depressão, fobias, comportamento compulsivo, agressivo ou antissocial.
Manifestações renais
A Doença de Wilson também pode causar dano renal (o que inclui as possibilidades de nefrocalcinose, de hematúria, de aminoacidúria), hemólise, hipoparatireoidismo, artrite, artralgias, osteoartrose, miocardiopatias e arritmias.
Manifestações oculares: os anéis de Kayser-Fleischer (K-F)
Chegamos em um dos tópicos mais conhecidos sobre o tema e mais cobrados em prova. Sim, isso mesmo, estamos falando dos anéis de Kayser-Fleischer (K-F).Os anéis K-F são um sinal oftalmológico comum e a maneira mais fácil de identificar a Doença de Wilson. Isso porque o tecido ocular oferece uma oportunidade única para observar a deposição de cobre no tecido. Nesse caso, na prática o que se verifica é a formação de um anel avermelhado ou esverdeado ao redor do limbo corneano, sendo, na maior parte dos casos, a deposição de cobre mais acentuada na porção superior e mais baixa na porção inferior.
Nesse contexto, o cobre é depositado na superfície da membrana de Descemet e na superfície das células endoteliais. Em uma série de casos não randomizados, os anéis K-F foram encontrados em 23,1% (12/52) dos pacientes com doença hepática, e um distúrbio neurológico foi encontrado em 100% (11/11).
Nesse sentido, é importante notarmos que, apesar de os aneis de K- F serem um sinal oftalmológico comum, caso os pacientes apresentem sintomas neurológicos evidentes, a ausência de anéis K-F não pode ser usada para descartar o uso de DW. Além disso, a excreção biliar é a principal forma pela qual o corpo reduz a concentração de cobre e, como os anéis K-F são causados pela deposição de cobre, os mesmos também podem ser encontrados em pacientes com colestase crônica. Ou seja, ao contrário do que muitos pensam, eles NÃO SÃO PATOGNOMÔNICOS DE DOENÇA DE WILSON! (Desculpem- me pelo escândalo em caixa alta, mas esse é um conceito que precisa ser fixado). Ou seja, diante da identificação de aneis de Kayser- Fleischer no exame físico, esse deve, portanto, ser diferenciado de outras alterações pigmentadas da córnea não ligada à doença de Wilson, como, por exemplo, a vasta maioria de doenças hepato-biliares que podem causar acúmulo de cobre, corpos estranhos intra-oculares contendo cobre, mieloma múltiplo, entre outras condições.
Adicionalmente, como curiosidade, convém mencionarmos que Li et al. descobriram que os pacientes com anéis K-F desenvolveram sintomas na maturidade e que, se o primeiro médico estiver mal informado sobre a DW, a mesma pode não ser identificada, possivelmente retardando o diagnóstico (daí a importância de estarmos sempre bem informados e atualizados, mesmo para patologias mais raras! Não podemos comer mosca, né?). Além disso, pacientes com anéis K-F apresentaram níveis mais elevados de cobre urinário de 24 h e níveis mais baixos de alanina aminotransferase (ALT).
Manifestações do acometimento ósseo
Em relação ao acometimento ósseo, pacientes com Doença de Wilson têm, em geral, menor densidade mineral óssea e são propensos a osteoporose e fraturas, sendo a osteoartrite uma das manifestações da doença. Dentre os achados ósseos, estão incluídos a osteoporose (a mais comum), a inflamação articular facetária, a osteomalácia, a osteoartrite juvenil, a osteocondrite da coluna vertebral, as fraturas e a ossificação heterotópica.
Como é feito o diagnóstico?
A Doença de Wilson deve ser especialmente considerada em pacientes jovens com sintomas extrapiramidais, nos com doença psiquiátrica atípica e naqueles com hemólise inexplicada ou com manifestação de doença hepática sem outra causa aparente. O diagnóstico é feito pela soma dos achados clínicos e laboratoriais. Nesse sentido, são considerados indicativos da doença, entre outros, a presença de anéis de Kayser-Fleisher na córnea, a detecção de anemia hemolítica com teste de Coombs negativo, a vigência de níveis de ceruloplasmina sérica baixos, bem como a concentração hepática de cobre elevada (acima de 250 mcg/g de tecido hepático seco) e a excreção urinária de cobre elevada (cobre urinário basal de 24 horas acima de 100 mcg).
Os critérios de inclusão
Em relação ao diagnóstico, pontuam características como a presença de aneis de Kayser- Fleischer, detectado no exame por lâmpada de fenda, sintomas neuropsiquiátricos sugestivos (ou ressonância magnética cerebral típica), presença de anemia hemolítica – teste de Coombs negativo, bem como dosagem de cobre urinário alterada na ausência de hepatite aguda, dosagem do cobre hepático quantitativo, rodanina positiva nos hepatócitos (quando o cobre quantitativo não for disponível), dosagem de ceruloplasmina sérica (por nefelometria). Pode-se realizar também a análise das mutações.
Uma visão geral sobre o tratamento
Aqui, não temos como objetivo detalhar o tratamento da doença, mas sim dar uma visão geral sobre o mesmo. Sendo assim, pode-se dizer que o tratamento medicamentoso e transplante hepático são as opções terapêuticas. Também deve ser adotada dieta com baixa quantidade de cobre, principalmente nas fases iniciais da doença. Nesse caso, os alimentos com quantidade mais elevada de cobre são frutos do mar, chocolate, amêndoas, café, feijão, fígado, cogumelos e soja. Contudo, a dieta isoladamente não é suficiente para o tratamento.
O transplante deve ser reservado para pacientes com doença hepática terminal ou fulminante e o tratamento medicamentoso – o qual é baseado na administração de quelantes e sais de zinco – deve ser pensado e adaptado caso a caso. Em relação aos quelantes (como por exemplo a D- penicilamina), esses agem removendo e destoxificando o cobre intra e extracelular, enquanto os sais de zinco diminuem a absorção intestinal de cobre.
Normalmente, o tratamento é iniciado com os quelantes, associados ou não aos sais de zinco (Zn), para a remoção do excesso de cobre depositado. Alguns autores recomendam que, após a remoção deste excesso pelos quelantes, os sais de zinco poderiam ser utilizados em monoterapia para prevenir o reacúmulo do metal. Contudo, esta conduta não é uniforme, pois há relatos na literatura de casos de piora neurológica e de descompensação hepática progressiva refratária à reinstituição do tratamento causadas pela interrupção dos quelantes.
Uma mensagem final sobre o tema
E aí? Conseguiu entender um pouco sobre a Doença de Wilson? Caso se interesse pelo assunto, incentivamos você a mergulhar na leitura dos estudos mais recentes para aprofundamento. Porém, antes de finalizarmos esse artigo, aqui vai uma informação importante: a identificação da doença em seu estágio inicial, e o encaminhamento ágil e adequado para o atendimento especializado, dão à Atenção Básica um caráter essencial para um melhor resultado terapêutico e prognóstico dos casos. E o que isso quer dizer?
Isso que dizer que, independentemente de essa doença ser ou não rara, o nosso conhecimento acerca da mesma é extremamente importante e pode significar a garantia de uma melhor qualidade de vida aos pacientes portadores dessa condição. Portanto, não negligencie. Afinal, o nosso conhecimento – mesmo com as nossas limitações – pode ser surpreendentemente transformador para os nossos pacientes.
Até a próxima!
Texto muito bom!