Introdução
Quem nunca ouviu falar sobre as hérnias? Quem nunca atendeu um paciente que apresentava alguma hérnia? Difícil não ter tido ainda contato com essa patologia uma vez que as hérnias, de maneira geral, são achadas frequentes na população e estão entre as mais antigas afecções registradas da humanidade.
Mas afinal, o que são hérnias?
A hérnia é a protusão, ou seja, o escape parcial ou total de um ou mais órgãos por um orifício que se abriu, seja por má formação ou enfraquecimento, nas camadas de tecido protetoras dos órgãos internos do abdome. Os tipos de hérnia são baseados no local em que ocorrem e, neste artigo, vamos destacar as características das hérnias inguinais e femorais. Nesse sentido, para nos familiarizarmos com o tema, é extremamente relevante termos em mente algumas características específicas desses tipos de hérnia:
• hérnia femoral: aparece como uma saliência pouco abaixo da virilha. É mais comum em mulheres do que em homens. Uma porção do intestino extravasa pela passagem que normalmente é usada pelos grandes vasos sanguíneos (a artéria e a veia femoral) quando eles passam pelo abdome até a perna.
• hérnia inguinal: aparece como uma protuberância na virilha. Uma porção do intestino “escapa” por uma área de fraqueza na parede abdominal chamada de canal inguinal. É mais comum em homens do que em mulheres.
Em termos gerais, pode- se dizer que a hérnia inguinal é mais comum que a hérnia femoral e do que outras hérnias da parede abdominal (como por exemplo a hérnia umbilical e a epigástrica). Por outro lado, sabe- se que as hérnias femorais apresentam complicações mais frequentes.
Epidemiologia
As hérnias inguinais ou femorais são causas importantes e significativas de atendimentos ambulatoriais por queixas gastrointestinais. Segundo estimativas norte- americanas, a prevalência desses dois tipos de hérnias é estimada entre 5 e 10 por cento, sendo a hérnia inguinal mais comum que a hérnia femoral (da quantidade total de hérnias inguinais e femorais, cerca de 96% são inguinais e apenas cerca de 4% são femorais) e que outras hérnias da parede abdominal, incluindo as hérnias umbilicais, epigástricas, etc.
Esse dado pode fazer com que você pense que, já que são menos comuns, as hérnias femorais não são tão importantes assim em termos de estudo. Porém, essa noção é extremamente equivocada. Isso porque, apesar de a sua incidência ser bem menor, elas apresentam clinicamente um maior potencial de complicações, dentre as quais podemos mencionar o encarceramento e estrangulamento (essas complicações em hérnias femorais são mais frequentes do que em hérnias inguinais).
Então as hérnias femorais possuem maior risco de encarceramento?
Exatamente! Na realidade, podemos dizer que as hérnias inguinais indiretas e as femorais são as que possuem maior risco de encarceramento. Devido ao fato de as hérnias inguinais serem mais frequentes do que as femorais, em termos absolutos temos que a maioria das hérnias encarceradas são inguinais. No entanto, se levarmos apenas em consideração o risco de encarceramento, as que apresentam maior risco são as femorais.
E em qual sexo essas hérnias são mais comuns?
De maneira geral, sabe- se que as hérnias são mais comuns nos homens em comparação com as mulheres e nos brancos em comparação com os não brancos. Nesse sentido, os homens são cerca de oito vezes mais propensos a desenvolver uma hérnia e apresentam aproximadamente 20 vezes mais probabilidade de precisar de um reparo de hérnia em comparação com as mulheres. Ainda, estima- se que o risco ao longo da vida de desenvolver uma hérnia inguinal ou femoral é de aproximadamente 25% em homens, enquanto que para mulheres é de menos de 5%.
E a idade de acometimento? Qual é a diferença entre homens e mulheres?
Pode- se dizer que as mulheres manifestam hérnias na virilha mais tarde do que os homens. Em uma revisão, a mediana de idade na apresentação foi de 60 a 79 anos de idade para mulheres em comparação com 50 a 69 anos de idade para homens, sendo a faixa etária de pico na apresentação para hérnia indireta em mulheres entre 40 a 60 anos de idade.
Hérnia inguinal x hérnia femoral
As hérnias da virilha são classificadas em hérnias inguinais – as quais podem ser indiretas ou diretas – ou femorais. Embora as hérnias femorais representem menos de 10 por cento de todas as hérnias na virilha, elas são responsáveis por cerca de 20 a 31 por cento dos reparos em mulheres, em comparação com apenas 1 por cento em homens. Em relação à faixa etária de acometimento, também são observadas diferenças significativas no que concerne às hérnias femorais, já que essas ocorrem mais tardiamente na vida do que as hérnias inguinais. Quando analisado em indivíduos com idade acima de 70 anos, as hérnias femorais representam cerca de 52% dos reparos em mulheres, enquanto em homens representa em torno de 7%.
Hérnia inguinal direta ou indireta?
