Como falamos em nosso artigo “A anamnese ginecológica: dificuldades e estratégias para contorná- las” , o estabelecimento de uma boa relação médico paciente é essencial, mas, em algumas situações, o estabelecimento de vínculo pode não ser tão fácil. Mais especificamente no campo da ginecologia, a presença de pacientes adolescentes têm sido uma situação cada vez mais frequente nos consultórios e, nesse contexto, o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente tende a ser o maior desafio que o profissional encontra ao atender uma pessoa que está passando por um momento de transição em seu desenvolvimento biopsicossocial.
Introdução: a importância do vínculo
É evidente que a adolescente apresenta diferenças na forma de agir e pensar de acordo coma fase da adolescência que está vivendo. Nesse sentido, o estabelecimento de uma boa relação médico- paciente (garantindo a privacidade e respeitando a confidencialidade) é aspecto fundamental para que a consulta transcorra de forma bem- sucedida e para que a adolescente consiga estabelecer um vínculo com o ginecologista. Como resultado, se todos esses aspectos forem respeitados, o objetivo de promover a saúde sexual e reprodutiva dessa paciente será alcançado com mais facilidade. Portanto, a importância do vínculo nunca deve ser menosprezada.
DIRETO AO PONTO: a consulta ginecológica da adolescente
Agora que entendemos a importância do estabelecimento de vínculo, é interessante refletirmos sobre quais são os principais motivos que levam uma adolescente a procurar o ginecologista. Isso pode nos auxiliar a pensar em formas de garantir um atendimento completo e eficiente, respondendo aos anseios da paciente.
Os principais motivos que levam uma adolescente a procurar o ginecologista
Dentre os motivos mais frequentemente responsáveis pela busca de uma consulta ginecológica pela adolescente, podem ser citados a necessidade de avaliação de rotina do desenvolvimento da puberdade, os problemas relacionados aos ciclos menstruais, a vigência de cólicas muito intensas, de corrimento vaginal, bem como o desejo de iniciar a contracepção. Nesses casos, embora a temática e as situações clínicas pareçam ser simples (já que são do conhecimento e comumente manejadas pelo ginecologista), a dificuldade maior é a de estabelecer o vínculo de confiança para poder abordar livremente sobre essas questões sem soar “invasivo”.
Tal dificuldade é ainda maior quando a demanda é de uma adolescente que exerce ou que pretende exercer atividade sexual. Nesse contexto, outro problema frequente decorre do fato de que muitas adolescentes que comparecem às consultas em ginecologia não buscam o atendimento por iniciativa própria (em muitos casos são “forçadas” a ir pelo responsável) o que tira a sua privacidade por estar acompanhada.
E como lidar com a presença dos pais na consulta? Quais aspectos em relação à confidencialidade devem ser levados em consideração?
Infelizmente ainda há poucas pesquisas com foco nos aspectos de confidencialidade envolvendo a adolescente e seus pais ou responsáveis. Em um trabalho realizado por McKee et al., mães relataram acreditar que a confidencialidade entre o médico e as suas filhas poderia promover um comportamento de risco e comprometer a relação entre mãe e filha. No entanto, Duncan et al avaliaram, por meio de questionários, o entendimento sobre confidencialidade dos pais que acompanhavam os filhos adolescentes na consulta médica e, surpreendentemente, os pais identificaram muitos benefícios associados com a confidencialidade. Por outro lado, esses mesmos pais acreditavam que eles deveriam ser informados a respeito de vários tópicos da consulta, dentre os quais revelaram interesse em saber sobre a atividade sexual e a contracepção, bem como a vigência de doenças de transmissão sexual e de gravidez, mesmo que os seus filhos pedissem sigilo.
