Você já ouviu falar de abscesso hepático? Sabe diagnosticá-lo e seu manejo clínico? É algo que o clínico ou o cirurgião deve saber? Todos se resolvem com terapia antibiótica? Bom, todas essas e outras perguntas poderão ser respondidas nesse artigo. O abscesso hepático mais comum é o piogênico, e é a ele que vamos nos ater.
Guilherme, e qual a importância de saber sobre este assunto? Então, pessoal, o abscesso hepático é um importante diagnóstico diferencial nos pacientes com febre de origem obscura, ou naqueles que apresentem alterações laboratoriais das proteínas hepáticas.
Na maioria das vezes, o abscesso hepático é consequência de um processo infeccioso sistêmico, que se difunde por via hematogênica.
Qual é a Epidemiologia desse acometimento?
O abscesso hepático é o abscesso visceral mais comum. A incidência anual é estimada em 2,3 casos por 100.000 pessoas por ano. Em geral, acomete mais homens do que mulheres (3,3 x 1,3 por 100.000).
E os Fatores de Risco?
Os mais associados são diabetes mellitus, doença hepática e/ou das vias biliares, doença pancreática, transplante hepático, uso regular de inibidores da bomba de prótons.
Existe mesmo alguma relação com Neoplasia Colorretal?
Vamos lá! Na Ásia, a K. pneumoniae é a principal causa de abscesso piogênico do fígado. E estudos realizados nessa região demonstraram associação com neoplasia colorretal. Ainda não é muito claro se esses achados também podem ser aplicados a outras regiões do mundo.
O carcinoma colorretal foi a neoplasia mais comumente associada com esses abscessos.
E como se dá o surgimento desses Abscessos?
As relações mais evidenciadas com o surgimento de abscesso hepático piogênico é a presença de peritonite, infecções do trato biliar (colelitíase, obstruções secundárias a neoplasias). Outra possibilidade é a manipulação cirúrgica da topografia hepática e das vias biliares.
Qual a microbiota envolvida?
Muitos patógenos já foram identificados com o envolvimento desses casos. E isso está extremamente relacionado com a causa base e outros fatores associados (manipulação cirúrgica, imunodepressão, quimioterapia, entre outros). A maioria dos abscessos hepáticos são polimicrobianos, sendo os anaeróbios e os germes do trato intestinal os mais envolvidos.
As bactérias mais comumente isoladas são Escherichia coli e K. pneumoniae. Algumas séries de casos também citam espécies estreptocócicas. O Staphylococcus aureus é descrito em algumas situações específicas, como na embolização transarterial, em casos de carcinoma hepatocelular.
Tudo bem, Guilherme! E quando posso desconfiar de Abscesso Hepático no meu paciente? Quais são as manifestações clínicas?
Bom, o que é mais típico do paciente sentir é dor abdominal e febre. Sabe aquela febre que a gente vira o paciente “ao avesso” e não encontra a causa? Então, esse é um bom paciente para darmos uma olhadinha no fígado! E, quando menos esperamos, podemos nos deparar com uma lesão hepática! Outros sintomas associados podem ser náuseas, vômitos, redução do apetite, perda de peso e mal estar inespecífico.
A febre é um sinal/sintoma que merece ser um pouquinho mais destrinchado. Ela ocorre em 90% dos casos de abscesso hepático piogênico. Geralmente, uma febre diária, podendo ser vespertina. Já a dor abdominal (presente em 50-75% dos casos) costuma se localizar no quadrante superior direito.
Algum exame laboratorial pode estar alterado?
Sim! Essas alterações podem incluir aumento das bilirrubinas séricas e de outras enzimas hepáticas. Pelo menos 50% dos pacientes vão apresentar níveis elevados de alguma enzima hepática. Leucocitose, redução da albumina sérica e anemia (“normo-normo”) também são encontrados.
Qual a principal complicação?
A ruptura do abscesso! Essa é uma situação rara, em geral associada com diâmetro aumentado da lesão (> 6,0 cm), em associação com cirrose.
E como faço o diagnóstico definitivamente?
Inicialmente, vamos ter um caso em que suspeitamos disso. E quais seriam eles? Um paciente que se apresente com uma febre sem causa definida, em associação com um ou mais dos achados: dor no quadrante superior do abdome, aumento de transaminases, ou hiperbilirrubinemia, pensamos em realizar um exame de imagem desse abdome, já mirando na loja hepática. Caso encontremos alguma lesão hepática, teremos que seguir a investigação, tendo o abscesso do fígado como uma importante hipótese diagnóstica.
Naqueles outros casos que não são tão ricos em sinais/sintomas, mas que apresentem febre de etiologia não definida, a imagem de abdome (ex.: tomografia computadorizada de abdome) é um bom exame, em busca da possível causa dos episódios febris.