As hérnias inguinais são classificadas em hérnias diretas e indiretas. Nesse contexto, a hérnia inguinal indireta figura como a hérnia inguinal mais comum em ambos os sexos. Segundo estimativas suecas, a hérnia inguinal indireta foi responsável por 49% dos reparos em mulheres e 54% em homens. Por outro lado, a hérnia inguinal direta é responsável por 30 a 40 por cento das hérnias na virilha em homens, mas em aproximadamente 14 a 21 por cento das hérnias na virilha em mulheres.
Fatores de risco
Os fatores de risco para o desenvolvimento de hérnia incluem o histórico de hérnia ou de reparo prévio de hérnia (incluindo a infância), idade mais avançada, sexo masculino, raça caucasiana, presença de fatores que cursam com aumento da pressão intra- abdominal (como a vigência de tosse crônica e de constipação crônica), presença de lesão da parede abdominal, tabagismo e histórico familiar de hérnia.
E a obesidade? Qual é a relevância no que se refere ao acometimento por hérnias?
Embora a hérnia na virilha possa ser mais difícil de diagnosticar em pacientes com excesso de peso, as evidências disponíveis parecem indicar que a obesidade é um fator de risco negativo para a hérnia inguinal em homens e mulheres. Supreendentemente, um grande estudo observacional de um registro sueco de hérnia envolvendo 49.092 pacientes encontrou uma menor prevalência de hérnia na virilha na obesidade do que na população geral (5 versus 10 por cento).
Classificação e patogênese
As hérnias podem ser classificadas de forma ampla por etiologia congênita versus adquirida e por localização anatômica. Hérnias congênitas geralmente ocorrem na virilha, embora possam ser encontradas em outros locais, como no umbigo ou no canal femoral. Já em relação ao sistema anatômico, de forma simplificada, essas hérnias da virilha são separadas em hérnias inguinais diretas, hérnias inguinais indiretas e hérnias femorais.
Etiologia
Em relação à etiologia, cabe diferenciar e classificar as hérnias levando- se em consideração se a mesma ocorre devido a um defeito congênito ou se é adquirida. Deve- se ter em mente que a hérnia congênita é um resultado do desenvolvimento anormal, enquanto a hérnia adquirida ocorre graças a alterações de tecidos que se desenvolveram normalmente, mas que por motivos variados foram acometidos por certo “enfraquecimento” ou mesmo por ruptura.
Hérnias inguinais congênitas
As hérnias inguinais congênitas ocorrem devido à falha do fechamento do processo vaginalis. Em relação ao sexo masculino, o processo vaginal é uma invaginação do peritônio parietal que precede a migração e a descida dos testículos. Analogamente, essa mesma invaginação ocorre nas fêmeas, sendo a porção do processo vaginal no interior do canal inguinal chamada de “canal de Nuck”, que geralmente oblitera em torno do oitavo mês de vida fetal.
Em condições normais nos homens, após a descida dos testículos, o anel inguinal interno normalmente se fecha. No entanto, em alguns casos pode haver falha de fechamento do anel inguinal interno, combinado com a falha de obliteração do processo vaginal, o que fornece o defeito necessário através do qual os tecidos abdominais podem passar (incluindo dentre os tecidos abdominais as alças intestinais de delgado e ceco), o que pode ocorrer durante a infância e até a idade adulta.
Por outro lado, no sexo feminino, o anel interno é mais estreito e pode explicar a menor incidência de hérnia inguinal indireta em mulheres. Nesse contexto, vale lembrar que é comum a identificação errônea do ligamento encontrado no saco herniário (o qual é considerado frequentemente de forma equivocada como ligamento redondo, quando na realidade consiste no ligamento suspensor do ovário). Ainda, levando- se em consideração a presença do ligamento suspensor do ovário no saco herniário de mulheres, pode- se compreender com mais clareza a presença ocasional da tuba uterina ou do ovário no saco herniário em pacientes do sexo feminino.
Hérnias adquiridas
As hérnias adquiridas ocorrem devido a um enfraquecimento ou a uma ruptura dos tecidos fibromusculares de parede do corpo, permitindo que o conteúdo intra-abdominal seja projetado através do defeito adquirido. Nesse contexto, as hérnias adquiridas da virilha podem se desenvolver como resultado de diversos fatores, dentre os quais, em geral, figuram anormalidades inerentes do tecido conjuntivo, lesão crônica da parede abdominal ou possivelmente efeitos de drogas.
E em quais casos os tecidos podem romper?
Mais especificamente, os tecidos da virilha podem romper como resultado de processos bioquímicos ou metabólicos inatos ou adquiridos que afetem o tecido conjuntivo devido a alterações no metabolismo do colágeno. Embora raros, vários erros inatos do metabolismo (como anormalidades na síntese de colágeno tipo I e III) podem ser a causa envolvida no desenvolvimento de hérnias. Nesse contexto, pode- se observar, na maioria dos casos, uma tendência à formação de hérnia na história do paciente ou, ainda, na história familiar. Além disso, uma informação interessante é a associação existente entre doença aneurismática da aorta – a qual está relacionada a anormalidades do tecido conjuntivo – e a vigência de hérnia inguinal.
