Você já ouviu falar de alguma doença que cause abortos de repetição e tromboses, tanto arterial quanto venoso? Se sim, já deve imaginar do que vamos falar neste artigo! Se ainda não ouviu falar nada sobre isso, algo tem que vir na sua mente de cara: SÍNDROME DO ANTICORPO ANTIFOSFOLIPÍDEO!
A doença é causada basicamente por circulação de autoanticorpos na corrente sanguínea, além de ocorrência de, no mínimo, um evento tromboembólico, em leito arterial ou venoso. Apesar de ser uma condição rara, possui extrema importância pelo risco de morbimortalidade da própria.
Nesse artigo, vamos falar do que é mais importante nessa síndrome, como sua patogênese, manifestações, diagnóstico e tratamento. Então, mãos à obra!
Patogênese da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo:
A patogênese da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAAF) ocorre de uma variação dos efeitos do anticorpo que dá nome à síndrome na via de coagulação, levando a um estado pró coagulante em conjunto com a proteína C, plaquetas, moléculas de adesão, proteases séricas, receptores celulares, fatores teciduais e a via da fibrinólise.
A real patogênese sobre a síndrome ainda não é tão explanada, mas uma das hipóteses mais aceitas é que o desenvolvimento do anticorpo antifosfolipídeo ocorre nos pacientes suscetíveis após exposição a alguma infecção viral ou quando há associação com alguma doença reumática sistêmica (ex.: Lúpus Eritematoso Sistêmico – LES). No entanto, as condições que tornam um indivíduo pressuposto ou não ainda não são tão bem explicadas.
A hipótese atual sustenta que, uma vez que o anticorpo patogênico esteja presente, há necessidade de uma segunda exposição a um fator de risco, tais como: tabagismo, imobilização prolongada, gestação, puerpério, uso de contraceptivos orais, terapia de reposição hormonal, neoplasia, síndrome nefrótica, hipertensão e dislipidemia.
Uma outra via da doença é a interação do anticorpo antifosfolipídeo com outros autoanticorpos pró trombogênicos.
Síndrome do anticorpo antifosfolipídeo primária x secundária?
Em torno de metade dos pacientes com o diagnóstico possuem a doença primária, enquanto a outra metade possuem alguma outra doença sistêmica autoimune associada (forma secundária). O LES é a doença mais comumente associada com a síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (presente em 35% dos casos de LES).
As manifestações clínicas de uma forma para a outra são praticamente as mesmas, porém, como era de se esperar, a forma associada com o LES costuma apresentar maior incidência de artrite, livedo reticular, doença cardíaca valvar, citopenias.
Vamos falar das manifestações clínicas da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo?
Como falamos no início do nosso texto, as principais manifestações são as tromboses venosas, arteriais ou de pequenos vasos, além de complicações durante a gravidez (principalmente aborto). Outros sinais/sintomas também podem estar presentes e podem ser comuns como: livedo reticular, citopenias (principalmente trombocitopenia) e ataque isquêmico transitório (AIT). Em casos ainda mais raros, uma situação conhecida como SAAF catastrófica pode ocorrer (falência de múltiplos órgãos decorrente de trombose de pequenos vasos).
Abaixo vou citar a proporção de algumas das principais manifestações da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo:
– Trombose venosa (32%);
– Trombocitopenia (22%);
– Livedo reticular (20%);
– Acidente vascular cerebral (AVC – 13%);
– Tromboflebite (9%);
– Tromboembolismo pulmonar (TEP – 9%);
– Aborto (8%);
– AIT (7%)
Outras manifestações, menos comuns mas que devem ser lembradas, são doença cardíaca de etiologia valvar, hipertensão pulmonar, úlceras cutâneas, insuficiência adrenal e déficits cognitivos.
. Eventos trombóticos: esses são a principal marca da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, sendo as tromboses venosas mais comuns do que as tromboses arteriais.
– Trombose venosa: ocorre principalmente nas extremidades dos membros inferiores. Outros sítios também envolvidos podem ser os rins, pulmão, fígado, sistema portal, veia axilar, subclávia, ocular, veia cava inferior, seio venoso.
– Trombose arterial: o leito envolvido mais comumente é o cerebral, levando a acidente vascular cerebral. Outras regiões que podem ser envolvidas: retina, circulação coronariana, renal, mesentérica.
. Eventos recorrentes: o risco anual de recorrência de episódios trombóticos nos pacientes com SAAF gira em torno de 5-12%. Nos casos de pacientes que já apresentaram algum episódio de trombose venosa e que tenham parado a anticoagulação (veremos melhor quando comentarmos o tratamento), o risco de novo evento é de aproximadamente 10-20%.