Complicado, não é mesmo? Por isso muitos médicos acabam se sentindo extremamente pressionados e em uma “sinuca de bico” nessas situações. De fato, o desejo da adolescente deve ser respeitado e o sigilo preservado, a menos que haja o consentimento por parte da mesma. No entanto, na situação em que os pais desejam saber sobre a intimidade da filha e essa última não está de acordo, por vezes os responsáveis não aceitam que o médico mantenha o sigilo (sobretudo na rede particular, em que frequentemente os responsáveis acham que “estão pagando” e por isso possuem esse direito à informação). Nesses casos, é comum que os mesmos procurem outros ginecologistas, até encontrarem um que, inadequadamente, exponha detalhes da vida pessoal da paciente aos seus pais. Dessa forma, conseguimos entender melhor porque o dilema ético- legal envolvendo a consulta ginecológica na adolescência é um dos motivos de dificuldade para muitos profissionais.
Situações frequentes
Aqui vamos pontuar algumas situações frequentemente encontradas no contexto de atendimento ginecológico a uma adolescente:
- O profissional na maioria das vezes é escolhido pela mãe da adolescente e, com frequência, é o próprio ginecologista da mãe. Nesse caso, a responsável geralmente procura o profissional da sua confiança esperando que ele a mantenha informada sobre tudo o que ocorrer na consulta. Isso, como mencionamos no tópico anterior, está relacionado a um dilema ético- legal envolvendo a consulta ginecológica na adolescência e é um dos motivos de dificuldade para muitos profissionais.
- É frequente também nos depararmos com situações em que a mãe ou um outro responsável resolve individualmente que está na hora de consultar, marca a consulta e apenas depois comunica à paciente, a qual, nesse contexto, tem sua autonomia ameaçada e desrespeitada. Dessa maneira, essa adolescente vai à consulta contra a sua vontade, o que dificulta ainda mais o estabelecimento de uma boa relação médico- paciente e compromete a qualidade da consulta.
- Outra situação relativamente comum é a de uma adolescente que efetivamente quer agendar uma consulta com o ginecologista, mas se sente desconfortável pois sua mãe ou responsável insiste em estar presente na sala de consulta, alegando que a paciente “é menor de idade”. Isso gera uma situação de conflito entre mãe ou responsável e filha, sendo geralmente de difícil manejo (principalmente se levarmos em consideração que o profissional não sabe até que ponto vai o relacionamento mãe- filha).
- Também não é incomum nos depararmos com uma adolescente que vai à consulta na companhia da mãe e, sempre que questionada, aponta para a responsável esperando dela a resposta. Sendo assim, ela não responde diretamente ao médico, o que torna as informações incertas e sujeitas a inúmeros vieses.
Casos delicados, não é mesmo? No entanto, independentemente da situação, o ginecologista deve ter empatia para perceber como a adolescente está se sentindo naquele momento. Além disso, é preciso que o médico disponha de estratégias para tentar vencer a resistência da paciente que insiste em ficar em silêncio apontando para a mãe sempre que submetida a alguma pergunta como sinal de protesto (“Foi ela quem marcou, portanto ela quem responde” é a resposta de muitas delas).
Nesse ínterim, uma possível estratégia para tentar contornar a situação é aproveitar o momento do primeiro encontro para perguntar quais são as dúvidas da adolescente e quais são as suas expectativas com relação à consulta ginecológica. Ainda, sempre de forma respeitosa, é possível quebrar o gelo e conversar sobre a importância desse primeiro contato com o ginecologista, e que o objetivo principal nesse momento é que ela conheça o profissional que poderá ajudá-la quando necessitar realmente de uma consulta ginecológica. Além disso, uma vez que o maior medo das adolescentes é com relação ao exame ginecológico, torna- se muito importante assegurar que nada será feito sem a sua permissão. Essas atitudes tranquilizam a paciente nesse primeiro contato e tornam a consulta menos “desconfortável” para as pacientes que não estão habituadas.
