A morte e a suas possíveis causas sempre foram cercadas de uma série de questionamentos e assolou o pensamento médico, e também o não médico. Há séculos se buscavam as causas para a morte, sendo muitas das suas explicações baseadas em poderes não naturais, espirituais, astrológicos, ocultos, das mais diversas causas.
Isso só começou a se modificar após a realização das autópsias. A palavra “autopsia” significa “ver a si mesmo”, “realizar uma inspeção pessoal”. No entanto, com o tempo a palavra, virou sinônimo de necropsia, no sentido de realizar uma dissecção de um corpo para a verificação da causa morte de um indivíduo.
A HISTÓRIA DA AUTÓPSIA:
Historicamente, os estudiosos dividem a trajetória médica em dois períodos conceituais: o pré-técnico ou da magia e ou técnico ou da ciência da natureza.
– Pré técnico ou da magia: período compreendido das origens da humanidade até a Grécia nos séculos VI e V a.C., quando o tratamento de um enfermo era baseado em uma combinação de tratamento empírico (repetição de práticas curativas descobertas por acaso) e “magia” (poderes misterioros extranaturais, através de rituais realizados por magos, bruxos, feiticeiros, pajés e xamãs). Nessa época, acreditava-se que a vida humana era controlada por deuses e forças espirituais, além dos elementos da natureza. Desse modo, as doenças, epidemias, a cura estaria dependente diretamente da vontade dos deuses e desses outros elementos.
Com esse conjunto de pensamentos, não havia uma preocupação ou interesse no estudo das doenças e as possíveis causas da morte. Havia sim hábitos do estudo de órgãos após a morte, porém para outros fins.
Por exemplo, o exame das vísceras de um animal morto (principalmente do fígado) poderia trazer informações sobre o futuro, sendo interpretados pelos sacerdotes adivinhadores. Nesta prática se avaliava a morfologia do órgão, sendo previsto o futuro.
Isso contribuiu para a descrição sobre a anatomia normal e patológica, conhecimentos que, com o decorrer do tempo, foram formando e juntando dados relevantes para a prática da necropsia.
– Período técnico ou da ciência da natureza: como várias outras histórias da Medicina, deve-se muito à ilha de Cós, constituindo-a como uma ciência de saber técnico, a partir do final do século VI a.C. Nesse período, inicia-se a prática da medicina baseada na arte de curar, porém sabendo o porquê de tudo que se faz. Com isso, passou-se a perguntar o que são os remédios, a doença e o próprio homem, o que iniciou a exclusão da responsabilidade das causas transcendentes, não naturais das enfermidades e dos fenômenos de viver.
O PERÍODO MEDIEVAL – DISSECÇÕES E AS AUTOPSIAS:
Começamos esse tópico mencionando uma crônica de inglesa do ano de 1111, que se refere à evisceração de um vassalo pertencente a um rei norueguês, que retornou de Jerusalém e morreu, assim como vários outros, tendo como possível causa da morte a ingestão de vinho “muito forte”, que foi capaz de afetar o fígado.
Além dessa crônica, muitas outras foram contadas nessa época, já que as dissecções humanas não eram proibidas nessa época.
Ao contrário do que se pensa, o estudo da anatomia humana recebeu grande estímulo durante a Europa cristã, quando a dissecção anatômica cresceu com a prática da autopsia e do embalsamento, incluindo a dos corpos dos santos e santas.
A Igreja Católica favorecia tais estudos. Isso porque essa prática era capaz de reforçar o assombro, admiração e gratidão ao Criador, sendo úteis para a educação dos cristãos, não só médicos.
Com o tempo, os tabus relacionados com a abertura e com os cortes dos cadáveres humanos existentes em grande parte da Grécia e Roma antigas foram desaparecendo com a influencia do Cristianismo (antes, essas práticas eram consideradas um distúrbio para a alma, uma profanação, além de ser uma fonte de impureza para aqueles que entravam em contato com os corpos dessa forma).
Um manuscrito inglês do início do século XIV, da Bodleian Library de Oxford, há uma figura que representa uma autopsia onde um homem leigo se encontra com uma faca na mão (aparentemente orientado por um médico e um monge), ao lado do corpo de uma mulher, que possuía uma incisão do apêndice xifoide à sínfise púbica.
Os corpos das mulheres eram especialmente dissecados com o intuito de se entender as origens da vida humana, com atenção especial ao útero.
Diversas descobertas semelhantes foram feitas com a existência de vários outros manuscritos que datam do período entre os anos 1266 e 1275, na Itália, onde as dissecções médico legais já eram feitas (principalmente na Faculdade de Direito da Universidade de Bolonha).
