Nesse artigo, iremos falar sobre os distúrbios de diferenciação sexual (DDS).
Como funciona a fisiologia do desenvolvimento genital feminino?
O principal responsável pela determinação sexual feminina é a PRESENÇA DE DOIS CROMOSSOMOS X.
O cromossomo Y possui um gene chamado SRY responsável pela formação dos testículos. Como a mulher não tem o cromossomo Y (logo não tem o gene SRY), ocorre a formação do tecido ovariano. Além disso, o cromossomo X possui um gene chamado DAX, que inibe a formação testicular.
Vários outros genes, fatores de transcrição, hormônios e receptores hormonais estão envolvidos no processo de diferenciação gonadal e fenotípica. Para que não ocorra um Distúrbio de Diferenciação Sexual (DDS), além da adequada estrutura destes fatores, é necessário que eles interajam entre si para transformar a gônada indiferenciada na gônada feminina (ovário) que, por sua vez, vai realizar a produção hormonal e feminilização da genitália interna e externa feminina.
Como ocorre a formação gonadal?
Não se assustem com os conceitos embriológicos a seguir. Encarem eles como uma oportunidade de refinar seu conhecimento sobre desenvolvimento embrionário, mas tenham em mente que esse não é um assunto cobrado com rigor nas provas de residência…
Vamos lá…
Na 5ª semana do desenvolvimento embrionário, aparecem as cristas gonadais, que são formadas pela proliferação e condensação do epitélio celomático e do mesênquima.
Depois que ocorre essa proliferação, surgem os cordões sexuais primários, que têm como função dar sustentação para as células que invadirão a gônada primitiva.
Tudo isso depende da expressão de genes ligados a cromossomos sexuais, sendo que as células germinativas primordiais migram para a gônada em formação (seguindo o mesentério dorsal).
Até a 5ª semana de vida embrionária, portanto, não há diferença entre as gônadas dos fetos humanos, sendo que este período do desenvolvimento é chamado de ESTÁGIO INDIFERENTE OU BIPOTENCIAL DO DESENVOLVIMENTO GONADAL.
E como ocorre, então, a diferenciação gonadal?
Os cordões sexuais primários são formados por uma oogônia circundada por células do epitélio celomático que, em conjunto, formam os folículos primordiais. Essas oogônias estão em constante processo de multiplicação e uma peculiaridade é que, quando elas entram em prófase meiótica, elas param de se dividir e só terminam a divisão na vida adulta, durante a ovulação.
Lembra que falamos que este tema não cai em provas de residência? Isso é, de fato, verdade. Porém, essa próxima parte que vamos explicar agora é uma exceção.
Existem dois tipos de condutos genitais em ambos os sexos, que evoluirão de maneira diferente de acordo com o tipo cromossômico (se XX ou XY):
– Na mulher, temos o Ducto de Müller ou Ducto Paramesonéfrico, que dará origem a genitália interna feminina (útero, 2/3 superiores da vagina e trombas);
– No homem, temos o Ducto de Wolff ou Ducto Mesonéfrico, que dará origem a genitália interna masculina.
Na mulher, com a ausência de estímulo da testosterona, os ductos de Wolff regridem e os ductos de Müller evoluem, dando origem às tubas uterinas, cornos e corpo do útero. O terço inferior da vagina, que tem origem do seio urogenital, se alonga e se abre no períneo.
O tubérculo genital cresce um pouco e dá origem ao clitóris. As pregas urogenitais não se fundem e dão origem aos pequenos lábios e, por fim, as eminências labioescrotais, que também não se fundem, formam os grandes lábios.
Como ocorre a diferenciação ovariana?
Vamos lembrar que no cromossomo Y (masculino), nós temos o gene SRY que, quando está ausente, favorece o desenvolvimento ovariano. Esse gene tem o poder de bloquear a ação de um outro gene chamado WNT4.
O gene WNT4, quando não inativado pelo gene SRY, estabiliza e silencia genes de formação testicular e suprarregula o gene DAX1, que inibe enzimas esteroidogênicas.
A partir da 7º semana de vida intrauterina, os ovários já são capazes de produzir estradiol que, por sua vez, faz com que células germinativas primordiais se proliferem por mitose e se diferenciem em oogônias.
Na 10ª semana, as oogônias das camadas mais profundas param em prófase meiótica e passam a ser envolvidas por uma camada de células da granulosa, formando os folículos primordiais.