. Envolvimento neurológico: anormalidades do sistema nervoso central são comuns na SAAF, que podem ser acarretadas tanto por tromboses vasculares quanto por danos diretos causados pelo anticorpo antifosfolipídeo. Como citado anteriormente, AVC e AIT são as manifestações mais comuns quando o alvo é o sistema neurológico;
. Envolvimento hematológico: trombocitopenia é o mais comum. Outras possibilidades: anemia autoimune, PTT, síndrome hemolítica urêmica (SHU);
. Envolvimento pulmonar: principalmente TEP, hipertensão pulmonar, alguns casos de hemorragia alveolar;
. Envolvimento cardíaco: a topografia afetada mais comum são as valvas cardíacas (principalmente espessamento valvar e nódulos valvares – estes últimos referidos como vegetações não bacterianas -> Síndrome de Libman-Sacks). A valva mitral é a mais afetada, seguida pela valva aórtica.
Sabidamente os pacientes com SAAF possuem risco aumentado para doença arterial coronariana;
. Envolvimento cutâneo: diversas manifestações cutâneas estão associadas como a SAAF. Entre elas, petéquias, livedo reticular, necrose cutânea, gangrena digital, úlcera cutânea, vasculites cutâneas.
O livedo reticular é a manifestação cutânea mais comum nesses pacientes;
. Envolvimento renal: ocorre na minoria dos pacientes na SAAF primária. Quando ocorre, pode cursar com doença renal aguda ou crônica envolvendo proteinúria e hipertensão;
. Envolvimento gastrointestinal: exemplos de envolvimento desse sistema: isquemia gástrica, esofágica, intestinal, sangramento, dor abdominal, infarto esplênico e pancreático, trombose do sistema portal (ex.: síndrome de Budd-Chiari);
. Envolvimento ocular: amaurose fugaz, oclusão arterial e venosa retiniana, isquemia de nervo óptico. São manifestações raras;
. Doença adrenal: pode ocorrer como consequência de trombose da veia adrenal bilateralmente e infarto hemorrágico (também são manifestações mais raras);
. Osteonecrose: manifestação raríssima.
E as complicações na gravidez?
Em adição aos eventos tromboembólicos, as complicações durante o período da gravidez é a grande marca da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo. Essas complicações incluem morte fetal após 10 semanas de gestação, prematuridade, insuficiência placentária e perda embrionária.
Os critérios para SAAF (serão melhor elucidados em alguns tópicos a seguir) com relação a gestação são:
– 1 ou mais morte fetal inexplicada com 10 ou mais semanas de gestação (com exames de imagem e laboratoriais demonstrando normalidade prenatal);
– 1 ou mais partos prematuros de feto morfologicamente normal antes das 34 semanas de gestação secundários à pré eclampsia grave, eclampsia ou insuficiência placentária;
– 3 ou mais perdas de gestação inexplicáveis, consecutivas e espontâneas com menos de 10 semanas de gravidez, após exclusão de outras anormalidades.
Como é o laboratório desses pacientes com síndrome do anticorpo antifosfolipídeo?
Como já comentei com vocês, as alterações mais específicas e mais importantes são as de autoimunidade. No entanto, alguns outros achados laboratoriais são encontrados nos indivíduos com SAAF, incluindo trombocitopenia, sinais de anemia hemolítica, aumento do PTT, falsos positivos sobre o VDRL, diminuição dos níveis do complemento.
. Autoanticorpos: os três principais, e que se encontram nos critérios diagnósticos, são: anticorpo anticardiolipina; antibeta-2-glicoproteína-1 e anticoagulante lúpico.
Geralmente o diagnóstico é feito na presença de um ou mais desses autoanticorpos (critérios diagnósticos serão abordados de maneira mais detalhada mais adiante no nosso artigo).
O anticorpo antifosfolipídeo pode estar presente mesmo em pessoas saudáveis, ou em indivíduos que apresentam outras doenças reumáticas autoimunes, e também em algumas situações no uso de algumas drogas e infecções.
. Hipocomplementemia: pode ser observada, tanto na forma primária quanto secundária. Pelo menos metade dos pacientes apresentam níveis baixos de C3 e/ou C4. Porém, não são utilizados para avaliar atividade da doença, como em outras situações autoimunes.
Guilherme, antes de falarmos de como realizar o diagnóstico, você pode comentar um pouco sobre a SAAF catastrófica?
Claro! Vocês acham que eu ia passar um artigo de síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, sem comentar sobre esta entidade? Vamos nessa!
Uma pequena parcela dos pacientes com SAAF apresentam um espectro de doença mais grave, com doença trombótica disseminada, evoluindo com falência de diversos órgãos, o que chamamos de SAAF catastrófica.
Nessa situação, as tromboses geralmente acometem pequenos vasos em várias topografias.
Os critérios para que se estabeleça esse tipo de diagnóstico são:
– História de SAAF e/ou anticorpos antifosfolipídeos;
– Três ou mais novas tromboses de órgãos em um período de uma semana;
– Confirmação, através de biópsia, de microtrombo;
– Exclusão de outras causas alternativas de tromboses.