Nesta Universidade as autopsias e dissecções humanas eram regularmente realizadas nos cursos de anatomia. Em salas em forma de teatros, o corpo do cadáver era exposto e dissecado, sendo demonstrados os órgãos e estruturas.
PERÍODO DO RENASCIMENTO:
No final do século XV, Bernard Tornius, médico italiano e professor da Universadade de Pisa, autopsiou um menino com idade menor do que 12 anos, a pedido do pai do mesmo.
Em sua carta de análise, o médico dizia: “Sofro pela sua triste perda, pos perder um da prole é difícil; mais difícil é perder um filho, e mais difícil ainda é perdê-lo por uma doença ainda não totalmente compreendida pelos médicos. Para o bem das outras crianças, penso que examinar os seus órgãos internos será de maior utilidade.”
Bernard abriu o abdome e observou no fígado algumas manchas como úlceras; no intestino encontrou dois vermes; os rins inchados e a bexiga cheia. No tórax, o coração se encontrava aumentado e a artéria pulmonar cheia de “humor viscoso”.
Antonio di Paolo Benivieni (1443-1502), médico, filósofo, literato italiano, natural de Florença, teve importante contribuição para a promoção das autopsias e dos conhecimentos em Patologia. Em 1507, sua obra foi publicada: De abditis non nvllis ac mirandis morborvm et sanationvm cavsis (“Sobre algumas causas ocultas e admiráveis das doenças e as curas).
Tal obra relatava a série de mais de 100 pacientes, com correlação entre a clínica e a morte de 16 autópsias realizadas, com menção às anormalidades anatômicas. Descreveu sobre perfuração intestinal, cálculos biliares, entre outras observações.
SÉCULO XVII – TRATADOS SOBRE AUTOPSIA:
Nos séculos XVI e XVII houve uma realização relevante de autopsias, com o registro das mesmas. No século XVII, além dos estudos anatômicos, a anátomofisiologia também passou a ser valorizada.
Em 1679, o médico suíço Theóphile Bonet publicou uma das maiores compilações sobre autopsia da época, com relatos de 2806 autopsias, com cerca de 450 autores, abordando desde Galeno até os médicos do final do século em que se encontrava (ex.: Thomas Bartholin; Gabriele Falloppio; Jean François Fernel; William Harvey; Marcello Malpighi, dentre vários outros – com certeza você já ouviu falar, mesmo que indiretamente, de mais de um desses médicos e cientistas).
Na obra de Theóphile, poderíamos encontrar sinais e sintomas, a tentativa de se correlacionar com a autópsia e as interpretações e conclusões baseadas nos conhecimentos da época.
O SÉCULO XVIII:
O exercício da medicina, neste século, tornou-se mais elaborado e a Patologia apresentou um avanço muito importante, onde a autopsia seguiu com uma função de destaque. As autopsias eram feitas em grande quantidade e as referencias sobre os achados eram destacados em diversos textos médicos e revistas científicas.
Esses procedimentos, quando a morte ocorria em casa, eram considerados “particulares” e necessitavam da autorização dos familiares do morto para que pudessem ocorrer. Entretanto, quando o óbito ocorria nos hospitais, os corpos poderiam ser dissecados sem permissão, em prol do aprendizado dos estudantes de anatomia.
SÉCULO XIX E A ERA DA MEDICINA HOSPITALAR:
O grande crescimento dos hospitais no século anterior; o novo espírito da curiosidade científica e da medicina, favoreceram o avanço da mesma como ciência.
Na época da Revolução Francesa, o clima intelectual mudou de rumo, permitindo o surgimento de diversos jovens estudiosos para a prática de experimentos, tentativa de resolução de novos problemas com novas respostas.
Esse cenário tanto favoreceu o estudo médico que a França, no primeiro terço do século XIX, era o centro da medicina mundial, com numerosos grandes médicos.
O mesmo médico que via o doente enquanto vida, também praticava a autopsia e correlacionava os dados clínicos com os achados no pos mortem.
A MICROSCOPIA – MUDANÇAS DE RUMO:
Na primeira metade do século XIX, o surgimento do microscópio revolucionou a compreensão do conhecimento anatômico e da patologia. A autopsia macroscópica foi o início de tudo, porém a introdução do estudo dos tecidos a nível microscópico produziu os verdadeiros avanços da Patologia.
Como resultado, os conceitos básicos sobre inflamação, necrose, trombose, neoplasia, entre outros, começaram a ter significados mais precisos, que foram capazes de influenciar o diagnóstico, o tratamento, prognóstico e prevenção de doenças.
