Até hoje, poucas coisas são tão difíceis de explicar na Medicina como os príons. Imagina então quais foram as consequências e repercussão que ocorreram após sua descoberta.
O reconhecimento deles ocorreu, de certa forma, pelo surgimento de algumas doenças causadas por essas partículas.
Atualmente, conhecemos algumas enfermidades graves e com potencial de acometimento socioeconômico gigantesco. Apesar de consideradas extremamente raras, acredita-se que as consequências socioeconômicas no sistema de saúde são trágicas. Uma dessas já afetou a economia de um país de forma inigualável. Por isso, o reconhecimento dessas partículas foi de suma importância para a Medicina e para a Humanidade.
ANTES DE MAIS NADA: O QUE SÃO PRÍONS?
Os príons são proteínas que podem ser encontradas na superfície externa das células cerebrais (principalmente aves e mamíferos), e também podem ser encontradas, em menor quantidade, em outros órgãos. Chegar a essa descoberta não foi nada fácil! Era uma proteína totalmente desconhecida até que pesquisadores perceberam que uma forma anormal da mesma proteína era capaz de causar graves doenças. Portanto, aqui já percebemos que proteína apresenta uma forma normal e uma anômala, que é a responsável pelas enfermidades.
Uma das características mais inusitadas (e também preocupantes) é que a proteína possui a capacidade de se propagar mesmo sem a presença de ácidos nucleicos.
QUAIS SÃO AS DOENÇAS CAUSADAS PELOS PRÍONS?
Com suas naturezas proteicas e infecciosas, as doenças priônicas podem ocorrer de forma transmissível e hereditária degenerativa no Sistema Nervoso.
As principais doenças causadas pelos príons são denominadas de Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis, podendo acometer boninos, ovinos, caprinos, humanos e algumas aves. O mecanismo de ação dos príons ainda não é muito bem definido, o que gera grande curiosidade e preocupação sobre o tema, já que, no caso de doença, não há cura e a progressão ocorre como uma “demência” e encefalite rapidamente progressivas, com a maioria dos pacientes evoluindo a óbito dentro de 1 ano após início das manifestações.
A doença mais famosa ocorrida por essa causa é a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ), versão extremamente grave desse espectro de doenças, que foi popularmente confundida com a “Doença da Vaca Louca”.
A HISTÓRIA DA “DOENÇA DA VACA LOUCA”:
A “Doença da Vaca Louca” é uma enfermidade causada por príons nos bovinos, que pode ser muito semelhante à forma humana da Doença de Creutzfeldt-Jakob (inclusive uma das hipóteses para a causa da doença é a ingestão de carnes contaminadas por príons anômalos). Já já vamos explicar de onde veio esse nome, algo “inusitado” para a Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB).
A EEB é desenvolvida através do contato com o cérebro, ou outros tecidos do sistema nervoso de um exemplar contaminado. O contato pode acontecer por ingestão de alimentos ou derivados contaminados por tecido nervoso, ou por instrumentos que entraram em contato com tecido nervoso doente (hipótese muito parecida com a da DCJ).
Após contato com a proteína alterada, a mesma consegue invadir o tecido cerebral, onde pode permanecer inativa por anos (10 a 15). Após ativação, há uma intensa reação inflamatória com destruição de tecido cerebral, formando “buracos” como esponjas (daí o nome genérico dessas doenças).
De onde surgiu?
A doença surgiu na década de 1980, na Inglaterra. Em meados de abril de 1985, diversos veterinários clínicos de campo dos países pertencentes ao Reino Unido começaram a relatar aos órgãos de vigilância de saúde animal de seus países casos de bovinos (em sua maioria vacas adultas) com adoecimento por uma enfermidade fatal. Tal doença se apresentava com sinais e sintomas característicos de disfunção do sistema nervoso central (SNC).
A doença foi descrita oficialmente em novembro de 1986, com ocorrência de aproximadamente 8 casos bovinos por mês. Em 1987, relatada na Veterinary Record, a revista que representa os veterinários britânicos, a incidência já beirava os 70 casos por mês. No auge do que se transformou em uma grande epidemia, de dezembro de 1992 a janeiro de 1993, mais de 3.500 casos aconteceram em um mês.