E em relação aos fármacos? Esses podem favorecer a vigência de hérnias?
Pergunta esquisita, não é mesmo? Pois bem, por mais que à primeira vista possa parecer improvável, o enfraquecimento dos tecidos também pode resultar de efeitos farmacológicos (então, nossa resposta para a pergunta acima é sim!). Por exemplo, a administração crônica de glicocorticoides está associada ao afinamento da pele e ao enfraquecimento dos tecidos, o que pode predispor ao desenvolvimento de hérnia. Além desses, vale lembrar que existem outros fatores que afetam a integridade do tecido conjuntivo, como por exemplo a idade avançada e o tabagismo.
É verdade que a realização de exercício físico intenso pode favorecer o surgimento de hérnias? Por que isso acontece?
Vamos lá, a realização de exercício extenuante está relacionada à elevação da pressão intra- abdominal, assim como a vigência de tosse crônica, de constipação, de exercício extenuante e de gravidez. Levando- se em consideração o fato de que as hérnias diretas ocorrem com frequência incomum em indivíduos atléticos, diversos estudos buscaram esclarecer os mecanismos envolvidos. Nesse contexto, convém dizer que a relação entre hérnias inguinais e esforço intermitente ou levantamento pesado não é clara, tendo sido publicados estudos bastante divergentes (alguns estudos sugerem que a incidência de hérnia não é maior em profissões que realizam trabalho manual pesado do que em profissões sedentárias, enquanto outras chegam à conclusão oposta). Resumindo: ainda não temos segurança para definir a resposta a essa pergunta de forma consistente.
Localização anatômica
As hérnias de virilha são classificadas de acordo com a localização anatômica do defeito da parede abdominal. Vários esquemas de classificação para hérnias na virilha existem, mas o sistema mais simples e útil identifica hérnias na virilha pelo local anatômico do defeito tecidual que separa as hérnias da virilha em hérnias inguinais indiretas e diretas e hérnias femorais.
Hérnia inguinal indireta
Como dito anteriormente, as hérnias inguinais indiretas são o tipo mais comum de hérnia tanto em homens quanto em mulheres. Esse tipo de hérnia projeta-se no anel inguinal interno, que é o local onde o cordão espermático nos homens e o ligamento redondo nas fêmeas sai do abdome. A maioria das hérnias inguinais indiretas em adultos é congênita, embora possam não ser clinicamente aparentes no período neonatal ou na infância. Em pacientes com um processo vaginal patente, aumentos na pressão intra-abdominal em associação com tônus muscular reduzido ou outras anormalidades do tecido conjuntivo podem forçar o conteúdo abdominal através do anel inguinal interno alargado para o canal inguinal, resultando em uma hérnia clinicamente detectável. Anatomicamente, a origem do saco herniário está localizada lateralmente à artéria epigástrica inferior e, curiosamente, as hérnias indiretas desenvolvem-se mais frequentemente à direita em ambos os sexos.
Como assim? Por que mais à direita em ambos os sexos?
Acredita- se que tal fato ocorre, no sexo masculino, devido a uma descida posterior do testículo direito e, no sexo feminino, devido à assimetria da pelve feminina. Postula- se que fatores como o atraso do fechamento do canal inguinal à direita, bem como a presença do cólon sigmoide à esquerda (o qual pode tamponar o canal femoral e o anel inguinal interno à esquerda) contribuam para o fato.
Hérnia inguinal direta
As hérnias inguinais diretas ocorrem como resultado de uma fraqueza no assoalho do canal inguinal. Esta fraqueza parece ser devida a anormalidades do tecido conjuntivo em muitos casos, embora algumas possam ocorrer devido a deficiências na musculatura abdominal resultantes de alongamento crônico ou lesão. Anatomicamente, as hérnias inguinais diretas projetam-se medialmente aos vasos epigástricos inferiores dentro do triângulo de Hesselbach, que é formado pelo ligamento inguinal (ligamento de Poupart) inferiormente, os vasos epigástricos inferiores lateralmente e o músculo reto abdominal medialmente.
Hérnia femoral
As hérnias femorais estão localizadas abaixo do ligamento inguinal e se projetam através do anel femoral, que é medial à veia femoral e lateral ao ligamento lacunar e pode tornar- se mais “largo” com o decorrer do envelhecimento e após a lesão. As hérnias femorais são mais comuns em mulheres. Mais uma vez, é extremamente relevante termos o conhecimento de que, embora as hérnias femorais sejam o tipo menos comum de hérnia, 40% apresentam-se como emergências com encarceramento ou estrangulamento. Sendo assim, esse tipo de hérnia merece uma atenção especial.