Quantas vezes você já ouviu alguém falar sobre um idoso que tem se tornado cada vez mais esquecido, mais confuso para a realização das tarefas cotidianas, trocando nomes de parentes: “Ah! Isso é da idade! Normal da idade!”. Bom, será que isso realmente é normal ou é o início discreto de um declínio na capacidade funcional?
A síndrome demencial pode ser causada por um grupo vasto e distinto de doenças, que possuem, em comum, o declínio cognitivo (perda de memória, acometimento do tato social, distúrbios de linguagem, déficit motor, entre outros), levando à perda da capacidade funcional.
A medida que a população envelhece, a carga global de demência aumenta em todo o mundo. Dessa forma, os médicos devem estar preparados para avaliar a cognição dos seus pacientes, e investigar sempre o declínio funcional, para evitar possíveis falhas e atrasos no reconhecimento de quadros demenciais. Além disso, existem diversos tipos de demência no nosso meio, sendo importante também sermos capazes de reconhecer as mais diferentes formas desse acometimento.
Sendo assim, a missão deste artigo é alertar para o fato de não ser “normal da idade” essa regressão cognitiva, podendo ser o início de um quadro demencial. Além disso, tentaremos ajudar no surgimento da hipótese diagnóstica e em como avaliar a possibilidade da presença ou não de um quadro demencial, sem focar, no momento, no tratamento.
COMO AS DEMÊNCIAS COSTUMAM SE APRESENTAR?
Geralmente, são doenças de evolução insidiosa e progressiva, mas também podem ser causadas por lesão específica, que determina início agudo e déficit cognitivo estável. Na maioria das vezes, os déficits são irreversíveis (no entanto, é sempre importante buscarmos causas passíveis de reversão como deficiências nutricionais, distúrbios metabólicos, doenças inflamatórias, infecções, lesões expansivas de sistema nervoso central).
O público mais acometido é a população idosa, mas pode ocorrer em pacientes mais jovens, sendo conhecida como demência pré senil quando ocorre antes dos 65 anos.
QUAL A POPULAÇÃO TIPICAMENTE AFETADA?
Como já dito, o predomínio do acometimento é sobre a população idosa (sendo a idade o principal fator de risco para demência). A partir dos 65 anos, a prevalência dobra a cada 5 anos. Dados brasileiros informam que 30% dos pacientes na faixa etária dos 85-89 anos são acometidos por algum grau de quadro demencial.
Outros fatores de risco associados são analfabetismo, baixa escolaridade e participação reduzida em atividades intelectuais. Esses achados sustentam a hipótese do que chamam de “reserva cognitiva”, ou seja, a atividade intelectual seria um fator protetor para o desenvolvimento de demência.
QUAIS SÃO AS POSSÍVEIS ETIOLOGIAS?
Nesse tópico, vamos exemplificar algumas das etiologias mais importantes e, mais para frente do artigo, cada uma delas serão detalhadas de maneira mais específica.
Podemos citar as etiologias da seguinte maneira:
– Neurodegenerativas:
. Alzheimer;
. Corpúsculos de Lewy;
. Frontotemporal;
. Demência da doença de Parkinson
– Cerebrovascular:
. Infarto cerebral único;
. Múltiplos microinfartos ou isquemia subcortical por doença de pequenos vasos
– Causas potencialmente reversíveis:
. Hidrocefalia de pressão normal;
. Alterações eletrolíticas;
. Disfunção tireoidiana;
. Deficiência de vitaminas;
. Infecções;
. Medicamentosa
– Outras causas:
. Doença priônica (Creutzfeldt-Jakob);
. Induzida por radioterapia
Estudos populacionais brasileiros demonstram a seguinte distribuição no nosso país: Alzheimer: 55,1%, 14,1% com demência mista (Alzheimer + cerebrovascular), 9,3% demência vascular pura.
E COMO, DE FATO, SUSPEITO?
Bom, aqui vou dar algumas dicas sobre a avaliação inicial quando se há suspeita do quadro demencial e, depois, vamos dissecar as demências mais importantes.
Quando um paciente chega ao seu consultório, ou um familiar ou amigo vem comentar com você que ainda está cursando Medicina, sobre queixas cognitivas, este achado não está diretamente associado com maior risco de demência. Antes de tudo, devemos avaliar se não há a possibilidade de existir algum transtorno depressivo ou ansioso associado (relação muito mais comum). Assim, diante de um paciente que busca ajuda por queixa cognitiva, a investigação de sintomas psiquiátricos é obrigatória.
Queixas numerosas e super detalhadas com acometimento predominante de dificuldade de atenção e linguagem, em geral, possuem menor risco para estarmos de frente com um quadro demencial. Já queixas mais vagas, abrangendo dificuldade de memória episódica (esquecer acontecimentos e/ou conversas), já indicam maior risco.
Aquele paciente que lhe procurar sozinho, e com testes cognitivos normais, pode ficar tranquilo sobre a benignidade do quadro. Por outro lado, um paciente que apresente testes limítrofes ou alterados deve ter um familiar de convívio próximo convocado para a consulta. Seguindo a mesma linha, pacientes que vão à consulta levados por familiares preocupados com o declínio cognitivo do indivíduo devem ser avaliados com muito cuidado, pois geralmente terão algum grau de comprometimento.
Enfim, vamos agora destrinchar um pouco das causas mais comuns de demência no nosso meio.