No início da epidemia, a doença acometia somente animais adultos. Por característica, os animais criados como leiteiros eram mais acometidos do que os de corte.
E como ocorreu tamanha epidemia nos gados britânicos? Bem, o desenvolvimento da EEB foi associado ao uso de farinha de carne e ossos, que era utilizada como alimentação do gado. Essa farinha é fabricada através da transformação industrial de corpos de animais e introduzida para a produção de rações a fim de alimentar animais da mesma espécie. Com isso, a epidemia cresceu de forma exponencial, já que os animais que morriam pela EEB eram utilizados como material para a produção desse tipo de farinha. Portanto, os animais doentes, de certa forma, eram levados de volta ao rebanho de animais sadios através da alimentação. Um dado relevante é que, após o reconhecimento desta questão, o governo do Reino Unido proibiu, em 1988, o uso de qualquer ruminante ou derivados nas rações animais.
As grandes consequências para o Reino Unido na época:
Devido à epidemia ocorrida nos anos 1980, a produção de miúdos bovinos para consumo humano foi proibida em 1989 (houve um grande temor da população por possivelmente se contaminar com o consumo de produtos de carne processada).
Em 1990, o então ministro da agricultura, John Gummer, talvez afetado pelo grande impacto econômico que aquilo havia causado, disse que a carne de vaca era “completamente” segura. Para “provar” sua hipótese, convocou a imprensa e comeu um hambúrguer na frente de todos. Também tentou convencer sua filha de 4 anos a comer, mas na ocasião a menina recusou. Esse fato foi antes da ciência confirmar ou não os riscos da doença em humanos.
Na epidemia, ao todo, 100 mil casos de acometimento de gados foram confirmados. Estima-se que foram mais de 180 mil indivíduos bovinos acometidos. Para se tentar conter a doença, mais de 4,4 milhoes de animais foram sacrificados (imagine o cenário socioeconômico!).
Depois disso, o controle da carne no Reino Unido se tornou muito mais rígido. Por exemplo, cérebro e medula espinhal dos animais são descartados e não voltam para a cadeia de alimentação. Durante um tempo, tornou-se ilegal vender carne com osso.
Muitos países deixaram de importar carne do Reino Unido. A China só voltou atrás dessa restrição mais de 20 anos depois.
Por que a doença recebeu popularmente esse nome?
Isso foi decorrente dos sintomas causados pela doença. Os animais contaminados com a proteína alterada se tornavam agressivos, possuíam acometimento da coordenação motora e apresentavam comportamentos diferentes dos habituais. Até que faz um certo “sentido” o nome, não é mesmo?
A DOENÇA DE CREUTZFELDT-JAKOB – “A VERSÃO HUMANA DO MAL DA VACA LOUCA”:
Muito se assemelha a doença priônica bovina, acometendo o sistema nervoso central do paciente.
A forma exata de transmissão ainda não é totalmente conhecida, mas acredita-se que as formas de aquisição podem ocorrer através da forma esporádica (quando não há uma fonte infecciosa conhecida nem evidência de história familiar); forma hereditária; iatrogênica (utilização de materiais neurocirúrgicos contaminados, transplantes de órgãos); também é aceita a teoria que a ingestão de carne de gado portador da doença possa ser um fator de risco.
Geralmente acomete uma faixa etária mais jovem entre 16 a 48 anos, com uma gama enorme de sintomas. Geralmente é caracterizada como uma demência rapidamente progressiva (rápida mesmo! Em questão de poucos meses o indivíduo já se encontra totalmente dependente e sem interação com o meio externo) e, tendo como marca, a presença de mioclonias.
O diagnóstico é de difícil realização específica, mas todo paciente com as características acima deve ser suspeito. O diagnóstico específico consiste em, além de clínica sugestiva, dosagem de proteína 14,3,3 no líquor; padrões característicos no eletroencefalograma e também na imagem por Ressonância Magnética.
