Desde muito tempo a perda de sangue já era relacionada à morte. No entanto, precisamos de muitos e muitos anos para que pensássemos o inverso: “Será que a transfusão de sangue seria capaz de salvar vidas?”.
Antes que as hemotransfusões e exames laboratoriais com análise do sangue se tornassem procedimentos de rotina, as descobertas a respeito do sangue avançaram lentamente e as pesquisas sobre o uso terapêutico do mesmo foram uma sucessão de tentativas e erros.
Inclusive, durante um tempo da nossa História, houve a institucionalização da sangria como cura para praticamente todas as doenças. Procedimentos para “afinar o sangue” foram adotados por grandes civilizações do mundo antigo, permanecendo como recomendação médica até depois do Renascimento.
Até o século XVII esse tecido conjuntivo era cercado de uma aura mística, diversas crenças, que “disfarçava” a ignorância da época com relação ao assunto.
A história da hemotransfusão em si é fascinante e marcada por períodos alternados de intenso entusiasmo e períodos de desilusão. “Sua potência total não foi alcançada até a descoberta de grupos sanguíneos e introdução de um anticoagulante satisfatório”, afirma o cirurgião Raymon Hurt.
DE ANTES DO TEMPO BÍBLICO:
“Somente esforça-te para que não comas o sangue, pois o sangue é vida”, diz Deuteronômio, um dos livros do Antigo Testamento. Na verdade, essa concepção de que o sangue era o “fluido da vida” era proveniente de antes mesmo da Bíblia.
MAIAS, ASTECAS, ROMANOS, ENTRE OUTROS:
A ligação do sangue com aspectos espirituais, espetacular, esteve presente em diversas civilizações. Os maias e astecas acreditavam que sacrifícios humanos eram o melhor presente oferecido aos deuses a fim de garantir colheitas abundantes e outras conquistas.
No Império Romano, as batalhas entre gladiadores só terminavam com a morte de um dos oponentes (verdadeiras batalhas sanguinolentas).
“O horror ou a atração pelo sangue sempre estiveram no inconsciente coletivo, que é uma espécie de herança de sentimentos, sensações e imagens compartilhadas por toda a humanidade.” (Dante Marcello Gallian, professor do centro de história e filosofia das ciências da saúde da Unifesp).
O USO DO SANGUE COMO “FORTIFICANTE”:
Lendas sobre bebedores e consumidores de sangue atravessaram o tempo no imaginário popular. Há indícios de que os egípcios, há mais de 3 mil anos, acreditavam no poder de certas pessoas de sugar a força vital e virtudes de outras (geralmente através do sangue).
O escritor irlandês Bram Stoker consolidou um mito literário do vampiro em sua obra Drácula (o vampiro mais famoso de todos os tempos). Bram se inspirou tanto no imaginário primitivo como no personagem real de Vlad III, o Empalador, que viveu no século XV.
Príncipe da Valáquia (uma região da atual Romênia), o conde Drácula cristalizou uma visão sexualizada do vampiro, que se tornou cada vez mais fascinante.
Nos dias atuais, séries como Crepúsculo fizeram um sucesso absoluto contando a história de vampiros mais “modernos”. Ou seja, esse “fascínio” pelo sangue, tanto na área médica quanto na humanidade em geral, não vem de hoje.
OS QUATRO HUMORES:
Com certeza você já ouviu falar dos “quatro humores”, uma tentativa de explicar a fisiologia do sangue e sua relação com algumas doenças. Essa teoria dominou a ciência médica ocidental por mais de 1000 anos, atravessou a Idade Média e chegou até a era moderna.
Com Hipócrates, considerado o pai da medicina, e reforçada posteriormente por Galeno, a teoria se sustentava em uma relação direta do homem com o universo.
Os quatro humores (sangue, a fleuma ou linfa, bile amarela e a bile negra) eram, de certa forma, uma analogia com os quatro elementos naturais (terra, água, fogo e ar). Cada humor exibia uma qualidade (umidade, secura, calor e frio) que definiriam até a personalidade do indivíduo.
Por exemplo, segundo os gregos, indivíduos que eram “sanguíneos” tinha como característica serem mais extrovertidos e cheios de energia, já os fleumáticos mais tímidos e reservados. A saúde seria o resultado do equilíbrio entre os humores.
O INÍCIO DAS TRANSFUSÕES:
Várias transfusões de sangue de animal para animal, assim como tentativas de transfusões de animais para humanos foram tentadas em 1600 na Europa (obviamente não deram certo).
O obstetra inglês James Blundell é responsável pela primeira transfusão bem sucedida entre humanos. Além de iniciar a arte da transfusão em embasamentos científicos, também alavancou o interesse pelo procedimento, que até então era considerado bastante perigoso e inseguro.
Em 1818, Blundell usou diversos doadores para transfundir um homem que sofria com uma neoplasia de estômago (o homem, na época, veio a óbito em 2 dias). Já em 1829, com o uso de uma seringa, ele transfundiu sangue de um marido para a esposa, que se encontrava com complicações hemorrágicas pós parto.
A mulher sobreviveu e representou a primeira transfusão documentada com sucesso. O médico inglês logo percebeu que múltiplas transfusões eram capazes de complicar com problemas renais e morte.