O que são os tais distúrbios de diferenciação sexual (DDS)?
Os distúrbios de diferenciação sexual (DDS) são condições congênitas em que o desenvolvimento gonadal e/ou genital, se for de forma atípica, e têm incidência estimada de 1 para cada 2500 nascidos vivos.
Devem ser tratados como EMERGÊNCIA MÉDICA, pois a sua principal etiologia, a Hiperplasia Adrenal Congênita, associa-se a risco de vida.
O médico deve ter muito cuidado ao abordar essas condições com os pais da paciente, pois é um tema que envolve muitos estigmas e aspectos psicossociais. A maioria dos diagnósticos é feita no período pré-natal, porém alguns podem ser mais tardios.
Deve-se suspeitar de DDS tardios em meninas com hérnia inguinal, puberdade atrasada ou incompleta e virilização pós-natal.
Quais são os critérios sugestivos de distúrbios de diferenciação sexual?
1) Ambiguidade sexual propriamente dita;
2) Genitália aparentemente feminina com:
– Clitoromegalia (clitóris maior que 6 mm);
– Fusão de lábios posteriores;
– Massa inguinal;
3) Genitália aparentemente masculina com:
– Criptorquidia;
– Micropênis;
– Hipospádia perineal;
4) Histórico familiar de Distúrbio de Diferenciação sexual;
5) Discordância de aparência genital e cariótipo pré-natal.
Como é feita a classificação dos distúrbios de diferenciação sexual?
1) DDS 46, XX
– Hiperplasia Adrenal Congênita é a mais comum;
– O diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita é feito através da pesquisa da deficiência 21-hidroxilase, aumento dos precursores de glicocorticóides e a 17-OH Progesterona tem níveis acima de 200 ng/dL;
– Síndrome de Kallman (46XX) = hipogonadismo hipogonadotrófico caracterizada pela tríade cegueira para cores, anosmia e ausência de GnRH;
– Síndrome de Mayer-Roktansky-Küster-Hauser (46XX) = agenesia da genitália interna por falha do desenvolvimento dos ductos paramesonéfricos (Ductos de Müller) = paciente tem genitália externa (clitóris, pequenos lábios, grandes lábios e 1/3 inferior da vagina) e tem ovários, mas não tem genitália interna (útero, trompas e 2/3 superior da vagina);
2) Disginesia Gonadal
– Síndrome de Turner (45XO) = caracterizado por gônadas em fitas, útero infantil e estigmas, sendo considerada uma disginesia gonadossomática;
3) Defeitos embriogenéticos
– Geralmente, são associados a outras malformações;
4) DDS 46, XY
– Alteração no desenvolvimento e função testicular, ou na síntese ou ação da testosterona;
– Síndrome de Swyer (46 XY) = paciente tem testículos, desenvolve estruturas femininas, porém anormais, além de infantilismo;
– Síndrome de Morris (46XY) = paciente tem testículos, produz testosterona, porém não possui receptores de testosterona, possui genitália externa feminina e não tem pelos; também chamada de Testículos Feminilizantes, Pseudo-hermafroditismo Masculino ou Insensibilidade Completa aos Androgênios;
5) DDS ovotesticular
– Presença de ovotestis.
Como deve ser realizada a avaliação clínica nesses casos?
Na ANAMNESE, o médico deve-se atentar a:
1) Histórico familiar (casos semelhantes ou mortes inexplicadas no pré-natal);
2) História pré-natal:
– Uso de medicações virilizantes pela mãe entre a 8ª e 12ª semana: andrógenos e progesterona;
– Uso de medicações feminilizantes pela mãe entre a 8ª e 12ª semana: ciproterona e progestágenos;
3) História de consanguinidade (pois a HAC é autossômica recessiva);
No EXAME FÍSICO, o médico deve-se atentar a:
1) Aspectos dismórficos na genitália;
2) Malformações genitais;
3) Fazer avaliação cuidadosa da genitália (palpação de testículos em bolsa labioescrotal, medida do falo, posicionamento do meato uretral);
Se uma ou mais gônadas forem palpáveis, solicitar CARIÓTIPO.
E quanto a avaliação laboratorial?
Solicitar análise citogenética: pedir o CARIÓTIPO ou pesquisar presença de SRY.