Em forte suspeita de uma imagem que sugira abscesso hepático, a drenagem percutânea para análise do material deve ser considerada. Hemoculturas também são recomendadas, na tentativa de isolar algum germe capaz de ser o agente causal.
Os pacientes que apresentem uma lesão hepática que foi aspirada, possuindo material purulento e/ou possuem uma bactéria isolada no Gram ou na cultura do material ou sangue, podem ter o diagnóstico de abscesso hepático assumido.
E as hemoculturas?
Essas são exames de suma importância no tema que estamos abordando, mas são positivas em apenas 50% dos casos. O ideal é obter o material antes mesmo de começar qualquer esquema antibiótico (lembrando que, em pacientes críticos, sépticos, o antibiótico não deve ser atrasado por dificuldade na obtenção da cultura).
O que devo saber sobre os exames de imagem?
Os métodos mais utilizados para ajudar no diagnóstico de abscesso hepático são a ultrassonografia abdominal (USG) e a tomografia computadorizada (TC). Esta última possui uma sensibilidade maior do que a USG.
Na USG: pode-se identificar uma imagem hipoecoica ou hiperecoica, com visualização de debris ou septação dentro da lesão.
Na TC: se possível, deve-se dar preferência ao método realizado com a injeção de contraste. Tipicamente, o abscesso hepático se apresentará como uma lesão bem definida, com halo externo, apresentando área central de hipoatenuação. No entanto, na prática, também encontramos lesões mais complexas, com coleções loculadas e bordas irregulares (geralmente estas possuem abordagem mais difícil).
Existe alguma área preferida do fígado para a localização dos abscessos?
Sim! O lobo direito geralmente é o mais acometido. Uma possível explicação para esse dado é o maior aporte sanguíneo desse lobo em detrimento do lobo esquerdo.
Como diferenciar um abscesso hepático de um cisto ou de uma lesão tumoral?
Na tomografia computadorizada, o cisto aparecerá como uma coleção fluida. Já os tumores possuem imagens radiográficas de aspecto sólido e podem conter áreas de calcificação. Nesses últimos, também há possibilidade de ocorrer sangramento e/ou necrose no interior da lesão.
Pela imagem, também há dados que ajudam a diferenciar um abscesso hepático piogênico de um abscesso amebiano.
E qual o papel da Ressonância Nuclear Magnética (RNM)?
Também é um exame com uma boa sensibilidade para detectar o abscesso hepático, aparecendo com um sinal de baixa intensidade em T1 e alta em T2. No entanto, não costuma ser muito utilizada pela menor praticidade em comparação à tomografia computadorizada.
Como o material do abscesso costuma ser abordado?
Através da obtenção de imagem por TC ou USG, podemos realizar uma punção guiada para obter o material da lesão suspeita e enviar para análise clínica. Em alguns casos específicos, quando o volume do material é muito pequeno, a obtenção da espécie já é também terapêutica. Em outros, especificamente, um dreno pode ser alocado (existe indicações especiais para tal conduta).
Ao se obter o material, a característica do mesmo deve ser observada. Com outras palavras, deve-se notar se o material tem característica purulenta ou não. Caso não, outros diagnósticos diferenciais devem ser cogitados.
E quais são os diagnósticos diferenciais?
Vamos raciocinar: como o abscesso hepático piogênico pode se manifestar com febre, dor abdominal no quadrante superior direito do abdome, aumento das enzimas hepáticas, qualquer etiologia capaz de provocar um quadro de hepatite entra no diagnóstico diferencial (ex.: hepatites virais, secundárias à droga, alcóolica), neoplasias biliares ou hepáticas, pneumonia de lobo inferior direito, colangite aguda, colecistite aguda. Em geral, o exame de imagem vai nos ajudar a diferenciar qualquer uma dessas causas.
Um dos principais diagnósticos diferenciais, após a realização de imagem, do abscesso hepático piogênico é o abscesso hepático amebiano, causado pela Entamoeba histolytica. Esse é um diagnóstico que deve ser considerado para todos aqueles pacientes que possuem uma imagem sugestiva de abscesso hepático e que tenha viajado para áreas endêmicas desse protozoário nos últimos 6 meses (ex.: países africanos, Índia, México, algumas outras regiões da América Central e da América do Sul). O quadro pode ser muito semelhante entre os dois tipos de abscessos, muitas vezes sendo diferenciado apenas com testes sorológicos ou biópsia.
Existem outros patógenos envolvidos com o abscesso hepático?
Sim! Vamos listar mais alguns causadores desse problema, sendo muito mais incomuns:
– Mycobacterium tuberculosis: é uma causa incomum de abscesso hepático, geralmente se manifestando com múltiplos minúsculos abscessos no fígado. Pode ser uma hipótese naqueles pacientes que possuem cultura negativa, em vigência de abscesso do fígado.
