Introdução
Muitos conceitos, definições e teorias são conhecidos atualmente em psiquiatria. Todavia, como tudo começou? Qual a história da psiquiatria? Será que ela era bem aceita? Se ainda hoje encontramos resistência simplesmente em falar sobre o assunto, imagine cem anos atrás?
Quando um médico indica para se paciente um acompanhamento psiquiátrico, é comum ouvir “Eu não sou louco!”, “Eu não quero ser dopado!” ou “Não preciso de remédio”.
Para compreender o que está acontecendo atualmente, é necessário estudar como ocorreu a “criação”, desenvolvimento e “aceitação” da psiquiatria. Entretanto, quando falamos da história de algo não podemos apenas reproduzir os fatos, conforme enfatizou o pensador Marc Bloc. Deve-se analisar os acontecimentos relacionados, fazendo um estudo crítico e reflexivo sobre a realidade sociocultural da época.
A partir disso, vamos discutir um pouco sobre como se deu a constituição e legitimação social e legal desse conhecimento. Além da apropriação da doença mental como objeto de estudo, institucionalização como prática terapêutica e evolução como um saber específico. Faremos, para tanto uma breve análise dos principais momentos históricos que foram fundamentais para a “construção” da psiquiatria.
Principais momentos históricos:
Psiquiatria antiga e greco latina:
2.000 anos a.C. foi o período estimado dos primeiros registros de patologias psiquiátricas, encontradas em papiros egípcios de Kahun. Acredita-se que o termo histeria (do grego, hystero, matriz, útero) vem da convicção de que o útero seria independente, capaz de se deslocar pelo interior do corpo.
Tal conceito (histeria) foi também descrito por Hipócrates como uma falta de funcionamento sexual. O útero ficaria mais leve e ascenderia para hipocôndrio, coração ou até o cérebro, levando aos sintomas, bem conhecidos hoje em dia, de epigastralgia, dispneia, palpitação e desmaios.
Quanto às formas terapêuticas seguiam um pensamento congruente. Recomendavam o matrimônio para moças e viúvas e o uso de fumegações (administração de medicamentos em partes do corpo através de vapores e fumaças) vaginais com plantas aromáticas para atrair o útero para seu local de origem.
Posteriormente a Hipócrates, outros autores também se posicionaram sobre alguns acometimentos mentais:
Psiquiatria Medieval:
Assim como para as outras ciências, “Idade das Trevas” também foi uma denominação desse período para a psiquiatria. Houve uma degradação desta como ideia de doença mental secundária a causa natural. Voltou-se para concepções mágico-religiosas. Acredita-se que teria sido exercida por magos e feiticeiros até o início da Idade Moderna.
Paracelso e São Tomás de Aquino eram uns dos poucos teólogos da época que defendiam a tese da origem natural das doenças mentais. Havia grande resistência em aceitar que “feiticeiras” e “possuídos” sofressem de uma doença natural, por parte da “demonologia” e da Inquisição. Kramer e Sprenger (1494), padres dominicanos alemães, descreveram um verdadeiro manual de caça às bruxas, em Malleus maleficarum (Martelo dos Feiticeiros). Nele havia relatos de orgias sexuais como método de identificação de hereges e demônios.
Foi um período marcado por exorcismo, intolerância e perseguição aos enfermos mentais e execução em fogueira e incentivo a crueldade, que só no início da Idade Moderna teria fim com a criação dos brutais manicômios.
Primeira Revolução Psiquiátrica – A escola francesa:
A fundação de locais objetivando o cuidado de doentes mentais foi um marco de mudança de paradigma que ocorreu no século XVII. Os indivíduos acometidos por enfermidade da mente passaram a ser reconhecidos como dignos de cuidados médicos, reduzindo o estigma de serem temidos, hostilizados, rejeitados ou, ainda, “possuídos”.
Assim, ocorreu o que habitualmente se chamou de primeira revolução psiquiátrica, onde houve o reconhecimento do doente mental como objeto da psiquiatria através do movimento de fundação dos hospitais psiquiátricos e casas de saúde. Por conseguinte, surgiu o método psicopatológico e a classificação das doenças mentais.
O cenário psiquiátrico europeu sofreu forte influência da escola francesa/“clássica” de Paris até o início do século XX. Ademais, o reconhecimento da enfermidade mental com origem natural levando a efeitos psíquicos, coincidiu com a Revolução Francesa, período no qual o Iluminismo francês pregava os direitos humanos (igualdade, fraternidade e liberdade).
Em 1860, Morel descreveu uma nova doença, por ele denominada de démence précoce, “uma súbita imobilização de todas as faculdades” que acometia principalmente indivíduos jovens. Posteriormente, a partir de Bleuler, tal afecção passou a ser conhecida como esquizofrenia.
Os critérios de Magnan, no final do século XIX, foram adotados e popularizados na França, embasados em três dimensões:
Psiquiatria Alemã:
A escola com foco mais empírico e racionalista da psiquiatria francesa foi gradativamente perdendo espaço para uma nova corrente de ideias fortalecidas nos países de língua alemã, no final do século XIX. O aspecto irracional da tradição romântica alemã, onde o sentimento de contato natureza x valores individuais ganhou maior relevância, considerava a empatia mais importante que a razão, o que possibilitaria, segundo eles, a descoberta dos fundamentos do indivíduo e da sua visão do mundo.