A SAAF catastrófica é uma condição ainda mais rara (aproximadamente 8 casos a cada 1000 pacientes com diagnóstico da síndrome). No entanto, sua importância se dá pela elevada taxa de mortalidade, a despeito do tratamento anticoagulante e imunossupressor.
Como é realizado o diagnóstico da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo?
O diagnóstico da síndrome é baseado em todos os achados que comentamos anteriormente, porém fundamentado com os critérios diagnósticos. Para fechar o diagnóstico pelo menos um critério clínico E pelo menos um critério laboratorial.
. Critérios clínicos:
– Trombose vascular: um ou mais episódios de trombose venosa, arterial ou de pequenos vasos em qualquer topografia, com evidência em exame de imagem ou histológica. Trombose venosa superficial não entra como critério clínico para SAAF.
– Manifestações gestacionais: um ou mais episódios de morte fetal com 10 semanas ou mais de gestação, sem anormalidades morfológicas ou um ou mais nascimentos prematuros (antes de 34 semanas) secundários à eclampsia, pré eclampsia ou insuficiência placentária ou 3 ou mais perdas gestacionais espontâneas com menos de 10 semanas de gestação, inexplicada por anormalidades cromossomiais ou por causas hormonais/maternas.
. Critérios laboratoriais: consiste na presença de um ou mais dos seguintes autoanticorpos, aferidos em duas ou mais ocasiões, com espaço de tempo de 12 semanas entre elas:
– Anticorpo anticardiolipina;
– Anticorpo antibeta2-glicoproteína-I;
– Anticoagulante lúpico
Vamos falar de tratamento?
O grande objetivo do tratamento dessa síndrome é conter novas manifestações de tromboembolismo, a escolha correta da anticoagulação e definir o tempo da mesma.
O manejo do tromboembolismo agudo na SAAF é baseado na anticoagulação. Em geral, iniciada com heparina e se associando com varfarina, seguindo com anticoagulação oral com varfarina por tempo indefinido na maioria dos pacientes. E por que durante tempo indefinido? Por se tratar de uma situação com alta taxa de recorrência de manifestações tromboembólicas.
Posso utilizar os novos anticoagulantes orais (ex.: apixabana, dabigatrana, rivaroxabana)?
Até o momento, a recomendação é que não se use os novos anticoagulantes orais para os pacientes com síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, já que os dados que temos sugerem uma menor eficácia dos mesmos quando comparados à varfarina.
Qual o INR alvo para esse perfil de pacientes?
Para pacientes com história de trombose venosa, o alvo recomendado do INR é de aproximadamente 2,5 (podendo variar entre 2,0 e 3,0).
Já para os pacientes com histórico de trombose arterial, ainda não há consenso tão definido, havendo divergências. A maioria das recomendações sugerem INR > 3,0 (aproximadamente 3,5) ou respeitando alvo padrão (2,0-3,0) adicionado de AAS (principalmente naqueles com risco cardiovascular aumentado).
Como realizar a anticoagulação na gravidez?
De forma geral, optamos por anticoagular essas pacientes com heparina de baixo peso molecular à heparina não fracionada. Enquanto isso, os anticoagulantes orais são evitados (por exemplo, a varfarina, já que a mesma é teratogênica).
Para as pacientes com diagnóstico de SAAF por critérios laboratoriais + complicações gestacionais, a recomendação é de terapia combinada com baixa dose de AAS (50-100 mg/dia) e heparina de baixo peso molecular.
Um detalhe é que a varfarina nem a heparina são contraindicadas durante a amamentação.
Eu posso suspender a anticoagulação?
Em geral, a resposta é não! Óbvio que na Medicina sempre estaremos pesando o risco x benefício de cada conduta traçada. Entretanto, como o risco de apresentar novos episódios tromboembólicos nesses pacientes é altíssimo, a recomendação é que a anticoagulação seja realizada para o resto da vida.
Devemos anticoagular pacientes que possuem autoanticorpos positivos, porém sem fechar critérios diagnósticos?
As recomendações mais atuais não defendem a anticoagulação como profilaxia primária para aqueles pacientes que possuem algum dos três autoanticorpos positivos, porém sem alguma das manifestações clínicas para fechar o critério diagnóstico.
Já entendi que se trata de uma doença grave e com grande potencial de morbidade, mas qual sua real mortalidade?
Está claro que pacientes com diagnóstico de síndrome do anticorpo antifosfolipídeo possuem maior mortalidade em 10 anos do que indivíduos saudáveis. As principais causas de morte desses pacientes são trombose, sepse, malignidade e hemorragia. O SAAF catastrófico ocupa apenas 5% das causas de mortalidade.
A idade média de óbito, dos maiores estudos, foi de 59 anos.
BOM! ENTÃO É ISSO, PESSOAL! ESPERO QUE APÓS ESSA LEITURA A MAIOR PARTE DAS DÚVIDAS SOBRE ESSE ASSUNTO POSSAM TER SIDO SANADAS! ATÉ A PRÓXIMA!