Vamos lá, pessoal! Mais uma dessa série que venho me encantando a cada artigo que escrevo. É fascinante aprender e/ou rever a história da Medicina, e verificar como avançamos até os dias de hoje. Coisas que são rotineiras e comuns na Medicina atualmente foram revolucionárias na época de sua descoberta.
Seguindo nessa linha, em nosso mundo moderno, provavelmente nos esquecemos (ou nem sabemos) as horríveis realidades cirúrgicas antes da existência da anestesia, por exemplo. Nesse artigo, vamos falar um pouco sobre a era antes da anestesia geral e a grande revolução após sua descoberta.
Vamos começar esse artigo com um relato de Fanny Burney, famosa romancista e dramaturga do século XIX, contando sobre a mastectomia a qual foi submetida sobre o efeito de apenas uma taça de vinho para aliviar a dor (além de sete homens a segurando após o início da cirurgia):
“Quando o terrível aço foi mergulhado no peito – cortando as veias, artérias, carne, nervos, não precisei de injunção para não conter meus gritos. Comecei um grito que durou ininterruptamente durante todo o tempo da incisão. … Oh, céu! – eu então senti a faca contra o osso do peito – raspando-o! Isso foi feito enquanto eu ainda permanecia em uma tortura totalmente muda.”
O QUE É A ANESTESIA GERAL?
De forma concisa, chamamos de anestesia geral o estado que reúne sedação, analgesia, amnésia e paralisia muscular (o famoso bloqueio neuromuscular) induzido pelo uso de medicamentos. É a perda de consciência induzida, reversível e controlada.
OS PRIMÓRDIOS:
As primeiras formas de anestesia conhecidas datam dos tempos pré-históricos na forma de ópio. Os xamãs incas usavam coca para anestesiar um território de corpo.
Na Idade Média, usava-se uma preparação que incluía ópio, suco de amoras amargas, suco de eufórbia, suco de meimendro, suco de mandrágora, suco de hera, sementes de bardana, sementes de alface e sementes de cicuta. Misturava-se bem isso tudo, colocando em um recipiente de cobre com uma esponja e depois fervia até evaporação total.
Depois disso, mergulhava-se a esponja em água quente durante uma hora e, posteriormente, colocava-a sob as narinas do paciente até que ele adormecesse. Para reverter o efeito desse preparo, usava-se esponja embebida em vinagre.
O PRIMEIRO PASSO:
O primeiro passo para a anestesia geral foi dado por Joseph Priestley, com a descoberta do óxido nitroso em 1773. Em 1796, um farmacêutico, Humphry Davy, iniciou os experimentos dos efeitos da inalação de óxido nitroso.
Isso ocorreu na cidade de Penzance, Inglaterra. Ele percebeu que o gás produzia uma sensação agradável, acompanhada de um desejo incontido de rir.
Certa noite, ao estar com dor de dente, percebeu que ao inalar o gás a dor desapareceu completamente e chegou à seguinte conclusão: “Já que o gás hilariante parece possuir a propriedade de acalmar as dores físicas, seria recomendável empregá-lo contra as dores cirúrgicas”.
Na época, a medicina oficial não tomou conhecimento da sugestão.
AINDA TENTANDO O ÓXIDO NITROSO:
Nos Estados Unidos, os efeitos do óxido nitroso e do éter tornaram-se conhecidos e frequentemente eram utilizados em espetáculos públicos com demonstrações de inalação do gás hilariante, assim como algumas reuniões que demonstravam a inalação do éter.
Foi assim que Horace Wells, dentista na cidade de Hartford, em um desses espetáculos do gás hilariante, percebeu também sua propriedade de “analgesia” / ”anestesia”. Com isso, foi tentar utilizá-lo em extrações dentárias. Horace realizou uma experiência em si próprio. Solicitou que um colega lhe extraísse um dente após inalação de óxido nitroso.
O resultado foi a anestesia e também uma sensação de euforia e bem-estar. Com isso, ficou empolgado e decidiu tentar realizar uma apresentação na Faculdade de Medicina de Harvard. Na época, um estudante se ofereceu como modelo e a demonstração foi um fracasso!
O estudante gritou de dor e Horace Wells foi expulso como charlatão e impostor. Ainda persistindo, após retornar à sua cidade, administrou quantidade excessiva do gás e o paciente teve uma parada cardiorrespiratória, e quase evoluiu a óbito. Após esses insucessos, abandonou as experiências e a profissão de dentista.
