No artigo “Hérnias inguinais e femorais em adultos: uma visão geral”,mencionamos alguns conceitos gerais importantes para o estudo das hérnias, como os fatores de risco envolvidos, a patogênese e a classificação. Neste artigo o nosso foco será direcionado às características clínicas e ao diagnóstico dashérnias inguinais e femorais. Não esqueça, portanto, de dar uma olhada no nosso artigo introdutório mencionado acima, o qual traz informações extramente relevantes para o entendimento do tema.
Características clínicas das hérnias inguinais e femorais
Tanto as hérnias inguinais quanto as hérnias femorais possuem uma variedade de apresentações clínicas que vão desde o achado de uma protuberância na região da virilha no exame físico (acompanhado ou não por sintomas álgicos) até apresentações emergentes e com risco de vida devido ao estrangulamento intestinal. Nesse sentido, um sintoma comumente associado à hérnia é a sensação de um peso, um incômodo ou um desconforto na virilha, que pode ou não estar associado a uma protuberância visível. Mais especificamente em mulheres, por exemplo, é bastante comum presenciarmos hérnias na virilha que resultam em desconforto pélvico vago.
Por outro lado, a vigência de dor moderada a grave com hérnias é incomum e, quando presente, deve aumentar a possibilidade de encarceramento ou de estrangulamento. Nesse caso, é importante ressaltarmos que hérnias encarceradas ou estranguladas podem se apresentar como obstrução intestinal mecânica aguda sem sintomas ou sinais óbvios de herniação, particularmente se o paciente for obeso.
Bem, como já comentamos no artigo introdutório, as hérnias femorais são as que possuem o maior risco de encarceramento. Falamos também que esse tipo de hérnia é mais comum em mulheres. Dessa maneira, é possível concluir então que é mais provável que as mulheres apresentem quadros graves e emergenciais devido a uma maior incidência de hérnias femorais no sexo feminino, as quais têm maior probabilidade de serem estranguladas?
Sim! É exatamente isso o que acontece. Outra explicação para a maior proporção de mulheres com quadros emergenciais pode ser a de que as mulheres que apresentam hérnias são, em sua maioria, mais velhas e apresentam anéis inguinais e femorais internos relativamente menores. De forma mais específica e objetiva, um estudo do registro de hérnia sueco demonstrou que o reparo de hérnia emergente foi necessário em 17 por cento das mulheres (53 por cento com hérnias femorais) em comparação com 5 por cento dos homens (7 por cento de hérnias femorais).
E o desconforto na virilha? Por que muitos pacientes queixam- se disso?
O desconforto na virilha é mais pronunciado quando a pressão intra-abdominal é aumentada, como em situações que requerem levantamento de peso ou um grande esforço. Nesses casos, observa- se que relativamente pouca pressão é necessária para criar o desconforto, o qual se resolve quando o paciente cessa a atividade que o desencadeou ou adota o decúbito dorsal e “relaxa”. A vigência dessa dor/ desconforto é atribuída à constrição do conteúdo da hérnia no colo do saco herniário.
Em termos gerais, observa- se que normalmente o desconforto é mais proeminente no final do dia ou após um período prolongado de atividade. Assim, pacientes que trabalham em profissões manuais ou fisicamente desgastantes perceberão o desconforto com maior frequência do que os trabalhadores sedentários. Além disso, a vigência de dor em pé ou durante o esforço também pode ser proveniente do alongamento do nervo ilioinguinal, que é tipicamente descrito como uma “pontada” quando o nervo é alongado com rápida dissipação da dor quando o alongamento é liberado.
Achados físicos
O achado físico mais comum em adultos é o de uma protuberância/ aumento de volume na região da virilha, o que é notado frequentemente pelos pacientes e tende a ser o motivo da visita ao médico. Nesse ínterim, a avaliação da hérnia é feita de forma mais adequada com o paciente em pé e o médico sentado em frente ao paciente. A observação da virilha irá, na maior parte dos casos, revelar uma protuberância a qual pode ser confirmada como uma hérnia por meio do exame físico, em que o médico deve colocar a mão sobre a protuberância e pedir ao paciente para tossir ou realizar uma manobra de Valsalva. Isso porque, ao tossir, as hérnias produzem um impulso distinto e suave que aumenta a protrusão.
