Não é novidade que a dieta mediterrânea está relacionada a inúmeros benefícios no que concerne à saúde individual, sobretudo no que se refere ao sistema cardiovascular. Como abordado em nosso artigo Dieta Mediterrânea e seus impactos sobre a saúde, esse tipo de alimentação pode influenciar de formas variadas os diversos sistemas do corpo humano. Dentre os estudos, merecem destaque os que possuem como temática principal os impactos sobre o sistema cardiovascular. Nesse contexto, já foram demonstrados benefícios importantes desse tipo de dieta, como por exemplo, no que se refere ao favorecimento da redução da pressão arterial (PA) e da redução da incidência de doenças cardiovasculares, como a doença arterial coronariana (DAC) e o acidente vascular cerebral (AVC).
Nesse ínterim estudos já mostraram que, de forma mais específica, a redução do consumo de carnes vermelhas e da adição de açúcares, por exemplo, têm sido associada a uma baixa incidência de acidente vascular cerebral e de doença arterial coronariana. Por outro lado, o investimento em gorduras monoinsaturadas presentes na dieta mediterrânea e uma alimentação rica em frutas e vegetais parece aumentar significativamente tanto a concentração, quanto a função da lipoproteína de alta densidade (HDL) no sangue, a qual também é chamada de “colesterol bom”.
No entanto, apesar de diversas publicações terem como cerne os benefícios da dieta mediterrânea para o sistema cardiovascular, poucas conseguiram demonstrar quais seriam os mecanismos implicados. Por isso, um novo estudo publicado no JAMA Network Open direcionou o foco da investigação para além dos benefícios, buscando também desvendar possíveis mecanismos envolvidos. Nesse estudo a investigação partiu, basicamente, da constatação de que, apesar de a maior ingestão de dieta mediterrânea já ter sido associada em inúmeros trabalhos a menor risco de doença cardiovascular, os dados disponíveis sobre os mecanismos moleculares subjacentes a essa associação em populações humanas são escassos e imprecisos.
A ideia
Segundo o próprio autor do estudo, o Dr. Samia Mora, “enquanto estudos anteriores mostraram benefício para a dieta mediterrânea na redução de eventos cardiovasculares e na redução dos fatores de risco cardiovascular, ainda é um terreno desconhecido como as melhorias em fatores de risco conhecidos e novos contribuem para esses efeitos”. Portanto, para suprir essa demanda por esclarecimentos, os pesquisadores envolvidos no estudo coletaram dados do Women’s Health Study. O autor principal do estudo, Shafqat Ahmad, liderou pesquisadores do Brigham and Women’s Hospital, da Harvard Medical School, e da Harvard T.H. Chan School of Public Health – todos em Boston, MA – e, ao todo, eles tiveram acesso aos registros de saúde e hábitos alimentares de 25.994 mulheres, todas consideradas saudáveis no início do estudo, as quais foram acompanhadas pelos pesquisadores por um período máximo de 12 anos.
Dessa maneira, no decorrer do trabalho, os pesquisadores mediram os níveis de 40 biomarcadores, incluindo lipídios, mediadores de inflamação, do metabolismo da glicose e lipoproteínas. Além disso, fizeram uma divisão dos participantes do estudo em três grupos, classificados de acordo com a adesão à dieta mediterrânea. Assim, dependendo de quão estritamente eles aderiram à dieta, foram distribuídos entre os grupos de baixa, de média e de alta ingestão.
Estudos anteriores: o que já se sabia
Com base em evidências de estudos clínicos, estudos de coorte prospectivos, recomendações da American Heart Association e as Diretrizes Dietéticas para Americanos 2015-2020, um padrão de dieta mediterrânea (MED) está associado à prevenção de doenças cardiovasculares, mesmo em populações não- mediterrâneas. Nesse contexto, dois ensaios clínicos randomizados europeus realizados em países do Mediterrâneo examinaram uma intervenção de ingestão de alimentos incluídos na dieta mediterrânea versus uma dieta controle e encontraram reduções significativas em eventos clínicos de doenças cardiovasculares. No estudo Lyon Diet Heart, por exemplo, 605 homens franceses com um primeiro infarto do miocárdio (IAM) foram randomizados para a intervenção MED contra a dieta controle, resultando em 50% a 70% menor risco relativo de doença cardiovascular recorrente e os biomarcadores intermediários de doença cardiovascular medidos – incluindo os lipídios tradicionais – foram similares entre os grupos de estudo.
