Quem está mais atento às notícias deve ter percebido que em julho de 2020 voltou a se falar de uma doença que foi o “terror” da humanidade durante a Idade Média (quando quase um terço da população europeia morreu pela enfermidade), porém que pouco se fala atualmente. Trata-se da peste bubônica, também popularmente conhecida como peste negra.
Esse assunto voltou à tona após terem sido confirmados casos da doença na Ásia.
ANTES DE DESTRINCHARMOS A DOENÇA EM SI, VAMOS FALAR UM POUCO DE HISTÓRIA: A PANDEMIA DA IDADE MÉDIA (SÉCULO XIV):
A pandemia da Peste Bubônica acometeu o continente europeu entre 1346 e 1353, levando a óbito quase um terço de sua população na época. Dentre diversos fatores, o desconhecimento sobre a doença, as más condições de higiene contribuíram muito para a disseminação da infecção.
OUTRAS ÉPOCAS RELEVANTES:
No fim da Idade Moderna (século XVIII), houve ondas da doença com repercussão importante. Em 1900, houve uma epidemia da doença no Rio de Janeiro, levando 295 indivíduos a óbito na cidade carioca.
QUAL A EPIDEMIOLOGIA DA DOENÇA?
Atualmente, trata-se de doença rara. É considerada uma zoonose, causada por roedores, além de animais domésticos e selvagens, transmitida por picadas de insetos ou pelas fezes. Os humanos são considerados hospedeiros acidentais, não contribuindo para o ciclo natural da doença.
As regiões onde a doença é mais encontrada são América do Norte (sudoeste dos EUA e costa do Pacífico), União Soviética, com alguns focos na África, Ásia e América do Sul. De 2000 a 2009, um total de 21.725 casos e 1612 mortes foram reportados no mundo, presentes em 16 países.
Desde 2000, mais de 95% dos casos são provenientes do continente africano (talvez pela condição precária de saúde existente em diversos países de tal território).
Nos EUA, a maioria dos casos ocorre na zona rural do país, concentrando-se em 5 estados principalmente: Arizona, Califórnia, Colorado, Novo México e Texas.
FORMAS DE TRANSMISSÃO:
Os seres humanos adquirem a enfermidade através de picadas das pulgas que colonizam roedores, ou por arranhões, picadas de animais domésticos infectados, manuseio de tecidos infectados, inalação de secreção, gotículas, aerossolizadas de indivíduos infectados ou por exposição post mortem. A via mais comum de transmissão é através da picada das pulgas.
Os animais domésticos podem ser infectados através da picada de pulgas de roedores e/ou ingestão de tecidos animais contaminados.
A BACTÉRIA:
A bactéria causadora da doença, conhecida como Yersinia pestis, é um cocobacilo gram negativo, aeróbio. Essa mesma bactéria é capaz de causar três doenças distintas: a Peste Bubônica, e Peste Septicêmica Primária e a Peste Pneumônica.
A PATOGÊNESE:
Ocorre a transmissão e infecção através da picada de pulgas em um hospedeiro mamífero, desencadeando uma resposta inflamatória no hospedeiro. Após a infecção humana, as bactérias são transportadas via sistema linfático para os linfonodos regionais, desencadeando uma intensa reação inflamatória, e consequente “bubão”.
Após tamanha resposta inflamatória e disseminação, a bacteremia se faz comum, podendo desencadear sepse, pneumonia e lesões hemorrágicas em diversas topografias do corpo humano. A síndrome de resposta inflamatória sistêmica consequente pode acarretar coagulação intravascular disseminada, sangramento, falência múltipla de órgãos e choque.
COMO SÃO AS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS?
A doença pode ser separada em três síndromes distintas: a Peste Bubônica, a Peste Septicêmica e a Peste Pneumônica. A primeira é a existente em 80-95% dos casos, enquanto a septicêmica é responsável por 10-20%. Se não tratadas, a mortalidade é de 60-100%, sendo reduzida para menos de 15% se tratada corretamente.
. Peste bubônica: é a forma mais comum. Alguns pacientes podem apresentar pústulas e até lesões necróticas no local da picada da pulga (embora não seja tão comum). O quadro mais clássico é caracterizado por início súbito de febre, calafrios, astenia, cefaleia, e evolução de edema e dor intensa em região de linfonodo (o famoso “bubo”), podendo se precedido por linfadenopatia. Geralmente esse tipo de lesão não apresenta flutuação, porém são associados com edema e eritema da pele adjacente. A região inguinal é o local mais envolvido (também podem ser envolvidos: linfonodos axilares e/ou cervicais).
Em caso de falta de tratamento, pode ocorrer evolução com infecção disseminada e sepse, complicando com pneumonia e meningite.
. Peste septicêmica: é a segunda forma mais comum. Pode ser de difícil diagnóstico, se sinais clássicos (ex.: bubo) não estiverem presentes. São pacientes febris, com mau estado geral, podendo apresentar também sinais/sintomas gastrointestinais como náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal. Hipotensão arterial, coagulação intravascular disseminada e falência de órgãos podem ser a linha final da doença.
