Você já ouviu falar sobre transplante de microbiota fecal? À primeira vista, pode parecer uma conduta bizarra indicar a um paciente a realização de um transplante de FEZES. Isso mesmo, o transplante fecal consiste em nada mais do que um procedimento no qual as fezes de um doador saudável são administradas a um outro paciente. Depois de muita polêmica envolvendo o assunto e também de muito preconceito, essa prática atualmente já é realizada; mostrou, por diversas vezes, resultados bastante satisfatórios. Vamos entender um pouco mais sobre o assunto?
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Como assim? O que é o transplante de microbiota fecal?
O transplante fecal ou bacterioterapia fecal consiste na infusão ou enxerto de fezes filtradas de um doador saudável no intestino de um receptor, com o objetivo de auxiliar no tratamento de uma doença específica. Inicialmente, pode parecer uma prática um pouco estranha e para alguns, até mesmo “nojenta”. Por isso, agora é a hora de você deixar de lado os preconceitos e entender melhor no que consiste a prática. Vamos começar pelo gênese da ideia. Como, afinal, surgiu o transplante de microbiota fecal?
Um breve histórico
O conceito de transplante de microbiota fecal para tratamento de doenças acometendo o trato gastrointestinal (TGI) humano teve possivelmente sua primeira descrição há aproximadamente 1.700 anos, por um cientista médico chinês chamado Ge Hong. Já naquela época (sim, há 1700 anos atrás!) ele administrava oralmente a suspensão fecal humana para tratar os seus pacientes que apresentavam intoxicação alimentar ou diarreia grave.
Nesse sentido, observa- se que, nos últimos anos, a prática vem sendo cada vez mais defendida e empregada. Recentemente, o transplante de microbiota fecal mostrou ter grande relevância e eficácia no tratamento da infecção por Clostridium difficile refratária e recorrente. Além disso, o procedimento já demonstra diversas outras possíveis aplicabilidades promissoras em uma variedade de doenças e condições pré- clínicas.
Conceitos gerais sobre a microbiota intestinal
A colonização microbiana do intestino humano começa durante o nascimento. Cada indivíduo tem sua própria microbiota intestinal específica, a qual tem sua composição influenciada por vários fatores ambientais. Esses podem ser a dieta; o estilo de vida; o uso de antibióticos; e os hábitos de higiene diários.
Não é novidade que a microbiota intestinal é de extrema relevância para a saúde do trato gastrointestinal (TGI). No entanto, a sua importância parece ir muito além do que imaginávamos. Nos últimos anos, diversas pesquisas investiram no assunto e revelaram conclusões que reafirmam a indispensabilidade da microbiota saudável não apenas para o TGI, mas também para diversos sistemas.
Sabe- se que a microbiota é essencial para vários aspectos da biologia do hospedeiro, incluindo o metabolismo de polissacarídeos indigeríveis; a produção de vitaminas essenciais; o desenvolvimento e a diferenciação do epitélio intestinal do hospedeiro de seu sistema imunológico; bem como para a manutenção da homeostase tecidual; e para a proteção contra a invasão de patógenos nocivos.
Nesse contexto, o desequilíbrio da flora bacteriana intestinal, o qual chamamos de disbiose intestinal, pode estar associada a várias doenças. Não apenas a doenças gastrointestinais, mas também parece ter relação com doenças metabólicas, doenças autoimunes, distúrbios alérgicos, distúrbios neuropsiquiátricos, dentre outros.
Qual é a justificativa para o investimento nos procedimentos de transplante de microbiota fecal?
A disbiose intestinal pode ser desencadeado por diversos fatores. Dentre esses fatores, o uso de drogas, particularmente de antibióticos, consiste em uma causa muito importante. Isso porque os. Produz-se, dessa forma, um ambiente que permite a germinação de esporos de C. difficile e a expansão do patógeno. Fator bastante preocupante, ainda mais se levarmos em consideração os casos de uso indiscriminado e muitas vezes desnecessário de antibióticos.
Dessa maneira, diante de diversos fatores que tendem a comprometer o equilíbrio da microbiota intestinal, torna- se indispensável para o ser humano criar artifícios para reverter a situação ou, ao menos, para prevenir consequências mais graves. Nesse sentido, pode- se dizer que a restauração de uma comunidade microbiana saudável, por meio do transplante de microbiota fecal, consiste em uma estratégia terapêutica em potencial para doenças relacionadas à disbiose intestinal.
Como o transplante de fezes é realizado? Qual é o procedimento?
A infusão de fezes por meio de uma suspensão fecal desenvolvida a partir de um doador saudável pode ser administrada por sonda nasogástrica, por sonda nasoduodenal, por via colonoscópio, por enema ou por cápsula. No entanto, na maioria dos casos os pacientes realizam uma colonoscopia durante a qual o médico responsável introduz pequenas quantidades de fezes liquefeitas e filtradas no cólon no paciente.
Essas fezes podem ser provenientes de voluntários saudáveis, de membros da família do doente, de amigos… Ou seja, não há restrições, desde que o doador de fezes esteja comprovadamente livre de doenças e passe por uma avaliação médica criteriosa e bem detalhista, para garantir que o potencial doador encontra- se saudável. Tal pesquisa inclui, por exemplo, pesquisa para detecção do vírus da imunodeficiência humana; bem como dos vírus relacionados às hepatites A, B e C; além de exames de fezes para evidenciar eventuais infecções bacterianas, virais e/ ou parasitárias.