Posteriormente, o estudo Prevención con Dieta Mediterránea (PREDIMED) constatou que uma intervenção baseada na adoção de uma alimentação baseada na dieta mediterrânea enriquecida com nozes ou azeite extra- virgem reduziu os primeiros eventos de doença cardiovascular em 30%, quando comparada a uma dieta controle com baixo teor de gordura em uma população espanhola de alto risco. A adoção do padrão de dieta mediterrâneo (MED) nessa população espanhola com maior risco de doença cardiovascular foi associado a mudanças em vários fatores de risco de cardiovasculares, incluindo níveis reduzidos de lipoproteínas de baixa densidade (LDL), diminuição dos níveis de triglicerídeos (TG), aumentos nas lipoproteínas de alta densidade (HDL), melhorias na pressão arterial, no perfil de sensibilidade à insulina e alterações favoráveis no que concerne a mediadores de inflamação. No entanto, esse estudo não deixou claro qual dessas mudanças favoráveis pode mediar o benefício do MED na redução da incidência de doenças cardiovasculares.
Além disso, vale a pena mencionar que estudos prévios sobre desfechos intermediários – mas não de eventos clínicos – também demonstraram efeitos favoráveis da adesão à ingestão de uma dieta mediterrânea em biomarcadores cardiometabólicos, incluindo síndrome metabólica, melhora no perfil de resistência à insulina, dentre outros.
Observou- se também, em um estudo norte- americano, a atenuação da associação da ingestão de MED sobre o risco cardiovascular por meio de vias relacionadas ao metabolismo da glicose e resistência à insulina, adiposidade, pressão arterial, lipídeos tradicionais, medidas de HDL e VLDL e, em menor grau, tamanho e partículas de LDL, mas não LDL ou colesterol total. Da mesma forma, Park e colsrelataram que a obesidade medeia a associação entre a ingestão de MED em resistência à insulina e biomarcadores de inflamação.
Além disso, estudos observacionais em populações norte-americanas relataram que uma ingestão de 20% maior na alimentação baseada a dieta mediterrânea foi associada a 9% de redução do risco relativo em eventos cardiovasculares no seguimento de curto prazo de até 4 anos, mas não foi possível concluir se o consumo de MED protege contra eventos cardiovasculares nessas populações dos EUA a longo prazo. E, nesse contexto, convém mencionar que os mecanismos precisos pelos quais a adoção de um padrão alimentar, baseado na dieta mediterrânea, está associada à redução do risco a longo prazo de eventos de doença cardiovascular não são bem compreendidos.
Portanto, diante do material anteriormente divulgado e das dúvidas que se empunham, o objetivo do estudo publicado pelo JAMA – o qual é discutido neste artigo – foi pautado na necessidade de averiguar se a maior ingestão de MED estaria associada com menor risco de eventos cardiovasculares em uma população americana de indivíduos inicialmente saudáveis, com seguimento de longo prazo (> 10 anos), além de caracterizar melhor e de quantificar a contribuição relativa de um painel de 40 fatores tradicionais e novos para a redução do risco associado a dieta mediterrânea em eventos de doenças cardiovasculares. De maneira geral, podemos dizer que o estudo publicado no JAMA apresentou várias características interessantes, incluindo seu desenho prospectivo, o grande tamanho da amostra, a presença de informações detalhadas sobre a ingestão de medicamentos pelos indivíduos avaliados, bem como a análise dos biomarcadores medidos, os quais foram bastante variados, abrangendo desde os fatores de risco convencionais até os presentes em hipóteses mais recentes. Além disso, merece destaque o fato de o estudo ter sido realizado por um longo período de acompanhamento.
Os achados: o que o estudo trouxe de novidade?
Além de ter sido um trabalho científico extremamente importante por consistir no primeiro estudo a explorar o impacto da dieta mediterrânea sobre as doenças cardiovasculares de longo prazo feito a partir de uma população dos Estados Unidos (EUA), ele produziu conclusões importantes e de muita relevância para a comunidade científica. Pautado no grande interesse dos envolvidos no estudo, sobretudo, em relação aos eventos cardiovasculares, como o acidente vascular cerebral (AVC) e o infarto agudo do miocárdio (IAM), foi possível concluir que:
· No grupo de baixa ingestão, 4,2 por cento das mulheres tiveram um evento cardiovascular;
· No grupo de média ingestão, 3,8 por cento das mulheres tiveram um evento cardiovascular;
· No grupo de ingestão superior, 3,8 por cento das mulheres tiveram um evento cardiovascular.
Desta forma, segundo os autores, a conclusão é de que “a ingestão de dieta mediterrânea foi associada com a redução de aproximadamente um quarto no que se refere ao risco de eventos cardiovasculares durante um período de acompanhamento de 12 anos.” Além disso, os autores também observam que esse tamanho de efeito é equivalente ao presente em pessoas que tomam estatinas, as quais são drogas comumente prescritas pelos médicos com o objetivo de reduzir o risco cardiovascular.