Os seguintes exames serão solicitados de acordo com a suspeita clínica:
1) Sódio sérico;
2) Potássio sérico;
3) Colesterol sérico;
4) Dosagem de hormônios, como:
– LH (Hormônio Luteinizante)
– FSH (Hormônio Folículo Estimulante)
– AMH (Hormônio Antimulleriano)
– ACTH (Hormônio Adrenocorticotrófico)
– 17OHP (17-hidroxiprogesterona)
– Progesterona
– 17 hidroxiprenenolona
– DHEAS (Sulfato de Dehidroepiandrosterona)
– Androstenediona
– Cortisol
– 11-desoxicortisol
– Aldosterona
– Renina
– Testosterona
– DHT (Di-hidroxitestosterona)
5) Para investigar a presença de testículos, o teste de estímulo com hCG e dosagem de AMH podem ajudar.
E quanto aos exames complementares?
Se você realiza o exame físico e não consegue palpar uma gônada e for descartada a hipótese de Hiperplasia Adrenal Congênita, deve-se investigar Criptorquidia.
Para a investigação de Criptorquidia, é recomendado o auxílio de um radiologista experiente.
O tecido testicular também pode ser detectado através de biópsia da gônada por laparotomia.
Como é realizado o tratamento dos distúrbios de diferenciação sexual (DDS)?
O tratamento dos DDS envolve:
1) Abordagem clínica, com reposição de hormônios femininos;
2) Abordagem cirúrgica (em alguns casos);
3) Abordagem psicológica;
Como é feito o tratamento clínico dos distúrbios de diferenciação sexual (DDS)?
Pacientes que têm DDS geralmente têm hipogonadismo. O tratamento hormonal deve ser iniciado por volta dos 11 a 12 anos de idade óssea, com o objetivo de mimetizar a puberdade normal. O tratamento hormonal tem como objetivos:
1) Desenvolver os caracteres sexuais secundários;
2) Manutenção da saúde óssea;
3) Amadurecimento psicossexual.
Nos casos de determinação sexual feminina, o tratamento é feito com ESTRÓGENOS, sendo que, nas pacientes com insensibilidade aos androgênios, em geral, as doses têm que ser suprafisiológicas.
Os PROGESTÁGENOS são acrescentados num segundo momento, em geral 1 a 2 anos após o uso contínuo de estrógenos ou após a menarca (quando houver).
Pacientes que não têm útero não são indicadas a usar progestágenos, pois eles não trazem nenhum benefício adicional.
Nos casos de HAC, deve-se realizar o tratamento específico para esta condição.
Como é feito o tratamento cirúrgico?
Geralmente, a cirurgia é indicada o mais precocemente possível, afim de aliviar o estresse dos pais e familiares e facilitar a formação do vínculo mãe-filho.
O objetivo do tratamento cirúrgico, quando indicado, é FEMINILIZAR A APARÊNCIA GENITAL, nos casos em que se opta pela determinação sexual feminina, e o procedimento cirúrgico deverá ser realizado por um cirurgião experiente que saiba lidar com um grande espectro de distúrbios do seio urogenital.
Deve-se ter em mente que, muitas vezes, é mais importante priorizar as questões funcionais e não estéticas. Por exemplo, na clitoromegalia, a cirurgia pode ocasionar a perda da função orgásmica e, por isso, a técnica cirúrgica deve priorizar a manutenção do tecido erétil e, em alguns casos, a cirurgia pode nem ser indicada num primeiro momento.
Já nos casos de vagina ausente ou inadequada, deve-se realizar a CONSTRUÇÃO DE NEOVAGINA, o que geralmente é feito na adolescência.
Nas pacientes em que não há gônada palpável, após descartar HAC, será realizada a pesquisa de TESTÍCULOS OU OVOTESTIS para sua retirada, pois o tecido testicular ectópico pode malignizar. A GONADECTOMIA BILATERAL também será indicada para pacientes com ovário em fita (Síndrome de Turner 45XO) e pesquisa de SRY positiva.
E como é feito o tratamento psicológico dos distúrbios de diferenciação sexual (DDS)?
Uma equipe multidisciplinar deve se encarregar de fazer a abordagem dos aspectos psicológicos, pois a ocorrência de um DDS numa familiar pode elevar o nível de ansiedade dos pais, aumentando as taxas de depressão e estresse pós-traumático, porém isso varia muito de acordo com os traços socioculturais e aspectos religiosos de cada grupo social.
Por fim, o suporte psicossocial ajuda na orientação quanto ao tipo de correção cirúrgica, assim como no que diz respeito a como e quando realizá-la.