A anamnese
A anamnese da adolescente é bastante semelhante à anamnese da mulher adulta, com algumas peculiaridades e especificidades. Por exemplo, ao atendermos uma adolescente, alguns tópicos não devem ser esquecidos na consulta, dentre eles a necessidade de checar a situação vacinal, sendo esse um momento bastante importante, em que se deve recomendar a atualização caso haja vacinas desatualizadas e proceder com a orientação para novas vacinas, como a vacina contra o papiloma vírus humano (HPV). Além disso, assim como na paciente adulta, deve- se atentar para o histórico de alergias, com destaque para alergia a medicamentos, como anti- inflamatórios, por exemplo, uma vez que o anti-inflamatório é, na maioria das vezes, a primeira linha de tratamento na dismenorreia primária. É interessante também indagar sobre o uso ou não de anticonvulsivantes, pois esses podem interferir com o uso de contraceptivos hormonais.
Além disso, é preciso colher alguns dados sobre a menstruação, de forma bastante detalhada. No caso de a adolescente não ter tido ainda a menarca, é importante avaliar se já iniciou os caracteres sexuais. É essencial também que o médico registre a idade da menarca e aborde de forma detalhada dados sobre os ciclos menstruais, realizando uma descrição dos mesmos quanto ao intervalo, quanto à quantidade e à duração do fluxo, bem como em relação à data da última menstruação. Para orientar a paciente e relatar sobre a importância de registrar os seus períodos menstruais, pode ser oferecido um calendário menstrual ou podem ser sugeridos aplicativos de controle do ciclo, disponíveis para celulares.
E em relação às dúvidas? Quais são as mais frequentes?
É importante notarmos que diversas dúvidas surgem com relação aos ciclos irregulares no período da pós- menarca. Muitas pacientes acham que, por terem menstruação irregular após a menarca, possuem alguma doença e podem ficar preocupadas. Nesse sentido, a orientação sobre imaturidade do eixo, explicando que essa irregularidade é normal e que ocorre em muitas pacientes até os dois primeiros anos após a menarca é imprescindível. Dessa forma, é possível que o médico tranquilize a paciente e com frequência também a mãe, muitas vezes preocupadas com o futuro reprodutivo.
E quanto aos assuntos que envolvem a sexualidade? É um pouco delicado. Como contornar a situação e abordar o tema com a adolescente?
De fato, uma das maiores dificuldades na anamnese é abordar assuntos ligados à sexualidade, uma vez que estamos frente a pacientes menores de idade, o que gera preocupação aos profissionais sobre aspectos ligados ao sigilo e à privacidade. Nesse sentido, é muito impotante ressaltarmos que perguntas sobre vida sexual na presença da mãe não são consideradas apropriadas. O fato de a mãe entrar junto e dizer que “o relacionamento delas é ótimo” não é o suficiente para se concluir que ela tem pleno conhecimento da vida sexual da sua filha. Sobretudo, temos que ter em mente que a entrevista inicial poderá ser feita apenas com a adolescente ou junto com a família, mas que, de qualquer forma, é importante haver um momento a sós com o adolescente. Apenas assim será possível proporcionar a ela uma expressão livre, sem muitas interrogações, evitando-se observações precipitadas.
Nesse sentido, a menos que a adolescente fale espontaneamente que o motivo da consulta foi anticoncepção porque ela está tendo relações sexuais ou deseja iniciar, o ginecologista deve abordar com tato esse tópico, evitando, assim, qualquer desconforto ou conflito durante a consulta. Ainda, é preciso que o médico seja compreensivo e entenda que na primeira consulta a adolescente provavelmente ainda não irá se sentir à vontade com o médico, por não ter tido ainda tempo hábil para estabelecer um vínculo com o mesmo. Dessa forma, é comum nesses casos que a abordagem sobre início de vida sexual, sobre a orientação sexual e o número de parceiros não resulte em respostas satisfatórias. Por exemplo, a paciente pode estar mantendo sua vida sexual ou orientação sexual em segredo e temer que o médico conte sobre suas intimidades aos seus pais.
Adicionalmente, observa- se que, muitas vezes, a adolescente, surpreendida com a pergunta sobre vida sexual, pode demonstrar constrangimento e ser evasiva. Nesse ínterim, caso a paciente esteja na presença do responsável, esse fato pode gerar uma situação tensa para a adolescente e o acompanhante (mais frequentemente representado pela mãe) e a anamnese acaba sendo interrompida por discussões familiares.