Quais são as aplicações clínicas? Exemplo 1. Infecção por C. difficile
Estudos têm mostrado que a utilização do transplante fecal com fezes preparadas a partir de doadores saudáveis resulta em aumento significativo da taxa geral de resolução clínica dos sintomas relacionada à infecção pelo C. difficile refratária. Por exemplo, Patel et al. relataram um resultado bem-sucedido em dois pacientes que apresentavam quadros recorrentes de colite pseudomembranosa e que não responderam a repetidos ciclos de antibióticos sendo, por isso, submetidos ao transplante de fezes a partir de uma preparação de 33 bactérias intestinais diferentes isoladas em cultura pura proveniente de um único doador.
Exemplo 2. Doenças inflamatórias intestinais
A doença de Crohn e a Retocolite Ulcerativa são as principais formas de doença inflamatória intestinal, e, apesar de não se saber exatamente o que as causa, sabe-se que, além da influência do sistema imune, pode haver a interferência da composição da microbiota intestinal para o desenvolvimento dessas doenças. Assim, a realização de transplante de fezes pode ser eficaz para melhorar ou, até, para promover a total remissão das doenças inflamatórias intestinal, principalmente os casos graves ou de difícil tratamento.
Estudos posteriores foram realizados, mas muitos apresentaram diversas limitações metodológicas. Há a tendência em se pensar que o transplante de microbiota fecal não é tão eficaz na DII como nos casos de infecção pelo C. difficile. No entanto, faz- se necessária a existência de estudos clínicos futuros, mais detalhados e completos.
Exemplo 3. Síndrome do Intestino Irritável
A síndrome do intestino irritável (SII) parece ter várias causas possíveis. Em contraste com as doenças inflamatórias intestinais, o papel da microbiota no desenvolvimento da SII apenas recentemente tem sido considerado; mas os resultados do estágio inicial têm sido encorajadores. Embora as alterações na imunidade, na motilidade gastrointestinal e no eixo cérebro-intestino tenham sido implicadas na patogênese da doença, o papel da a microbiota intestinal está sendo cada vez mais valorizado. Inclusive, numerosos estudos já demonstraram diferenças significativas na composição da flora intestinal dos pacientes com síndrome do intestino irritável, quando comparada à composição da microbiota de pacientes da população saudável.
Dessa maneira, as alterações da microbiota intestinal em pacientes com síndrome do intestino irritável tem sido associadas a disfunções imunológicas e a alterações neurológicas, assim como ao aumento da ansiedade e à diminuição do limiar de dor. Em conjunto, esses dados sugerem que a restauração da homeostase intestinal via transplante de microbiota fecal pode resultar na melhora sintomática.
Nesse contexto, relataram a eficácia do transplante fecal no tratamento da SII. Eles trataram 13 pacientes (nove com queixa de diarreia, três com quadros de constipação e um com padrão misto de intestino) e os observaram por uma média de 11 meses. Resolução ou melhora dos sintomas foi relatada em 70%, incluindo dor abdominal (72%), hábito intestinal (69%), dispepsia (67%), distensão abdominal (50%) e flatulência (42%). No entanto, por mais que os estudos preliminares sejam promissores, são necessários mais detalhes e estudos sobre o procedimento. Desta forma poderá ser determinado se o transplante fecal é realmente uma modalidade de tratamento eficaz para a síndrome do intestino irritável.
Outros exemplos
O transplante de microbiota fecal também pode ser usada para tratar doenças que não sejam doenças primárias do TGI, nas quais a microbiota intestinal é perturbada. Há relatos preliminares sobre o uso da terapia em uma ampla gama de distúrbios, incluindo doença de Parkinson, fibromialgia, síndrome da fadiga crônica, esclerose múltipla, obesidade, resistência à insulina, síndrome metabólica e autismo regressivo da infância.
Além disso, estudos têm observado que pode ser possível tratar com transplante fecal a obesidade e outras alterações que determinam a síndrome metabólica. Estas seriam a hipertensão arterial, resistência à insulina, glicemia aumentada, colesterol e triglicerídios elevados. Entretanto, ainda são necessários mais estudos para comprovar como deve ser esse tratamento e quais são as indicações.
É uma prática segura? Existem efeitos colaterais? Quais?
O transplante de microbiota fecal é considerado uma prática segura e bem tolerada; com poucos eventos adversos sérios, mesmo sendo frequentemente administrada a pacientes com comorbidades clínicas de gravidade significativa. No entanto, isso não significa que é uma estratégia isenta de riscos e de efeitos colaterais. Na realidade, foram relatados como efeitos adversos imediatos do procedimento: desconforto abdominal leve e autolimitado, cólicas, inchaço, diarreia, constipação, febre transitória, dentre outros, sendo a maioria desses sintomas autolimitados.
Embora seja um evento raro, considera- se também a possibilidade de transmissão de doenças que não foram adequadamente identificadas nos testes de triagem.
No entanto, ainda há pouca informação disponível sobre os efeitos a longo prazo do procedimento de transplante de microbiota fecal. Além disso, é possível que doenças ou condições relacionadas a alterações na microbiota intestinal ocorram. Essas podem ser obesidade, diabetes, aterosclerose, câncer de cólon, doença hepática gordurosa não alcoólica, asma e autismo.
Perspectivas futuras
Apesar dos relatos de sucesso do transplante de microbiota fecal para inúmeras situações clínicas, ainda existem perguntas que precisam ser respondidas. São inúmeras as questões que devem ser consideradas, incluindo a seleção e a triagem de doadores; protocolos padronizados de preparação de fezes e via de administração; número de infusão e quantidade de material infundido; preparação do receptor; e segurança a longo prazo. Além disso, os mecanismos de transplante de fezes devem incorporar de forma progressiva os avanços tecnológicos recentes. No futuro, espera-se que os equipamentos para preparação de fezes e as formulações orais forneçam menos preocupações, maior conveniência e talvez maior eficácia.
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