Uma das coisas mais legais do meu primeiro ano da faculdade de medicina (do ponto de vista acadêmico) foi aprender a Escala de Coma de Glasgow — em inglês, Glasgow Coma Scale (GCS). Entre tantos conteúdos de anatomia, fisiologia, farmacologia e biofísica, a Escala de Coma de Glasgow era um conceito escancaradamente prático, usado todos os dias no pronto-socorro, tanto pelos acadêmicos e internos, como também pelos chefes do serviço. (Veja a aula sobre a Escala de Glasgow do Jaleko.)
Apesar da onipresença da Escala de Glasgow, tanto nas aulas de semiologia neurológica quanto nos prontos-socorros de cirurgia, existem muitas outras ferramentas utilizadas para avaliar o nível de consciência dos nossos pacientes. Nos centros de terapia intensiva, por exemplo, é muito comum utilizarmos a Richmond Agitation-Sedation Scale (RASS), um escore que vai de -5 a +4 e mede o nível de sedação ou agitação (apesar de na prática o foco ser quase sempre a sedação) do paciente. (Veja a aula sobre a escala de RASS do Jaleko.)
A lista de ferramentas parecidas é quase infindável: Ramsay Sedation Scale, COMFORT, Escala de Coma de Glasgow Pediátrica, Escala de Jouvet, FOUR, SMS etc. Hoje vamos conversar brevemente sobre algumas dessas escalas que medem nível de consciência, sua utilidade prática, e os pontos fortes e fracos de cada uma.
Escala de Coma de Glasgow (ECG)
Provavelmente a mais famosa entre os acadêmicos, porque a aprendemos logo nas primeiras aulas de semiologia. É uma escala focada em déficits: geralmente, partimos da pontuação máxima (15) e retiramos pontos de acordo com os déficits que observamos no paciente. Ao contrário da Richmond Agitation-Sedation Scale, a Escala de Glasgow não mede agitação: um paciente combativo, contido mecanicamente, xingando os funcionários do serviço, e um paciente calmo e colaborativo, ambos terão a pontuação 15 — talvez, dependendo do que o paciente agitado responder às suas perguntas, é possível até que ele perca pontos no quesito “resposta verbal”, o que não quer dizer necessariamente que ele esteja mais perto do coma do que o paciente calmo e colaborativo (pelo menos não antes de lhe ser receitada sua levomepromazina).
A Escala de Glasgow é estruturada na avaliação de três comportamentos: abertura ocular, resposta verbal e resposta motora. O paciente recebe uma pontuação em cada um desses quesitos, e a soma deles é o escore final do paciente. Classicamente, a Escala de Glasgow vai de 3 a 15, sendo 3 um paciente completamente irresponsivo (coma profundo) e 15 um paciente com nível de consciência preservado (calmo e colaborativo ou em mania). (Veja a aula sobre coma do Jaleko.)
Como calcular
Para calcular o Glasgow do paciente, o primeiro a se fazer é checar se não há nada que possa interferir na sua avaliação. Um paciente intubado não terá nenhuma resposta verbal, mesmo que esteja acordado e alerta, e um paciente com hemiplégico pós-AVC pode não obedecer a certos comandos motores, mesmo sem apresentar redução do nível de consciência.
O segundo passo é observar. O paciente entrou no consultório andando e falou “bom dia”, olhando nos seus olhos: Glasgow 15. Você não precisa fazer testes, não precisa pedir para ele levantar o braço ou dizer seu nome: basta observar.
O terceiro passo, agora sim, é estimular. O paciente está na maca da sala de emergências cirúrgicas, após um acidente motociclístico: olhos fechados, sem movimentos, calado. Isso não significa que ele esteja em coma (segure seu tubo!). Ele pode estar simplesmente dormindo. Nesse caso, primeiro use a voz: assim ele pode abrir os olhos, responder perguntas e ouvir seus comandos. Se isso não for o suficiente, use o toque (estímulo físico leve). Se ainda assim o paciente não estiver totalmente responsivo, utilize estímulos físicos mais vigorosos.
Por fim, avalie: dê pontos para cada comportamento do paciente de acordo com a tabela e some as três pontuações (abertura ocular, resposta verbal e resposta motora) para chegar ao escore final. (Veja o site oficial da Escala de Glasgow (em inglês).)
Utilidade prática
Na prática, a Escala de Glasgow é usada para avaliar rapidamente o nível de consciência de qualquer paciente, clínico ou cirúrgico, principalmente no pronto-socorro. Já foi demonstrado que existe uma correlação contínua entre a pontuação na escala e o prognóstico do paciente: quanto mais baixo o escore, maior a mortalidade.
Veja a importância dessa ferramenta: em um paciente politraumatizado, o escore de Glasgow pode indicar ou contraindicar sua intubação (politraumatizado com ECG < 8 indica intubação). Em um paciente febril, o escore de Glasgow pode indicar a abertura do protocolo de sepse (ECG < 15 vale um ponto no Quick SOFA). (Veja a aula sobre diagnóstico de sepse do Jaleko.)