A DESCOBERTA DA ANESTESIA GERAL MODERNA – E SEUS PRIMEIROS USOS:
A descoberta da anestesia geral é atribuída, mais comumente, a três americanos: o médico Crawford W. Long e os dentistas Horace Wells e William Morton.
Em 1842, Long removeu um cisto do pescoço de um paciente, enquanto este inalava éter, um gás anestésico.
Em 1844, Wells extraiu muitos dentes usando óxido nitroso, conhecido como gás hilariante (conhecido assim pelo estado de relaxamento e felicidade provocado por essa substância).
Historicamente, a data de 16 de outubro de 1846 é considerada como a data em que se realizou a primeira intervenção cirúrgica oficial com anestesia geral. Isso ocorreu no anfiteatro cirúrgico do Massachusetts General Hospital, em Boston.
O procedimento realizado foi a retirada de um tumor no pescoço de um jovem de dezessete anos (Gilbert Abbot). A cirurgia foi realizada pelo cirurgião John Collins Warren. Gilber Abbot foi anestesiado com éter pelo dentista William Thomas Green Morton, utilizando um aparelho inalador.
O episódio foi imortalizada através de um quadro do pintor Robert Hinckley em 1882. Warren proferiu as seguintes palavras na ocasião: “Daqui a muitos séculos, os estudantes virão a este hospital para conhecer o local onde se demonstrou pela primeira vez a mais gloriosa descoberta da ciência.”.
No início, Morton não revelou a natureza química da substância utilizada. Dava o nome a ela de letheon (derivando do grego lethe, com significado “rio do esquecimento”).
Esse hábito de “esconder” não durou muito tempo, pois a Associação Médica de Boston pressionou Morton a fim de utilizar a substância em outros procedimentos livres de dor.
Com isso, foi revelado que o composto era apenas éter sulfúrico puro.
Após a demonstração de Morton no anfiteatro cirúrgico em Boston, o uso de anestésicos começou a se espalhar rapidamente. Em 1847, Johann Friedrich Dieffenbach, um pioneiro da cirurgia plástica, escreveu: “O sonho maravilhoso de que as dores nos foram tiradas tornou-se realidade.
Dor, a consciência mais elevada de nossa existência terrena, a sensação mais distinta da imperfeição do nosso corpo, deve se curvar diante do poder da mente humana, diante do poder do vapor do éter.”.
A perda total de sensibilidade durante um ato cirúrgico, até então, era considerada impossível e utópica.
DEPOIS DO ÉTER E DO ÓXIDO NITROSO:
Nos anos seguintes às essas descobertas, novos agentes anestésicos foram introduzidos na prática médica. Foram adicionados aos dois anteriormente citados, medicamentos como o clorofórmio (primeira vez utilizado em 1847). Em 1930, o ciclopropano e o halotando em 1956.
Em soma a tudo isso, métodos além da inalação foram desenvolvidos como, por exemplo, a anestesia local, venosa, raquianestesia, entre outras técnicas.
Em 1902, o termo anestesiologia foi criado e, hoje, é uma das mais importantes especialidades médicas.
GUILHERME, E COMO OCORREU TUDO ISSO NO BRASIL?
A princípio, a anestesia geral chegou ao Brasil em 1847. A primeira anestesia geral com o uso de éter no país foi realizada no Hospital Militar do Rio de Janeiro pelo médico Roberto Jorge Haddock Lobo, em maio de 1847.
Logo o éter foi trocado pelo clorofórmio e, em 1848, foi a primeira vez que este foi utilizado, desta vez na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
NOS DIAS DE HOJE:
Com o passar do tempo, cada vez mais novas drogas eram descobertas e entravam para o arsenal da anestesia geral.
Hoje, temos uma variedade imensa de sedativos, hipnóticos, analgésicos, anestésicos, bloqueadores musculares, para que os profissionais de anestesiologia possam utilizar o que julgarem mais adequados para cada paciente e procedimento em particular.
Hoje, as chamadas anestesias gerais são cada vez mais seguras, eficazes e corriqueiras.
Que bom que não precisamos mais contar com apenas uma taça de vinho para realizar uma cirurgia ou correr o risco de um efeito anestésico inexistente, não é mesmo?