Além disso, é importante saber que, quando uma hérnia não for evidente, manobras adicionais em pacientes masculinos ou femininos podem ser necessárias. No caso de pacientes masculinos, hérnias menores podem ser identificadas invaginando parte da pele escrotal redundante no canal inguinal, atravessando o melhor possível o anel externo. Quando o paciente é instruído a tossir ou a realizar a manobra de Valsalva, hérnias ocultas podem ser sentidas se estendendo até o canal e tocando a ponta do dedo. Nesse contexto, usando o dedo indicador, o examinador deve colocar o dedo na base do escroto, empurrando e direcionando suavemente o dedo em direção ao tubérculo púbico. O dedo descansará adjacente ao cordão espermático e a ponta do dedo estará apenas dentro do anel externo. Sempre haverá algum grau de pressão no dedo com essa manobra, mas uma verdadeira hérnia pode ser sentida como um impulso que bate no dedo do examinador quando o paciente tosse ou contrai a musculatura abdominal.
Já nos pacientes do sexo feminino, observa- se que as hérnias na virilha muitas vezes não apresentam uma protuberância visível. Além disso, o exame usado em um homem (ou seja, a invaginação da pele escrotal) não é possível em mulheres e, somado a isso, no sexo feminino as camadas da parede abdominal absorvem o impulso da hérnia, dificultando a localização do anel externo. Sendo assim, em alguns casos, a ultrassonografia ou a laparoscopia diagnóstica podem ser necessárias para detectar hérnias em mulheres.
Vale lembrar também que a região femoral deve ser examinada cuidadosamente, destinando uma atenção especial à área medial ao canal femoral. O espaço é encontrado identificando a pulsação da artéria femoral caudal ao ligamento inguinal na porção superior da coxa e movendo-se medialmente em direção ao tubérculo púbico. As hérnias femorais podem ser difíceis de diferenciar clinicamente das hérnias inguinais no pré-operatório no exame físico quando localizadas sobrejacentes ao ligamento inguinal ou superiores a ele.
Encarceramento e estrangulamento
O famoso e temido encarceramento refere- se ao aprisionamento de conteúdo de hérnia dentro do saco herniário, de modo que não é possível reduzi- lo de volta ao abdômen ou à pelve. Nesse contexto, ocorre uma redução do fluxo venoso e linfático o que, consequentemente, leva ao surgimento de edema do tecido encarcerado, que pode ser composto por alças de intestino, por omento, pela bexiga ou pelo ovário, dentre outras estruturas. Nesse ínterim percebe- se que, à medida que o edema progride, o fluxo venoso e, finalmente, arterial para o conteúdo do saco herniário pode ficar comprometido, resultando em isquemia e necrose do conteúdo da hérnia, o que é chamado de estrangulamento.
Quais são os fatores de risco para encarceramento?
O risco de encarceramento e estrangulamento é globalmente baixo, estimado entre 0,3 e 3% ao ano em dados norte- americanos. Nesse sentido, os fatores de risco associados ao encarceramento e a necessidade de cirurgia de hérnia emergente incluem idade avançada, hérnia femoral e hérnia recorrente. Vale lembrar também que, embora todas as hérnias na virilha possam ser estranguladas, as hérnias femorais parecem estar mais predispostas a essa complicação.
E como detectamos uma hérnia encarcerada ou estrangulada ao exame físico?
No exame físico, uma hérnia encarcerada ou estrangulada pode ser dolorosa à palpação. O paciente também pode apresentar- se febril e com eritema da pele na região da virilha acometida. Além disso, hérnias estranguladas podem manifestar-se com sintomas de obstrução intestinal incluindo náuseas, vômitos, dor e/ ou aumento do volume abdominal, bem como esses casos podem surgir acompanhados por sintomas sistêmicos, se de fato ocorrer estrangulamento e necrose intestinal.
É indicada a redução de um conteúdo de uma hérnia estrangulada?
