A endocardite infecciosa (EI) é uma condição que sempre gera muita repercussão no meio médico, principalmente para os cardiologistas e infectologistas, devido à sua morbimortalidade. Um dos temas mais controversos e incertos sobre a endocardite infecciosa é exatamente sobre sua profilaxia.
Neste artigo, vamos focar na profilaxia para os procedimentos dentários e odontológicos em geral. No passado, a profilaxia antibiótica era recomendada para quase todo paciente que iria ser submetido a alguma intervenção odontológica mais invasiva, porém isso vem mudando nos últimos anos.
DE ONDE SURGIU A IDEIA DE PROFILAXIA NESSE CONTEXTO?
O princípio de se realizar a prevenção antibiótica em pacientes que seriam submetidos a procedimentos odontológicos foi proveniente de estudos observacionais, em modelos animais, na tentativa de evitar que a bacteremia gerada por procedimentos invasivos pudesse atingir o endocárdio.
Desta forma, era muito comum que pacientes com qualquer tipo de lesão cardíaca fossem submetidos à profilaxia (e muitas vezes, mesmo pacientes sem lesão alguma, recebiam essa indicação de forma errada pelos profissionais de saúde).
A partir do início dos anos 2000, as indicações para profilaxia se tornaram mais restritas, pesando o risco x benefício dessa estratégia. Novos estudos observacionais foram realizados, e as sociedades de infectologia e de cardiologia definiram que somente os pacientes de alto risco para o desenvolvimento de EI deveriam receber a profilaxia.
O QUE ESSES ESTUDOS VERIFICARAM PARA HAVER ESTA MUDANÇA?
– Baixo grau de bacteremia ocorre com maior frequência durante atividades diárias como escovar os dentes, usar fio dental e mastigar (principalmente nos pacientes com um mau cuidado dentário). Em estudos observacionais (sempre modelo animal), o risco de endocardite infecciosa é maior no acúmulo dessas atividades do que em alto grau de bacteremia esporádica em procedimentos dentários;
– O risco estimado de EI após procedimentos dentários é muito baixo. A profilaxia só seria capaz de diminuir um pequeno número de casos;
– Apesar do risco baixo, o uso indiscriminado de antibióticos possui alguns fatores importantes que devem ser levados em consideração: risco de anafilaxia, surgimento de resistência microbiana;
– A eficácia da profilaxia antibiótica na bacteremia e ocorrência de EI só foi provada em modelos animais. O efeito real em humanos é controverso até hoje;
– Não há estudos prospectivos, controlados e randomizados investigando a eficácia de tal medida.
TUDO BEM, GUILHERME! ENTÃO, QUAL A RECOMENDAÇÃO MAIS ATUAL SOBRE O ASSUNTO?
Bom, as recomendações mais atuais das Sociedades de Cardiologia (Americana, Brasileira e Europeia) é que somente os indivíduos com alto risco para Endocardite Infecciosa devam receber a profilaxia. Isso pelo fato do prognóstico da doença ser pior nessa população específica (maior morbimortalidade).
QUEM SÃO OS PACIENTES DE ALTO RISCO?
– Pacientes que possuem prótese valvar ou algum dispositivo protético após cirurgia de reparo valvar(esses pacientes possuem maior risco para endocardite infecciosa, maior mortalidade pela doença e maior taxa de complicações quando comparados aos pacientes com valvas nativas). Essa regra também se aplica aos que foram submetidos a implante de próteses por cateter;
– Pacientes com história prévia de endocardite infecciosa possuem maior risco para novo episódio de EI, com maior mortalidade e maior taxa de complicações (quando comparados a pacientes que apresentam o primeiro episódio de EI);
– Pacientes com cardiopatia congênita cianótica não tratada ou aqueles que foram submetidos à cirurgia, porém possuem shunts ou forames residuais ou algum tipo de prótese endocárdica. Nos pacientes que foram submetidos à cirurgia, sem defeito residual, ainda se recomenda a profilaxia nos primeiros 6 meses após a intervenção;
– Pacientes submetidos a transplante cardíaco (recomendação feita pela American Heart Association/American College of Cardiology; negada pela Sociedade Europeia de Cardiologia).
Lembrando que todas essas sugestões possuem Classe de Recomendação IIa, Nível de Evidência C.