Proporção de redução de eventos cardiovasculares explicada por potenciais mediadores
A partir desse estudo prospectivo, o consumo inicial de dieta mediterrânea foi avaliado em 25.994 mulheres americanas, inicialmente saudáveis, as quais foram acompanhadas por um período de até 12 anos. Nesse caso, as informações do estudo de linha de base e as amostras foram coletadas entre 30 de abril de 1993 e 24 de janeiro de 1996, enquanto as análises foram realizadas entre 1º de agosto de 2017 e 30 de outubro de 2018. Ao comparar esse estudo do JAMA com os estudos anteriormente vigentes, percebe- se ele foi inovador, na medida em que avaliou os potenciais efeitos mediadores de um painel de 40 biomarcadores, incluindo lipídeos, lipoproteínas, apolipoproteínas, inflamação, metabolismo da glicose e resistência à insulina, aminoácidos de cadeia ramificada, metabólitos de moléculas pequenas e fatores clínicos.
Em relação aos fatores investigados, com o objetivo de constatar possíveis alterações dignas de nota, bem como a vigência de algum padrão de alteração desses metabólitos, foi descoberto que as alterações no que concerne aos biomarcadores relacionados à inflamação foi responsável por cerca de 29% da redução no risco de doenças cardiovasculares. Além disso, fatores relacionados ao metabolismo da glicose e resistência à insulina representaram 27,9%, enquanto o índice de massa corporal (IMC) para 27,3% e pressão arterial de 26,6%. A equipe também observou relações entre vários outros elementos, incluindo lipídios, mas esses mostraram relações menos pronunciados. De acordo com o Dr. Mora, nesse grande estudo, foi detectado que diferenças modestas nos biomarcadores contribuíram de forma multifatorial para este benefício cardiovascular que foi visto a longo prazo.
Resultados e conclusões do estudo
Entre 25.994 mulheres, comparado com o grupo de referência que apresentou baixo consumo de dieta mediterrânea, foram observadas reduções no risco de doenças cardiovasculares para os grupos de consumo médio e elevado de dieta mediterrânea. Os maiores mediadores da redução do risco de doença cardiovascular no contexto de ingestão de alimentos baseados na dieta mediterrânea foram os biomarcadores de inflamação (representando 29,2% da associação MED – doença cardiovascular), mediadores envolvidos no metabolismo da glicose e resistência à insulina (27,9%), índice de massa corporal (IMC, 27,3%), seguidos pressão arterial (PA, 26,6%), lipídios tradicionais (26,0%), e de lipoproteínas de alta densidade (HDL, 24,0%) ou lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL, 20,8%). Além disso, foram detectadas contribuições menores de lipoproteínas de baixa densidade (13,0%), de cadeia ramificada aminoácidos (13,6%), apolipoproteínas (6,5%) ou outros metabólitos de pequenas moléculas (5,8%). No total, esses resultados mostram que esses fatores de risco explicam parte da associação, o que não impede que fatores adicionais não mensurados também possam contribuir.
Conclui- se, a partir desse estudo, que o consumo mais elevado de dieta mediterrânea está associado a aproximadamente um quarto da redução do risco relativo nos eventos cardiovasculares, o que pode ser explicado em parte por fatores de risco conhecidos, tanto tradicionais quanto novos. Devido ao fato de não ter sido anteriormente esclarecido se o consumo de dieta mediterrânea está associado a benefícios cardiovasculares a longo prazo nas populações dos Estados Unidos (EUA) – nem quais seriam os mecanismos biológicos subjacentes com o potencial de mediar esse benefício – o estudo em questão representou um grande avanço no arsenal de conhecimentos até então vigentes, ao demonstrar que em uma grande população inicialmente saudável de mulheres dos EUA, a ingestão mais elevada de alimentos componentes da dieta mediterrânea foi associada a aproximadamente um quarto menor risco de eventos cardiovasculares durante um período de 12 anos de acompanhamento.
Importante: limitações do estudo
Existem várias limitações que precisam ser reconhecidas. Não podemos descartar a possibilidade de confusão residual relacionada a fatores de risco para doenças cardiovasculares não mensurados. É possível que algumas das covariáveis – incluindo a hipertensão arterial (HAS) – possam ser influenciadas pela ingestão de MED, o que sugere que essas variáveis poderiam ser confundidores ou mediadores.
Além disso, os participantes do estudo foram mulheres dos EUA, as quais podem ter comportamentos diferentes do que os homens ou indivíduos de maior risco.
Pode- se dizer, portanto, que os resultados do estudo em questão sugerem que uma parte do menor risco de eventos cardiovasculares relacionados à ingestão de alimentos baseados na dieta mediterrânea pode ser explicada por fatores conhecidos relacionados à inflamação, ao metabolismo da glicose e à resistência à insulina, assim como ao índice de massa corporal (IMC), à pressão arterial (PA) e ao perfil lipídico (em particular HDL e VLDL). Apesar disso, uma proporção considerável do benefício potencial do consumo de dieta mediterrânea (MED) para a redução do risco de doenças cardiovasculares permanece inexplicável e requer investigação futura de mecanismos adicionais.