A notícia que se espalhou nas últimas duas semanas, e que impressionou a todos devido a sua consequência dramática, foi a morte de mais de 30 crianças no norte da Índia, no estado de Bihar. As crianças foram vítimas de hipoglicemia súbita e encefalite aguda grave, cursando com sintomas de febre, letargia, fraqueza, sudorese intensa, vômitos, crises convulsivas, alteração de nível de consciência e levando-as a óbito. Entretanto, essa não é a primeira vez que esses casos são descritos na região, além da Índia, países como Bangladesh e Vietnã também os registraram neste e em outros anos. E o que todos esses casos tem em comum? É que os episódios se repetem sazonalmente durante a temporada de produção de lichia na região. Pesquisadores acreditam que as mortes tenham sido um produto da intoxicação por esse fruto.
Mas como uma fruta tropical tão deliciosa e exótica como a lichia é capaz de cursar com hipoglicemia grave e encefalite nas crianças? Para entender como isso acontece, precisamos conhecer um pouco mais sobre essa fruta. A lichia (espécies Litchi sinensis ou Litchi chinensis) contém aminoácidos que são capazes de alterar o metabolismo da gliconeogênese e da beta-oxidação de ácidos graxos. Não só a lichia, mas também, mais particularmente, a fruta ackee (Blighia sapida), um membro da família Sapindaceae originating característica do oeste africano, que foi transplantada para o Caribe no século XVIII.
Mesmo considerando outros diagnósticos diferenciais, como intoxicação por pesticidas ou infecções virais, as pesquisas atuais apontam fortemente para o consumo da lichia como o verdadeiro causador dos casos relatados. Assim como a maioria, ou talvez todos, os fatores neurotóxicos, o acometimento que estes causam aos pacientes tem associação com a dose ingerida e a susceptibilidade do sistema imunológico dos pacientes. Quando aplicamos esse raciocínio a lichia, seu potencial tóxico depende da quantidade de lichia consumida, bem como da concentração de aminoácidos hipoglicemiantes nela presentes. Mas não só isso, o status imunológico, nutricional, outros fatores de susceptibilidade como alterações da acil-CoA desidrogenase de cadeia média e a idade dos pacientes também deve ser levada em consideração.
DEFICIÊNCIA DA ACIL-COA DESIDROGENASE DE CADEIA MÉDIA
A deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média (MCAD) é uma doença hereditária de caráter autossômico recessivo, em que uma mutação leva a síntese de uma enzima disfuncional. A enzima MCAD é uma dentre as cerca de 25 proteínas que medeiam o processo de beta-oxidação de ácido graxo no fígado durante a cetogênese hepática para a produção de energia. Este processo, que converte gordura em ATP, é a principal fonte de energia para aqueles pacientes que se encontram em jejum prolongado ou em períodos de intensa atividade física, quando o glicogênio armazenado no fígado se esgota.
As pessoas que apresentam a deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média e se encontram em períodos prolongados de jejum são mais susceptíveis a alterações glicêmicas uma vez que seu metabolismo energético está comprometido. Esses pacientes são incapazes de manter a homeostase energética, pois elas desenvolvem hipoglicemia devido à redução na gliconeogênese e ao esgotamento do glicogênio armazenado.
Descobriu-se que a alteração da homeostase mitocondrial nos pacientes com deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média está associada ao acúmulo de acilcarnitina no plasma e ácidos dicarboxílicos na urina, o que poderia ser utilizado como marcadores da manifestação da doença.
Em estudo realizado com pacientes que desenvolveram o quadro neurológico após o consumo da lichia, foram observados tais metabólitos em seus espécimes clínicos. Entretanto, como a prevalência dessa doença autossômica recessiva é baixa (1:100000), a concentração temporal e espacial de casos observados que tiveram o mesmo desfecho é incompatível com essa causa genética. Ai fica a pergunta, o que também poderia causar tal acúmulo?
AS CARACTERÍSTICAS HIPOGLICEMIANTES DA LICHIA
A resposta veio com o entendimento das moléculas presentes na lichia, que também são identificadas no fruto ackee. Pesquisadores mostraram que o fruto de lichia, principalmente quando não maduro, tem uma concentração aumentada de hipoglicina A e em menor quantidade seu homólogo, a alfa-metileneciclopropil glicina. Essas substâncias com propriedades hipoglicemiantes são encontradas no fruto e na semente da lichia em concentrações baixas quando a fruta está madura.