De jeito nenhum!!! Em condições normais, geralmente a peritonite generalizada não ocorre, uma vez que o tecido isquêmico ou necrótico fica preso dentro do saco herniário. No entanto, se um segmento estrangulado é reduzido (espontaneamente ou involuntariamente), sinais peritoneais generalizados podem estar presentes. Ou seja, não se deve tentar reduzir o conteúdo de uma hérnia estrangulada!
Diagnóstico
Essa é uma etapa extremamente importante. Observa- se que, na maioria dos casos, o diagnóstico de hérnia inguinal ou femoral pode ser feito com base na história e no exame físico, sem a necessidade de exames complementares. Embora os dados sejam limitados, um estudo relatou uma sensibilidade de 75% e especificidade de 96% para o diagnóstico de hérnia inguinal no exame físico por cirurgiões.
Por outro lado, quando o diagnóstico não é aparente, a imagem pode ajudar a identificar a hérnia oculta, diferenciar a hérnia inguinal da femoral e distinguir a hérnia de outras entidades clínicas. A imagem também pode ser importante para avaliar pacientes com complicações de hérnia. Nesse sentido, na ausência de suspeita de complicações intra- abdominais, sugere- se a ultrassonografia (USG) da virilha como modalidade diagnóstica inicial, por ser não invasiva e por ser relativamente barata. Além disso, a USG é um método de imagem que, em geral, apresenta alta sensibilidade e especificidade para hérnia, particularmente na presença de massa palpável, distinguindo hérnia de outras patologias inguinais e escrotais. Outras modalidades, incluindo tomografia computadorizada (TC), ressonância nuclear magnética (RNM) e herniografia (peritoneografia) podem ser úteis sob circunstâncias clínicas específicas.
Identificando uma hérnia oculta
Como mencionamos, a ultrassonografia é o melhor exame de imagem no diagnóstico inicial para identificar hérnia inguinal oculta em pacientes com sintomas sugestivos, mas sem hérnia detectável no exame físico. Embora a herniografia possa ser um pouco mais precisa, ela é invasiva e raramente é necessária para a obtenção de imagens. Se a imagem não identificar a suspeita de hérnia ou um diagnóstico alternativo, a laparoscopia diagnóstica pode ser usada para identificar ou excluir definitivamente uma hérnia. Por outro lado, a herniografia, quando disponível, pode eliminar a necessidade de exploração cirúrgica em alguns casos.
Diferenciando a hérnia inguinal da femoral
Para a maioria das hérnias, a localização será óbvia no exame físico. No entanto, em situações em que a localização da hérnia femoral não pode ser excluída definitivamente no exame físico, pode ser necessário empregar exames de imagem adicionais. Nesses casos, a ultrassonografia da virilha pode ser particularmente útil se houver confusão quanto à localização da hérnia.
Além disso, a tomografia computadorizada (TC) da região da virilha pode ajudar a diferenciar as hérnias femorais das hérnias inguinais. Isso porque cortes suficientemente finos usando tomografia com múltiplos detectores podem permitir a localização do saco herniário. Sendo assim, se o saco herniário se estender medialmente ao tubérculo púbico na TC, um diagnóstico de hérnia inguinal pode ser feito com certeza. Porém, um saco herniário localizado lateralmente ao tubérculo púbico associado à compressão venosa sugere diagnóstico de hérnia femoral. É importante mencionar também que um estudo que avaliou a aparência de TC de 215 pacientes com hérnia na virilha descobriu que a combinação de um saco localizado e compressão venosa era mais frequentemente associada à hérnia femoral em comparação com a hérnia inguinal (100% versus 1%).
Já no que concerne à utilização da ressonância nuclear magnética (RNM) como método de imagem, essa parece diferenciar a hérnia inguinal da femoral com uma sensibilidade e especificidade de mais de 95%, o que é superior à TC. No entanto, o custo e a falta de disponibilidade uniforme limitam a praticidade da ressonância magnética.
Avaliação de complicações de hérnias
Já sabemos que, para pacientes que apresentam náuseas, vômitos e distensão abdominal associada à história de dor ou massa na virilha, deve-se suspeitar de obstrução intestinal por encarceramento intestinal ou estrangulamento. Nesse sentido, deve- se reforçar a noção de que, para a maioria dos pacientes com hérnia e / ou estrangulamento encarcerados, geralmente não são necessárias imagens adicionais antes da exploração cirúrgica e do reparo.