É rápido, objetivo e confiável: dizer que o paciente está em Glasgow 10 ou Glasgow 5 é muito mais útil do que dizer que ele está “sonolento” — que é o que um leigo diria ao ver alguém em Glasgow 10, mas também em Glasgow 5.
A nova escala
Nós já falamos antes aqui no blog sobre a “nova Escala de Glasgow” — a Glasgow Coma Scale Pupils Score (GCS-P). É a mesma velha escala que você já conhece, mas com um item extra: reatividade pupilar.
Funciona assim: você calcula o escore da forma tradicional, somando os pontos de abertura ocular, resposta verbal e resposta motora. Depois, você subtrai pontos de acordo com a não reatividade das pupilas à luz: se estiverem fixas bilateralmente, você tira dois pontos; se estiver fixa apenas em um lado, você tira um ponto; se ambas forem fotorreagentes, você não tira nenhum ponto.
Assim, a nova escala vai de 1 a 15, e não mais de 3 a 15. A GCS-P parece ser útil para identificar os pacientes mais graves entre os pacientes graves — ou seja, pessoas com GCS-P 1 têm pior prognóstico do que aquelas com GCS-P 3, já que a reatividade pupilar pode refletir lesões neurológicas em áreas nobres do sistema nervoso central.
Na vida real, pela minha experiência pessoal, eu diria o seguinte: é importante saber que a nova escala existe, mas o escore tradicional vai entregar as informações que você precisa para abrir um protocolo de sepse ou intubar um politraumatizado. Nos pacientes que realmente precisam de atenção à reatividade pupilar, é importante fazer e descrever esse exame separadamente.
Richmond Agitation-Sedation Scale (RASS)
A escala de RASS é menos usada no pronto-socorro e mais usada na terapia intensiva, e por isso costuma ser menos conhecida entre os acadêmicos. Ao contrário da ECG, em que a pontuação é dividida entre três avaliações específicas que depois são somadas, o escore da RASS é global: o médico observa o paciente e lhe atribui uma nota de -5 a +4, de acordo com sua observação.
Como se poderia imaginar, o RASS 0 é o paciente “normal”: calmo, acordado, respondendo normalmente a estímulos — nem agitado, nem sedado. Pontuações positivas (+1 a +4) são dadas a pacientes superativos, inquietos, combativos, enquanto pontuações negativas (-1 a -5) são reservadas para pacientes sonolentos, sedados ou comatosos.
Como calcular
Assim como a ECG, existe um algoritmo para o cálculo do escore RASS do nosso paciente.
Primeiro, observe. Se o paciente estiver calmo e alerta, o escore é 0. Se o paciente demonstra agitação ou inquietação, dê um escore de +1 a +4, de acordo com a tabela.
Se o paciente não estiver alerta, use a voz. Chame o paciente pelo nome com voz alta e firme e peça que ele olhe nos seus olhos.
- Se o paciente abre os olhos e mantém contato visual por mais de dez segundos, RASS -1;
- Se o paciente abre os olhos e faz contato visual, mas não o mantém por dez segundos, RASS -2;
- Se o paciente reage fisicamente ao chamado (abrindo os olhos ou fazendo outro movimento qualquer), mas não faz contato visual, RASS -3.
Caso o paciente não tenha nenhuma reação à voz, o passo seguinte é o estímulo físico. Primeiro tente balançar o ombro do paciente e, se não houver resposta, faça estímulo de dor esfregando os nós dos dedos no seu esterno.
- Se o paciente apresentar qualquer movimento em resposta ao estímulo, RASS -4;
- Se o paciente não apresenta nenhuma resposta a estímulo verbal ou físico, RASS -5.
Utilidade prática
Apesar de a RASS dar a impressão de ser menos objetiva do que a Escala de Glasgow, porque utiliza uma avaliação global em vez de três avaliações bem definidas, ela é bastante confiável na avaliação de pacientes críticos e prediz mortalidade tão bem quanto a ECG.
O uso de escalas de sedação na terapia intensiva tem impactos positivos para o paciente e para o serviço, incluindo menor tempo de ventilação mecânica e menor uso de sedativos (já falamos sobre isso aqui). No caso específico da RASS, ela tem a vantagem de incluir a análise da agitação, já que a maioria dos pacientes críticos apresenta agitação em algum momento da internação.
Equivalência com a ECG
O escore Richmond e o escore de Glasgow cumprem papéis diferentes e utilizam parâmetros diferentes, e por isso nem sempre é possível converter uma pontuação de uma escala para outra de forma completamente fidedigna. Mas é possível comparar os dois escores e encontrar uma equivalência relativa entre eles:
- RASS 0 a +5 corresponde a ECG 15;
- RASS -1 corresponde a ECG 14 (ou 13);
- RASS -2 e -3 correspondem a ECG 9 a 12 (ou 13);
- RASS -4 corresponde a ECG menor que 8, exceto 3;
- RASS -5 corresponde a ECG 3.