Verificou-se que os efeitos tóxicos do hipoglicina A, uma protoxina, são mediados pelo seu produto metabólico fisiologicamente ativo, o ácido metileneciclopropanilacético (MCPA), que foi identificado na urina dos pacientes investigados e modelos experimentais com ratos que receberam a hipoglicina A oral ou intraperitoneal. Foi observado que o MCPA limita o fornecimento dos cofatores coenzima A e carnitina para a beta-oxidação. Consequentemente, ocorre a inibição do transporte de ácidos graxos de cadeia longa para as mitocôndrias e a redução da beta-oxidação dos ácidos graxos de cadeia média e curta e também dos aminoácidos de cadeia ramificada nas mitocôndrias.
A consequência que a redução do metabolismo de ácidos graxos leva é um aumento da utilização de glicose como substrato energético. Como resultado, ocorre depleção de cofatores para a gliconeogênese, que gera glicose através do metabolismo de certas moléculas que não carboidratos, como glicerol, piruvato, lactato, alanina e glutamato. A escassez de energia devido à perda de funções da beta-oxidação de ácidos graxos e da gliconeogênese, associada a depleção de glicogênio armazenado, que tem como fator agravante a desnutrição e períodos de jejum prolongados, cursa como hipoglicemia severa.
O acúmulo de acilcarnitina no sangue, devido a alteração no metabolismo da beta-oxidação (assim como ocorre na deficiência da acil-CoA desidrogenase de cadeia média) pode ser identificado, juntamente com os outros metabólitos produtos do metabolismo da hipoglicina A, moléculas que corroboraram com a identificação da causa de intoxicação dos pacientes. É importante ressaltar que as doses tóxicas de hipoglicina A não estão bem determinadas, entretanto sabemos que as crianças foram intoxicadas.
Shrivastava e colaboradores identificaram a presença da hipoglicina A na lichia e também conduziram um estudo longitudinal para obterem maiores informações sobre os casos. Os resultados desse estudo sistemático mostraram que os sintomas da encefalopatia hipoglicêmica associada à ingestão de lichia eram mais graves em crianças entre 1 e 6 anos de idade, quando consumiam lichias em grande número, se estavam desnutridas e/ou quando as lichias eram o único alimento consumido por eles, fatores que têm grande associação com as condições socioeconômicas da população acometida na região. Investigações bioquímicas em crianças afetadas pela intoxicação com a lichia mostraram níveis muito baixos de glicose no sangue e acúmulo de acilcarnitina no plasma e de ácidos dicarboxílicos na urina. A urina dessas crianças também mostrou presença de altas concentrações de metabólitos de hipoglicina A e dos produtos de seu metabolismo, aminoácidos hipoglicêmicos conhecidos por estarem presentes na fruta de lichia.
Nesse estudo, os sintomas da intoxicação por consumo de lichia entre crianças afetadas foram atenuados após a administração de dextrose intravenosa. Uma variedade de investigações laboratoriais eliminou outras possíveis etiologias, como por agentes infecciosos ou metais pesados, herbicidas e inseticidas.
Acredita-se que a disfunção encefálica, o coma metabólico e outros sintomas neurológicos talvez estejam relacionados à acidose metabólica importante que tem efeitos nocivos sobre as células do sistema nervoso central, fruto dos produtos metabólicos que se acumularam devido ao bloqueio da oxidação dos ácidos graxos e de outras vias energéticas. Portanto, o tratamento de intoxicação pela ingesta de lichia não se baseia apenas em corrigir a glicemia, mas sim em estabelecer um completo tratamento de suporte com a correção dos distúrbios ácido/base, realizando inclusive hemodiálise caso o paciente desenvolva insuficiência renal importante. Também é necessária a intervenção sobre as convulsões com a administração de benzodiazepínicos e barbitúricos para seu controle.
O estudo das frutas de lichia mostrou que nem todos os frutos apresentam grandes concentrações de hipoglicina A capaz de cursar com intoxicação grave. Para que isso ocorra, não só a ingesta deve ser em grande quantidade, mas também acredita-se que algumas árvores podem conter maiores concentrações de substâncias tóxicas em seus frutos.
Para impedir novos casos de intoxicação, precisamos garantir que as crianças não comam lichia com o estômago vazio. Para erradicar a morbimortalidade causada pelo consumo de lichias, novos pomares devem ser plantados com genótipos selecionados para frutos com deficiência das substâncias hipoglicemiantes. Em pomares já existentes, as árvores produtoras de grandes quantidades de toxinas requerem marcação para que não sejam colhidos frutos para consumo.