Entre 1825 e 1830, ele obteve sucesso em cinco de dez transfusões e também projetou diversos instrumentos para a utilização no procedimento. Dez anos depois, ajudou o médico Samuel Armstrong Lane, em Londres, a realizar a primeira transfusão total de sangue, em um paciente hemofílico.
A MARCA DE 1900:
Aproximadamente em 1900 o médico austríaco Karl Landsteiner descobriu os tipos sanguíneos A, B e O, e reparou que transfusões entre indivíduos com o mesmo grupo sanguíneo geralmente levavam a procedimentos mais seguros.
O quarto tipo sanguíneo, o AB, foi descoberto alguns anos depois.
UM POUCO MAIS SOBRE KARL LANDSTEINER – DESCOBRIDOR DO SISTEMA ABO:
Como falado no tópico anterior do artigo, em cerca de 1900 Karl Landsteiner, médico austríaco, descobriu o sistema ABO. Karl nasceu em 14 de junho de 1868, na cidade de Baden, na Áustria. Formou-se em Medicina na cidade de Viena.
Suas primeiras pesquisas se centraram na genética do sangue humano, comparando com o de macacos e outros animais. Ele utilizou amostras do seu próprio sangue e de colegas do laboratório para estudar e realizar suas experiências, que entrariam para a história.
Em 1927, enquanto trabalhava no instituto Rockfeller, ele vacinou coelhos contra diversas doenças sanguíneas e descobriu antígenos presentes no sangue humano. Também contribuiu para a identificação do vírus da Poliomielite e também descobriu o fator Rh. Foi dele também a responsabilidade de cunhar o termo “anticorpo”, que utilizamos até hoje.
Graças a descoberta do sistema “ABO”, Karl foi premiado com o prêmio Nobel em 1930. O cientista explico por que algumas pessoas morriam depois de transfusões sanguíneas e outras não, através de diversas combinações de plasmas e hemácias.
Viu que em alguns casos os glóbulos se aglutinavam, formando coágulos. Isso ocorrendo dentro dos vasos sanguíneos interrompia o fluxo de sangue, podendo levar o indivíduo à morte.
O cientista faleceu em 1943, aos 75 anos, na cidade de Nova York (havia se naturalizado norteamericano após se mudar para o país).
O CITRATO DE SÓDIO:
Em 1914, a descoberta do citrato de sódio, uma substância anticoagulante permitiu o armazenamento do sangue por períodos mais longos. Isso seria um grande avanço para a posterior criação de serviços de hemotransfusões e bancos de sangue.
O PRIMEIRO SERVIÇO DE TRANSFUSÃO:
Em 1926, a Cruz Vermelha Britânica instituiu o primeiro serviço de transfusão do mundo.
OS PRIMEIROS “BANCOS DE SANGUE”:
O desenvolvimento da refrigeração elétrica permitiu o surgimento dos primeiros “bancos de sangue” em meados da década de 1930. Alguns dados alegam que um dos primeiros bancos de sangue oficiais da história (na forma mais próxima do que conhecemos hoje) foi fundado pelo médico espanhol Frederic Durán em 12 de Julho de 1949.
Durán foi de extrema importância para a transfusão moderna, sendo precursor da promoção da doação de sangue, além de todo o procedimento, desde o preparo da bolsa de sangue até a beira do leito do paciente.
No entanto, no Brasil, os relatos são que os primeiros bancos de sangue foram inaugurados no início da década de 1940. Em 1941, em Porto Alegre e Rio de Janeiro, sendo o terceiro em 1942, em Recife.
O FATOR RH:
Em 1939, o fator Rh é descoberto (também por Karl Landsteiner) e as complicações decorrentes das hemotransfusões se tornam cada vez mais raras.
UMA GRANDE REVOLUÇÃO – O HLA – ANTÍGENOS LEUCOCITÁRIOS HUMANOS:
Na década de 1960, a identificação dos Antígenos Leucocitários Humanos, presentes nos leucócitos, desvendou o papel desempenhado pelas proteínas de compatibilidade entre o doador e receptor no transplante de órgãos (não é diferente com o sangue.
Isso favoreceu a descoberta de que o principal obstáculo para o sucesso das cirurgias de transplante é a resposta imune do receptor, que pode provocar a famosa rejeição.
A TRANSMISSÃO DE DOENÇAS:
Com a aceleração e difusão da distribuição de hemoderivados, também houve a disseminação de enfermidades transmitidas pelo sangue. Apenas em 1970, ficou evidenciado que o sangue era capaz de transmitir doenças virais como, por exemplo, hepatite (no caso, B e C principalmente). Na década seguinte, seria identificado o HIV.
A propagação das doenças exigiu da comunidade médica que medidas preventivas e mais disciplinadas fossem implementadas no processo de doação e transfusão de sangue. Com isso, houve o aumento do controle dos doadores e da atuação dos bancos de sangue, além de terem sido iniciados testes para a detecção de doenças transmissíveis.
COM O TEMPO E A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA, O SANGUE NÃO ERA MAIS DIVINO NEM ESPIRITUAL, MAS SIMPLESMENTE HUMANO!