Afinal, como então deve ser iniciada a abordagem sobre a sexualidade?
Na realidade, é difícil definir como exatamente deve ser iniciada a abordagem do assunto sexualidade, uma vez que a maneira adequada irá variar de acordo com a paciente, com a personalidade da mesma, dentre outros. No entanto, pode- se dizer que uma pergunta interessante para iniciar a abordagem é “Você namora alguém?”. Por vezes, a pergunta “Você tem namorado?”, definindo o parceiro automaticamente como do sexo masculino pode soar um pouco constrangedora no caso de pacientes que têm relações homossexuais e, por isso, deve ter seu emprego evitado. Em seguida, caso a resposta sobre namorar seja positiva, o próximo passo pode ser: “Você gostaria de conversar a respeito de contracepção?”. Nesse momento, é possível que a adolescente fale abertamente que quer começar a usar algum método contraceptivo porque tem vida sexual ativa e, assim, o restante da consulta poderá transcorrer tranquilamente.
Por outro lado, a adolescente pode se mostrar evasiva e dizer que não deseja conversar no momento. Inclusive, é importante mencionarmos que é muito comum a mãe ou responsável ter conhecimento do namorado e desconhecer que sua filha já teve relações sexuais. Por isso é prudente que o ginecologista aguarde um momento a sós para abordar com mais detalhes se ela já iniciou atividade sexual e esse momento pode ser criado na hora do exame ginecológico, com a paciente sozinha.
Como pedir à adolescente que está acompanhada para que ela fique sozinha na sala de exame?
Embora seja enfatizado que as adolescentes necessitam de privacidade, nem sempre essa situação é respeitada e, com frequência, as mães ou responsáveis desejam estar junto no momento do exame. Nesse contexto, uma pergunta que deve ser evitada é: “Você prefere que sua mãe saia?”. Isso porque, perguntada dessa forma, nem sempre vai surtir o efeito desejado. Devemos lembrar que o fato de a paciente ser menor de idade serve de pretexto para que a mãe se sinta no dever de acompanhar todo o exame. Se a adolescente responder que prefere ficar sozinha, o ginecologista corre o risco de escutar a mãe retrucar para sua filha: “Por que você quer que eu saia, tem alguma coisa para esconder?”.
Dessa forma, uma maneira adequada para evitar uma situação conflituosa e desagradável é perguntar: “Você faz questão da presença da sua mãe no momento do exame?”. Com essa abordagem, estamos dando a chance para a adolescente dizer que se sente segura para dirigir-se ao exame sozinha e dispensar o “apoio” da mãe, sem criar conflitos.
Finalmente, uma vez que tenhamos um momento a sós com a adolescente, os aspectos de sigilo devem ser abordados, garantindo a confidencialidade. Essa informação é muito importante, já que as pacientes tendem a se sentir inseguras, principalmente quando o ginecologista foi escolhido pela sua mãe. Ao ser tranquilizada que o sigilo será preservado, teremos a oportunidade de orientar a respeito de contracepção e cuidados para se prevenir de infecções sexualmente transmitidas. Sabemos que, na maioria das vezes, os jovens iniciam a atividade sexual e só se preocupam com anticoncepção após alguns meses sem proteção e/ou uso indiscriminado da contracepção de emergência.
Observação importante: convém reforçar que a anamnese, em ginecologia, é considerada o passo mais importante para o diagnóstico de doenças e para o estabelecimento de uma boa relação médico- paciente, que permita ao médico atuar de maneira eficiente na vida desta mulher. Nesse contexto, é importante também mencionar que o atendimento na infância deverá ser adequado à idade da criança e ao motivo da consulta. Por exemplo, quando houver suspeita de abuso sexual, a anamnese deverá ser conduzida de maneira específica.
amei
demaissssssssss
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