Johann Christian Reil (1759-1813) foi o criador do termo “psiquiatria” e o principal representante da corrente de pensamento filosófica-especulativa. Além desta, havia três outras correntes: ético-religiosa (doença mental como resultado do pecado e da culpa), moralizante (enfermidade mental ligada à vida emocional), e romântica (intuição superior à experiência).
Kraepelin e a segunda revolução psiquiátrica:
O desenvolvimento da psiquiatra na Alemanha teve grande influência de Emil Kraepelin (1856-1926). Ele criou critérios diagnósticos, a partir de “aspectos essenciais”, para os transtornos mentais, desenvolvendo um sistema nosológico baseado no curso natural da doença.
Os esforços nosográficos efetuados por Kraepelin, no início do século XX, expandiram-se além das fronteiras alemãs, influenciando a psiquiatria europeia nesse período, o que ficou conhecido como segunda revolução psiquiátrica.
Ademais, a filosofia também deu significante contribuição à psiquiatria alemã através da figura de Karl Jaspers (1883-1969), que por meio do método fenomenológico sistematizou a psicopatologia. Em sua obra, publicada em 1913 (Psicopatologia Geral), foi defendida a importância da postura do examinador enfatizando a observação clínica dos fenômenos psíquicos, adentrando nas vivências do paciente.
Posteriormente, outros psiquiatras além das fronteiras francesas e alemãs também deram sua contribuição para a psiquiatria: Eugen Bleuler (1857-1939), na Suécia; William Cullen, na Inglaterra; Adolf Meyer e Freud, nos Estados Unidos; dentre outros.
Tratamentos em psiquiatria:
Várias modalidades de tratamento foram propostas em psiquiatria desde a antiguidade. Têm-se registros do uso de ervas e alucinógenos junto com meios físicos, semelhante à psiquiatria biológica praticada nos dias atuais. Todavia, somente no século XX é que tivemos o maior avanço terapêutico nessa área – a psicofarmacologia.
Várias substâncias são descritas desde os primórdios como tendo efeito sobre o sistema nervoso central: álcool, mandrágora, passiflora, beladona, rauwolfia e outras. Além dessas, outras substancias também foram sintetizadas: hidrato de cloral, paraldeído, sulfonal, entre outras.
A tão discutida eletroconvulsoterapia (muito utilizada nas décadas de 1940 e 1950) foi introduzida em 1938 por Cerletti e Bini, que propuseram o possível antagonismo entre a epilepsia e a esquizofrenia, sendo este o ponto de partida desse tipo de terapia. Hoje tem indicação precisa no tratamento das síndromes catatônicas e dos transtornos afetivos.
Os primeiros trabalhos com substâncias químicas psicoativas descritas foram:
OBS: atualmente os benzodiazepínicos se tornaram a classe medicamentosa mais prescrita por médicos de todas as especialidades.
Na área somática, métodos grotescos e até torturantes foram aplicados aos enfermos mentais visando o tratamento ou o controle de seu comportamento social “inadequado”. Cadeiras giratórias, prisões, diferentes tipos de hidroterapia, até complexas engenhocas de eficácia duvidosa foram testadas. Outros tratamentos também utilizados foram a malarioterapia (febre artificial por inoculação de plasmodium) e a insulinoterapia (indução de “choque”/coma hipoglicêmico em pacientes esquizofrênicos).
Quanto à área psicocirúrgica, o neuropsiquiatra português Antônio Egas Moniz, desenvolveu a lobotomia (não mais realizada hoje em dia) como método extremo terapêutico e ficou mundialmente conhecido. Todavia, visto o elevado risco cirúrgico associado e os danos irreversíveis à personalidade e à vida emocional dos pacientes, várias objeções éticas foram feitas.
Psiquiatria atual e perspectivas futuras:
A psiquiatria passou por um período de descrença nos diagnósticos e métodos terapêuticos, em sua real capacidade de auxílio aos doentes mentais e como área de atuação médica. Todavia, o estudo neurobiológico e o avanço das tecnologias de neuroimagem auxiliaram no crescimento e fortalecimento da psiquiatria como a conhecemos.
Atualmente, centenas de milhões de pessoas por ano são acometidas por doenças cerebromentais. Visto esse cenário, é evidente a necessidade de dar continuidade e aprofundar os estudos neurofisiológicos e mentais. Neste âmbito, vários especialistas (neurofisiologistas, neuroanatomistas, geneticistas moleculares, entre outros) estão empenhados em fornecer novos conhecimentos sobre os vários transtornos psiquiátricos existentes.
Assim, a história da psiquiatria é fundamental para entender o contexto psicossocial atual e para aprimorar o atendimento psiquiátrico. Melhoria tanto na parte técnica, quanto nos fatores que interferem no cuidado dos pacientes -problemas sociais, psicodinâmicos e de adesão ao tratamento.
Referências:
Costa, Alex Silva. A Importância Do Ensino De História Nas Escolas E Suas Implicações Na Vida Social. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação. Ano 5 – Edição 2 – Dezembro de 2011 – Fevereiro de 2012.
Louzã Neto, Mario Rodrigues; Elkis, Hélio; et al. Psiquiatria Básica. 2ª edição. 2007.
Vieira, Ana Rosa Bulcão. Organização e saber psiquiátrico. Rev. Adrn. Emp., Rio de Janeiro, 21(4}; 49-58, out./dez. 1981.