A PADRONIZAÇÃO DA AUTOPSIA:
Com todo esse progresso ocorrendo, a padronização e sistematização da autopsia foi exigida. Com isso, alguns documentos foram surgindo no sentido de orientar como deveria ser realizado um exame post-mortem.
Francis Delafield (1841-1915), um médico patologista norteamericano, publicou um volume conhecido como A Hand-Book of Post-Mortem Examinations and of Morbid Anatomy, que combinava como conduzir um exame de autopsia ordenadamente, com a inclusão de alguns achados patológicos principais.
Rudolf L. K. Virchow publicou em 1876 um livro que detalhava a execução da autopsia com descrições super detalhadas, baseadas em sua própria experiência.
O SÉCULO XX, O MESMO DA CONSOLIDAÇÃO E DO DECLÍNIO DA AUTOPSIA:
No início do século XX, o progresso do conhecimento médico dependia basicamente de duas vertentes: o exame à beira leito e a sala de autopsia.
O bom médico era capaz de extrair uma boa anamnese, examinar de forma detalhada o corpo do doente. Caso o paciente evoluísse a óbito, a autopsia seria o procedimento capaz de revelar o acerto do médico ou de demonstrar onde e porque o mesmo teria cometido um possível erro.
Frequentemente, os bons clínicos eram quem realizavam as próprias autopsias de seus pacientes. Um grande exemplo foi William Osler (1849-1909 – com certeza você já ouviu falar dele, não é mesmo?), médico clínico canadense, professor de Universidade, que realizou aproximadamente 1000 autopsias, com uma coletânea gigantesca de dados.
Nessa época, a autopsia também servia como importante instrumento de ensino, tanto para o aluno que estava iniciando sua vida médica quanto para os profissionais mais experientes. O método também começou a ter contato íntimo com as ciências básicas como a Patologia Experimental e a Bacteriologia.
– O declínio: chega a Segunda Guerra Mundial e, dez anos após seu fim, a prática da autopsia cai em desagrado.
Até essa época, era considerado que os bons hospitais realizavam muitas autopsias. Com isso, foi gerado um padrão rigoroso para que ocorresse certificação das autopsias realizadas, e a taxa de realização foi cada vez mais crescente. Isso fez com que os patologistas começassem a ficar sobrecarregados.
Além disso, os exames laboratoriais começavam a ganhar cada vez mais prestígio. Com isso, o “dinheiro” que financiava os hospitais passou a vir de grande parte do laboratório.
Desde que os patologistas se tornaram os responsáveis também pelo laboratório, os mesmos não tinham mais tempo para a realização das autopsias, e essas passaram a ser cada vez mais negligenciadas.
Com o decorrer do tempo, a melhoria e a sofisticação crescentes nos exames laboratoriais clínicos e de imagem contribuíram bastante para a desvalorização mundial da autopsia. A Patologia Clínica correlacionada com os Exames de Imagem substituiu a clássica correlação anatomoclínica.
Outro ponto polêmico para contribuir para o declínio dessa prática é a chamada “judicialização da medicina”, onde cada vez mais ações judiciais são promovidas contra os médicos, há aqueles que defendam que as autopsias também vêm sendo negligenciadas pelo receio da demonstração de erros no diagnóstico médico após a realização do exame post mortem.
CURIOSIDADE: NAPOLEÃO E A AUTOPSIA
Há relatos de que o próprio Napoleão Bonaparte encorajou a realização de sua autopsia quando fosse o caso. “Depois da minha morte, desejo que façam uma autópsia. Faça um relatório detalhado para meu filho. Indique que remédios ou modo de vida ele pode seguir para evitar seu sofrimento…
Isso é muito importante, pois meu pai morreu… com sintomas muito parecidos com os meus”, disse Napoleão ao seu médico, quando se encontrava apresentando vômitos e febre. Após sua autopsia, foi revelada a presença de uma neoplasia gástrica.
AINDA EXISTEM “TABUS” ACERCA DA REALIZAÇÃO DESTA PRÁTICA?
Como vimos no artigo, é uma prática que vem se desenvolvendo há milênios, mesmo que indiretamente. Sempre foi cercada de tabus e desconfianças.
De certa forma, isso existe até hoje. A incidência de autópsias varia diretamente de acordo com a nacionalidade e religião. Por exemplo, o judaísmo e o islã não encorajam a realização generalizada da mesma.
O FATO É QUE DEVEMOS SER EXTREMAMENTE GRATOS AOS CONHECIMENTOS PROVENIENTES DA REALIZAÇÃO DE AUTOPSIAS E DA PATOLOGIA QUE A ACOMPANHOU.