Contudo, diante de pacientes com características clínicas de obstrução intestinal nos quais o diagnóstico de hérnia na virilha não é claro e que não têm indicações para exploração cirúrgica imediata, a tomografia computadorizada geralmente é mais útil que a ultrassonografia. Na realidade, a obtenção da tomografia computadorizada pode não alterar o plano de manejo para exploração e reparo, mas tem grande chance de acrescentar informações valiosas sobre os órgãos envolvidos ou a extensão do estrangulamento intestinal.
Diagnóstico diferencial das hérnias iguinais e femorais
Quais são os diagnósticos diferenciais de hérnias inguinais e femorais? Em quais outras hipóteses devemos pensar inicialmente e excluir?
Nesse contexto, temos que ter em mente que o diagnóstico diferencial da hérnia inguinal inclui qualquer patologia que possa produzir dor ou uma massa na região da virilha, incluindo tecidos moles, tecido linfoide, estruturas ósseas, vasos associados ou estruturas associadas à reprodução masculina ou feminina. Nesse cenário, é relevante sabermos que as patologias escrotal aguda e não aguda podem produzir dor na virilha e podem parecer semelhantes à hérnia na virilha. De forma geral, os principais diagnósticos diferenciais incluídos no escroto agudo são a torção testicular e a epididimite, bem como, dentre as condições escrotais não agudas, a presença de hidrocele, de varicocele, de espermatocele, de cisto do epidídimo e de tumor testicular.
Já nas mulheres, um diagnóstico clínico de hérnia inguinal durante a gravidez pode ser desafiador. Nesse ínterim, as varicosidades do ligamento redondo podem aparecer pela primeira vez durante a gravidez e podem ser facilmente confundidas com uma hérnia. Além disso, devem ser mencionadas como diagnóstico diferencial de hérnias na mulher as causas ortopédicas da dor na virilha, que incluem a osteíte púbica, a hérnia esportiva, a tensão muscular adutora, a radiculopatia lombar e eventuais problemas no quadril. Nesses casos, levando- se em consideração que, no caso de uma hérnia oculta haverá dor na região da virilha em protuberância visível, pode ser necessário empregar um método de imagem para fazer o diagnóstico diferencial. Sendo assim, caso a ultrassonografia não seja reveladora, a ressonância nuclear magnética (RNM) pode ser útil para diferenciar a hérnia inguinal das causas musculoesqueléticas da dor na virilha.
Vale mencionar também que, em termos de diagnóstico diferencial, a presença de aneurisma e pseudoaneurisma das artérias ilíacas ou femorais comuns apresentam-se como massa na região pélvica ou virilha, respectivamente. No entanto, esses são pulsáteis sendo, por isso, raramente confundidos como uma hérnia e podem ser facilmente identificados na ultrassonografia. Ocasionalmente, um aneurisma trombosado pode se apresentar como uma massa não pulsátil, ou uma infecção vascular se apresentará com eritema sobrejacente, simulando hérnia estrangulada.
Resumindo: conceitos essenciais
Concluímos neste artigo que a maioria das hérnias pode ser diagnosticada no exame físico como uma protuberância na virilha durante a tosse ou esforço físico. No entanto, caso o diagnóstico de hérnia não seja aparente, a utilização de exames de imagem pode ajudar a identificar uma hérnia oculta, bem como pode auxiliar a diferenciar a hérnia inguinal da femoral e a distinguir a hérnia de outras entidades clínicas que são também capazes de causar dor na virilha. Dessa forma, na ausência de suspeita de complicações de hérnia, pode- se utilizar a ultrassonografia da virilha como a modalidade diagnóstica inicial, por ser geralmente de mais fácil acesso e mais barata, além de ser um método de imagem que, em geral, apresenta alta sensibilidade e especificidade para hérnia, particularmente na presença de massa palpável (sendo útil para distinguir hérnia de outras patologias inguinais e escrotais quando necessário). Apesar disso, outras modalidades, incluindo a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância nuclear magnética (RNM), podem ser de grande valia em circunstâncias clínicas específicas.