– Burkholderia pseudomallei: é um patógeno endêmico, em regiões como Sudeste Asiático, Nordeste da Austrália, região Sul da Ásia e China.
– Echinococcus: causadores de cistos hepáticos (aparência diferenciada nos exames de imagem).
– Candida: microabscessos hepáticos podem ser encontrados na candidíase hepatoesplênica. Situação mais propensa de ocorrer em pacientes com neoplasias hematológicas, principalmente em quadros de neutropenia.
Já estamos prontos para falar um pouquinho do tratamento?
Bom, o que temos que saber de essencial aqui é que o tratamento segue dois pilares: a antibioticoterapia e a drenagem.
Sobre a drenagem, as indicações, na literatura médica, variam um pouco, e, aqui vamos expor o que se tem de mais orientado. A abordagem da lesão é importante tanto para o diagnóstico definitivo quanto para o sucesso do tratamento. Dessa forma, sempre que possível (estrutura necessária, condição do paciente) deve ser realizada. As indicações mais precisas são:
. Diâmetro até 5,0 cm, lesão unifocal: drenagem percutânea (aspiração ou cateter);
. Diâmetro > 5,0 cm, lesão unifocal: também é sugerida a realização da drenagem percutânea, dando preferência à instalação de um cateter de maior permanência na loja hepática para drenagem contínua daquele conteúdo. O tempo de manutenção é guiado pelo débito da secreção (permanência média de aproximadamente 7 dias).
Nos abscessos muito grandes (ex.: > 10 cm), a chance de falha terapêutica mesmo com a drenagem percutânea é substancial. Dessa forma, alguns lugares sugerem a realização de drenagem cirúrgica, porém os dados atuais não sugerem redução de mortalidade, morbidade, duração da febre ou complicações, quando se realiza a cirurgia nesses pacientes.
. Lesões múltiplas ou multiloculadas: aqui, a decisão já é mais complicada! Deve ser avaliada com muita particularidade para cada paciente, com relação ao número de lesões, tamanho das mesmas, condições da instituição em que o indivíduo se encontra, situação clínica da pessoa no momento da possível abordagem, a experiência dos cirurgiões e radiologistas que estarão envolvidos no caso.
Muitas vezes a via cirúrgica é preferida. No entanto, uma possibilidade é tentar inicialmente a drenagem percutânea. Caso não haja melhora clínica / radiológica após 7 dias ou ocorra obstrução do dreno, a cirurgia se torna indicada.
E o Antibiótico?
Bom, agora vamos falar da antibioticoterapia! Esta deve ser guiada pela probabilidade etiológica do quadro e pelo perfil microbiológico de cada local. Não há estudos controlados e randomizados para avaliar a terapia antibiótica nesses pacientes.
A terapia empírica deve ser iniciada, se possível, após adquirir os materiais para cultura. O objetivo é tentar cobrir o grupo dos estreptococos, bacilos Gram negativos entéricos, e anaeróbios. Alguns dos esquemas mais utilizados são exemplificados a seguir:
– Ceftriaxone + Metronidazol;
– Piperacilina-Tazobactam + Metronidazol
Em casos em que haja suspeita de infecção por S. aureus, a vancomicina deve ser associada ao esquema antimicrobiano.
Após iniciar a terapêutica empírica, devemos sempre tentar guiar o tratamento de acordo com o agente específico guiado pelas culturas e pelo perfil de sensibilidade. Caso nenhum agente seja isolado, a recomendação é que o esquema empírico seja continuado.
E por quanto tempo trato esses pacientes?
Esses indivíduos são submetidos a um tempo prolongado de tratamento antibiótico. Naqueles em que houve uma terapia de drenagem bem sucedida, a recomendação atual é de manutenção de antibiótico, durante 2 a 4 semanas. Já naqueles em que não houve sucesso na drenagem ou não foram submetidos à mesma, a terapia se prolonga por 4 a 6 semanas.
É sempre bom lembrar que não existem estudos controlados e randomizados para avaliar por quanto tempo devemos manter o antibiótico. Sendo assim, vamos avaliando de acordo com a clínica e imagens seriadas do paciente. Portanto, fatores que devemos avaliar como resposta à terapia são: manutenção ou não da dor, febre, leucocitose, níveis de proteína C reativa, evolução ou involução de imagens prévias.
Existe alguma recomendação específica para se repetir os exames de imagem?
Bom, em geral, opta-se por repetir as imagens, caso o paciente não apresente uma melhora clínica após a terapia instalada, ou se a drenagem não tenha ocorrido da maneira esperada.
Por enquanto, é isso! Agora, você já tem mais um diagnóstico diferencial para aqueles pacientes com febre de origem obscura. Melhor ainda, sabe diagnosticar e como conduzir!!!