Ramsay Sedation Scale (RSS)
Outro escore famoso é a Ramsay Sedation Scale (RSS), publicada em 1974 pelo Dr. Michael Ramsay. Há quem diga que é a escala de sedação mais usada na prática dos CTIs, apesar de na minha experiência pessoal eu ter visto muito mais a RASS. A RSS é mais simples, mas menos acurada do que a escala Richmond. (Veja a aula sobre sedação do Jaleko.)
A RSS vai de 1 a 6 pontos, e é ainda mais centrada na sedação do que a escala de RASS. Quanto mais alto o escore, mais sedado o paciente: a pontuação 6 corresponde a um paciente desacordado, que não reage a um estímulo sensorial glabelar nem a sons altos, enquanto a pontuação 1 corresponde a um paciente acordado e agitado.
Como calcular
Como de costume, o primeiro passo para calcular o escore Ramsay do paciente é observar:
- se ele estiver acordado e agitado, Ramsay 1;
- se ele estiver acordado e cativo, mas calmo, Ramsay 2;
- se ele estiver desacordado ou inativo, Ramsay 3 ou maior.
O segundo passo é conversar com o paciente:
- se ele reage a comandos, Ramsay 3;
- se ele está desacordado e não reage a comandos, Ramsay 4 ou maior.
Por fim, o observador deve chamar o paciente com voz alta e firme e bater levemente em sua glabela (entre as sobrancelhas):
- se o paciente reage de forma energética, Ramsay 4;
- se o paciente reage de forma lenta e letárgica, Ramsay 5;
- se o paciente não responde aos estímulos, Ramsay 6.
Utilidade prática
A escala Ramsay é usada para avaliar o nível de sedação do paciente, principalmente na terapia intensiva. É mais antiga do que a escala Richmond, mas não necessariamente apresenta melhores resultados na avaliação da sedação. Além disso, a RASS tem a vantagem de avaliar de forma mais pormenorizada a agitação, o que também é importante no manejo do paciente crítico.
Equivalência com a RASS
Apesar de serem escalas diferentes, que não têm necessariamente um algoritmo de conversão entre si, muitas vezes é possível prever o escore RASS de um paciente a partir de sua pontuação na RSS e vice-versa:
- Ramsay 1 equivale a RASS positivo (+1 a +4, agitação psicomotora);
- Ramsay 2 equivale a RASS 0 (alerta e calmo);
A partir daqui, as coisas começam a ficar um pouco mais complexas, mas ainda assim podemos dizer que:
- Ramsay 3 e 4 indicam sedação leve, assim como RASS -1, -2 e -3.
- Ramsay 5 e 6 indicam sedação profunda, assim como RASS -4 e -5.
Escalas pediátricas
Você chega no consultório para avaliar seu paciente e, como bom médico, usa a Escala de Coma de Glasgow para medir seu nível de consciência. O problema: o paciente tem 12 meses de idade.
Abertura ocular: 4. Resposta verbal: 2. Resposta motora: 5. ECG 11. Mau sinal?
Não necessariamente, é claro. Não se espera que uma criança pequena tenha resposta verbal orientada nem que obedeça a comandos. Avaliar agitação, sedação, analgesia e nível de consciência em adultos é diferente de fazê-lo na população pediátrica. Por isso, temos instrumentos específicos para avaliar nossos pequeninos (apesar de as escalas Ramsay e RASS serem bastante usadas pelos pediatras brasileiros).
Escala de Coma de Glasgow Pediátrica
Assim como o escore para adultos, a ECG Pediátrica avalia o nível de consciência do paciente em uma escala de 3 (completamente irresponsivo) a 15 (completamente alerta). Ela também é dividida em três avaliações: abertura ocular (1 a 4 pontos), resposta verbal (1 a 5 pontos) e resposta motora (1 a 6 pontos). O que muda em relação à ECG Adulta é a forma de avaliar cada resposta.
A Escala de Coma de Glasgow Pediátrica foi validada em 2005 para crianças com dois anos ou menos de idade vítimas de traumatismo craniano.
COMFORT
A escala COMFORT foi criada em 1992 para avaliar a resposta da população pediátrica a medidas de conforto (sedação, analgesia etc.), e foi demonstrado que sua aplicação diminui o tempo de ventilação mecânica e o uso de sedativos e analgésicos em pacientes pediátricos.
Este escore é um pouco mais complexo do que as escalas abordadas anteriormente. São nove parâmetros, cada um avaliado com uma nota de 1 a 5, que somando gera um score que vai de 9 a 45 (sendo 9 um paciente profundamente sedado e 45, um paciente bem desconfortável e agitado). Os parâmetros incluem observação comportamental (nível de alerta, tensão facial, choro) e também sinais vitais (pressão arterial e frequência cardíaca).
Uma variante dessa escala é a COMFORT-B (B de behavior, ou seja, comportamento), um escore mais simples, que exclui os sinais vitais da avaliação, focando mais nos parâmetros comportamentais. São sete itens que valem de 1 a 5 pontos, totalizando um escore que vai de 7 a 35 pontos.
Um pouco mais complicada do que a RASS, né?