Não há tratamento específico, e o indivíduo evolui a óbito inoxeravelmente em até 1 ano (normalmente o tempo de sobrevida é bem menor que esse).
FINALMENTE A HISTÓRIA DA DESCOBERTA DOS PRÍONS:
Isso começou bem antes do que a gente imagina. No século XVIII, na Grã-Bretanha, alguns criadores de carneiros e gados começaram a induzir o cruzamento de animais considerados fortes e sadios de cada raça a fim de se obter a produção de indivíduos que apresentassem as melhores características no que diz respeito à produção de leite, lã e carne. Como sabemos hoje, a endogamia pode favorecer o surgimento também de características indesejáveis. Com isso, esses cruzamentos culminaram em algumas raças de carneiros que apresentavam comportamentos estranhos, com distúrbios motores, com características do que hoje conhecemos como Encefalopatias Espongiformes. No entanto, na época nem se suspeitou da possível causa.
Em 1957, foi descoberta uma tribo denominada Fore, localizada na Oceania, mais precisamente na região da Papua Nova Guiné, onde indivíduos morriam com uma doença conhecida localmente como Kuru pelos nativos. Doença esta que acometia o sistema nervoso, culminando em desordens do movimento, alteração comportamental, agressividade e morte em poucos meses. Nessa tribo, era prática comum o canibalismo. Com a ajuda de antropólogos, os médicos Vicent Dias e Carleton Gadjusek exploraram esses dados.
Séculos depois, em 1962, o cientista James Parry propôs que o scrapie (doença neurodegenerativa fatal que acomete ruminantes, principalmente os ovinos) poderia ter origem hereditária e transmissível. Na época, essa teoria não foi muito bem aceita.
Em 1976, o médico norteamericano citado há dois parágrafos, Daniel Carleton Gadjusek, ganhou o prêmio Nobel de Medicina por ter descoberto a causa da doença de Kuru, dos aborígenes canibais da Oceania, doença que era há muito tempo tratada como viral (possivelmente priônica).
Até as décadas de 1960 e 1970, muitos acreditavam que a DCJ (descoberta na década de 1920) era causada por um vírus de ação lenta. No entanto, em 1967, o matemático inglês J. S. Griffith propôs que o possível agente infeccioso da doença era, na realidade, uma proteína. O cientista foi duramente criticado na ocasião (como muitos pioneiros na ciência e medicina).
No entanto, em 1972, o cientista norteamericano Stanley Prusiner começou a se interessar e estudar muito os príons, após a morte de um de seus pacientes com DCJ. Via que todos os casos que ele estudou tinham em comum a mesma via de transmissão: eram transmitidas através de tecido cerebral contaminado. Sendo assim, começou a purificar extratos de cérebro de animais infectados com a finalidade de isolar o agente causados da doença. Após muito esforço, chegou ao mesmo resultado que alguns haviam chegado anteriormente: os causadores de tais enfermidades eram constituídos basicamente por proteínas.
Prusiner denominou tal agente como “príon”, abreviatura do termo proteinaceous infectious particle. Assim como Griffith anteriormente, Prusiner teve a teoria criticada a não muito aceita inicialmente.
Em 1984, Prusiner e Leroy Hood conseguiram identificar 15 aminoácidos da proteína príon. Com isso, também obtiveram sucesso em isolar o local do gene PRP, responsável pela formação de tais partículas proteicas, que oficialmente também foi chamada de PrP (sigla que significa Proteína Resistente à Protease).
MAIS UM PRÊMIO NOBEL:
A descoberta dos príons deu a Stanley Prusiner o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1997.
UM TEMA AINDA POUCO CONHECIDO:
Apesar do grande avanço que tivemos no tema “príon” desde que tudo isso começou, ainda é um assunto com muitas dúvidas, tanto sobre suas partículas e mecanismo de ação, quanto com relação às doenças que são causadas por elas. Ainda há muito a se descobrir sobre o assunto!
VALEU, PESSOAL! ESSE FOI MAIS UM TEMA DA NOSSA SÉRIE “HISTÓRIA DA MEDICINA”!