. Peste pneumônica: é a forma mais rara. Pode ser primária ou secundária. A primeira pode ser adquirida pela inalação de secreções respiratórias ou aerossóis de animais ou humanos infectados, ou até mesmo por exposição laboratorial. Já a secundária, é a mais comum dentre as duas, surgindo através da disseminação hematogênica de bactérias de um bubão ou outra fonte.
A primária possui curto período de incubação (horas a poucos dias). Quadro clássico é o início súbito de dispneia, febre alta, dor torácica de caráter pleurítico e tosse (até mesmo hemoptise). Geralmente evolui a óbito de forma rápida, a menos que o diagnóstico seja realizado rapidamente e o tratamento específico realizado.
A forma secundária é a forma que ocorre naqueles casos em que há “atraso” ao início do tratamento, tendo manifestação semelhante à forma primária.
. Outras manifestações: principalmente faringoamigdalite.
COMO REALIZAR O DIAGNÓSTICO?
Antes de tudo, devemos ter uma forte suspeita clínica, através dos sinais/sintomas apresentados pelo paciente, além de uma história epidemiológica compatível. Alguns dados importantes, que devem nos chamar a atenção são: febre em indivíduos com história epidemiológica sugestiva; febre com hipotensão em um quadro de linfadenopatia de etiologia não explicada; ou achados de pneumonia em associação com hemoptise e escarro contendo presença de cocobacilos gram negativos.
Existem alguns métodos laboratoriais para tentarmos atingirmos o diagnóstico.
. Cultura e coloração: a Yersinia cresce bem em meios laboratoriais comuns (é importante lembrar que, em caso de suspeita da doença, os profissionais do laboratório devem ser avisados para que tomem as devidas precauções com as amostras e evitem a chance de infecção e contaminação ocupacional). A sensibilidade das hemoculturas varia muito (27-96%), a depender da forma de apresentação clínica. Outros materiais também podem ser utilizados para cultura: aspirado do material de linfonodo; escarro e líquido cefalorraquidiano.
O método de coloração com Wright-Giemsa através de amostra de sangue periférico possui sensibilidade de aproximadamente 40%.
. Sorologia: um título acima de 1:16 (através de hemaglutinação passiva) sugere o diagnóstico.
. Teste rápidos: há testes através de PCR e outros métodos experimentais para detecção rápida.
COMO É REALIZADO O TRATAMENTO?
Como já mencionado anteriormente, o tratamento no momento certo e de forma correta pode reduzir muito a mortalidade dessa doença (taxa de mortalidade de 50 a 90% se não tratada).
O tratamento consiste basicamente em suporte clínico e antibioticoterapia. Os aminoglicosídeos (ex.: gentamicina) são os agentes de escolha, tendo doxiciclina e tetraciclina como alternativas. Os pacientes que não podem receber nenhum dos fármacos anteriores, podemos lançar mão de fluoroquinolonas.
E QUANTO AO CLORANFENICOL?
É um importante agente alternativo e adicional e tem um papel importante principalmente no tratamento da meningite causada pela Yersinia (em combinação com aminoglicosídeo e em algumas vezes como terapia única).
EXISTEM MÉTODOS PARA A PREVENÇÃO DA DOENÇA?
A melhor medida preventiva é reduzir a exposição. Nas áreas endêmicas, deve-se evitar manuseio de animais doentes ou mortos, além de se evitar o contato íntimo com indivíduos que apresentem a doença diagnosticada ou suspeita.
Outras medidas preventivas podem ser: controle de roedores; de pulgas; uso de repelentes.
PROFILAXIA PÓS EXPOSIÇÃO:
Indivíduos que tiveram exposição importante a pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado, e que não foram tratados por pelo menos 48 horas, devem receber quimioprofilaxia pós exposição. O esquema preconizado consiste em doxiciclina (100 mg, via oral, duas vezes ao dia, durante 7 dias). A levofloxacina é uma alternativa.
Para mulheres grávidas ou crianças, o sulfametoxazol-trimetoprim é uma opção.
EXISTE VACINA?
A grande preocupação com a possibilidade da doença se tornar um agente de bioterrorismo levou ao desenvolvimento de algumas vacinas, que se encontram em teste clínico.
GUILHERME, É UMA DOENÇA DE NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA?
Sim! De acordo com o Ministério da Saúde, a Peste é uma doença de notificação obrigatória e imediata (ou seja, dentro das primeiras 24 horas após detecção de um caso suspeito).
SITUAÇÃO MAIS RECENTE DA PESTE BUBÔNICA:
Como nos encontramos no meio de uma pandemia importante, como nunca vista no mundo, a do Covid-19, o relato de casos de Peste Bubônica na Mongólia acendeu o sinal de alerta da China e do mundo.
Autoridades da China aumentaram as medidas de segurança sanitária. Foi decretado nível três de alerta (proíbe caça e consumo de animais que poderiam ser portadores da doença e solicita que as pessoas reportem casos suspeitos).
O caso relatado acometeu um camponês da cidade de Bayannur.
Em Madagascar, um dos países mais afetados pela doença, houve um surto com 300 casos em 2017.
Em 2019, duas mortes foram relatadas na Mongólia após pessoas que ingeriram carne crua de marmota.