QUAIS SÃO OS PACIENTES COM DOENÇA OU ACOMETIMENTO VALVAR QUE NÃO NECESSITAM DE PROFILAXIA?
São todos aqueles pacientes com baixo ou intermediário risco para EI, ou seja, pacientes com defeitos de valva nativa como:
– valva aórtica bicúspide;
– prolapso de valva mitral;
– estenose aórtica secundária à calcificação.
No entanto, como toda a população, esses pacientes devem ser orientados sobre uma boa higiene bucal e dentária.
QUAIS SÃO OS PROCEDIMENTOS DENTÁRIOS QUE NECESSITAM DE PROFILAXIA ANTIBIÓTICA?
Os procedimentos de risco são os que envolvem manipulação de região gengival, periapical dos dentes ou a perfuração de mucosa oral (ex.: raspagens; canal).
Uma dúvida frequente é sobre o uso de implantes dentários. Sobre isso, poucos dados existem. A opinião dos especialistas é que não há evidências para a contraindicação e que cada caso deva ser avaliado individualmente.
EXISTE ALGUMA INDICAÇÃO SOBRE PROFILAXIA PARA OUTROS PROCEDIMENTOS MÉDICOS?
Atualmente, não há evidência robusta que a bacteremia resultante de procedimentos do trato respiratório, gastrointestinal (colonoscopia, por exemplo), genitourinário, dermatológico ou musculoesqueléticos necessitem de profilaxia antibiótica para EI. Dessa forma, não há recomendação para a prevenção antibiótica nesses casos (categoria IIIC de recomendação).
Um ponto relevante a ser destacado é que pacientes em vigência de infecção ativa devem estar em uso de antibioticoterapia adequada para a realização de qualquer procedimento.
QUAL ESQUEMA ANTIBIÓTICO DEVE SER UTILIZADO NOS QUE POSSUEM INDICAÇÃO PARA A PROFILAXIA?
A profilaxia deve ser realizada antes do procedimento odontológico e seu principal objetivo é atuar sobre a estreptococcia oral. As fluoroquinolonas e glicopeptídeos não devem ser utilizados, por eficácia desconhecida e pela possibilidade de indução de resistência.
Dessa forma, o esquema sugerido é (30 a 60 minutos antes do procedimento):
– Amoxicilina (ou ampicilina) 2g ou intravenoso (IV) em adultos ou 50 mg/kg em crianças;
– Nos pacientes alérgicos à penicilina ou ampicilina, recomenda-se o uso de clindamicina 600 mg oral ou IV em adultos e 20 mg/kg em crianças;
– Como alternativa aos esquemas citados anteriormente, algumas cefalosporinas podem ser utilizadas. Cefalexina 2g IV em adultos ou 50 mg/kg em crianças; cefazolina ou ceftriaxone 1g IV em adultos ou 50 mg/kg em crianças.
Lembrando que cefalosporinas devem ser evitadas em pacientes com história de anafilaxia, angioedema ou urticária com o uso de penicilinas ou ampicilinas (por sensibilização cruzada).
ÚLTIMO PONTO: E OS PACIENTES QUE SERÃO SUBMETIDOS A ALGUMA INTERVENÇÃO CARDIOVASCULAR?
Em pacientes submetidos a implante de prótese valvar, “devices” em geral (marcapasso, CDI), ou qualquer enxerto protético, a profilaxia perioperatória deve ser considerada devido ao alto risco e a morbimortalidade acrescentada no caso de uma infecção. Dessa forma, recomenda-se profilaxia iniciada imediatamente antes do procedimento, terminando 48 horas após (repetindo durante a cirurgia em caso de procedimentos muito prolongados).
Os agentes mais associados a infecções precoces de dispositivos (até 1 ano após a cirurgia) são os estafilococos coagulase negativos e Staphylococcus aureus. Sendo assim, a maioria dos estudos demonstraram eficácia no uso de 1g de cefazolina intravenosa na prevenção de infecções locais e sistêmicas associadas a implante dos dispositivos citados.
Outro tópico importante nesse assunto é a recomendação de triagem com swab nasal para S. aureus anteriormente à cirurgia cardíaca eletiva. Em caso de colonização, recomenda-se o uso de mupirocina e clorexidina tópicas alguns dias antes do procedimento (variando de acordo com os protocolos específicos de cada Instituição – em média 2-5 dias).