. Doença de Alzheimer:
O quadro clínico típico da demência de Alzheimer pode ser dividido em fases da seguinte forma:
– Fase leve: nesta, predomina o acometimento da memória episódica. Por exemplo, o indivíduo não consegue memorizar uma pequena lista de compras, atentar para compromissos agendados, lembrar detalhes de conversas e acontecimentos. Alguma dificuldade de orientação temporal já pode ser observada. Atividades rotineiras mais complexas como gerenciamento de finanças, uso de medicamentos nos horários corretos, deslocamentos para fora de casa já estão comprometidas. Quanto ao comportamento, o mais comum nessa fase é encontrarmos apatia, irritabilidade e depressão;
– Fase moderada: aqui, há grande dificuldade de armazenar novas informações. O paciente se encontra mais lentificado, tem mais dificuldade de encontrar as palavras mais adequadas para utilizar, a desorientação no tempo e no espaço é ainda mais proeminente. Não se encontra apto para resolver problemas e realizar planejamentos. A capacidade de julgamento também já começa a ser comprometida. Muitas vezes necessita de lembretes para tarefas como tomar banho, necessitando de auxílio em atividades básicas. Nessa fase, alguns indivíduos manifestam sintomas psicóticos, distúrbio do sono e agitação psicomotora.
– Fase grave: acometimento grave de todas as funções cognitivas. Dificuldade importante e progressiva da marcha, dependência total ou quase total de qualquer atividade básica, incontinência urinária e fecal são características dessa fase. O indivíduo necessita de algum cuidador em tempo integral. Os sintomas comportamentais já presentes costumam persistir, com piora grave da apatia. Intercorrências clínicas como emagrecimento, infecções de repetição, desidratação e delirium são cada vez mais comuns.
. Demência vascular:
O quadro vai variar de acordo com a topografia das lesões. Há um predomínio de déficit em funções executivas e da velocidade psicomotora. A memória pode estar afetada, mas o paciente consegue recuperar algo, após “dicas”. Depressão e apatia são comuns.
A história, em geral, é diferente da doença de Alzheimer. Costuma ter um início súbito ou “em degraus” (pioras súbitas com estabilização seguinte). Os exames de imagem são fundamentais aqui para verificar a presença de lesões e confirmar a hipótese.
. Demência por Corpos de Lewy:
Pode existir flutuação cognitiva e as funções visuoespaciais podem ser afetadas precocemente. Marcadamente, caracteriza-se por alucinações, parkinsonismo rígido e acinético, falência autonômica (síncope, hipotensão postural, quedas, incontinência urinária, constipação intestinal) e hipersensibilidade aos neurolépticos.
Os exames de neuroimagem não são específicos para o diagnóstico, porém nos exames de neuroimagem funcionais podemos perceber hipocaptação em região occipital.
. Demência frontotemporal:
No início do quadro, as funções cognitivas estão preservadas. O que mais marca este tipo de demência é a alteração comportamental precoce e significativa, com episódios de desinibição, impulsividade, apatia, julgamentos errôneos, aumento da ingestão alimentar, negligência da higiene. Ao avançar do quadro, surgem déficits de linguagem e das funções executivas.
A história é mais precoce do que a maioria das demências, iniciando na 6ª década de vida. Os exames de neuroimagem estrutural podem revelar atrofia focal nos lobos frontal e temporal. A imagem funcional revela hipocaptação do lobo frontal.
EXISTEM TESTES DE TRIAGEM PARA A AVALIAÇÃO DO PACIENTE COM SUSPEITA DE QUADRO DEMENCIAL?
Sim! Os mais diversos. São utilizados exatamente na avaliação inicial do paciente que apresenta esse tipo de suspeita. Alguns dos mais conhecidos são o Miniexame do estado mental (“Mini mental”) (A), avaliação cognitiva Montreal (B), lista de palavras “consortium to establish a registry for Alzheimer’s disease” (CERAD) (C).
(A)- é composto por um somatório de pequenos testes que envolvem orientação temporal, espacial, registro de palavras, contas simples, evocação de palavras, nomeação de objetos, repetição de frase, execução de comandos verbais.
(B)- também consiste em somatório de tarefas: conexão alternada de números e letras, copiar desenhos (cubo, relógio), nomeação de figuras, repetir dígitos na ordem direta e indireta, vigilância auditiva, subtração seriada, repetir frases, fluência verbal, abstração, evocação de palavras e orientação.
(C)- esse teste é composto por 10 palavras impressas em cartões (manteiga, carta, poste, motor, braço, rainha, bilhete, praia, cabana, erva). O paciente é orientado a ler em voz alta e memorizar. Após esse período, deve repetir todas as palavras que lembrar. Isso é realizado 3 vezes.
Além desses testes de triagem, também existem questionários para os acompanhantes/informantes dos pacientes com suspeita de demência. Alguns exemplos são questionário de Pfeffer (questionário das atividades funcionais) e questionário do informante sobre o declínio cognitivo do idoso (IQCODE). No primeiro, é relatado o grau de independência do paciente em 10 tarefas do dia a dia (ex.: como cuida do dinheiro, fazer compras, tomar remédios, entre outras). É pontuado de 0 a 3 (totalmente capaz – não é capaz). Já no segundo, o acompanhante deve comparar as habilidade atuais do paciente com as que o mesmo tinha há 10 anos atrás, pontuando de 1 a 5, numa escala que vai de muito melhor a muito pior.
QUAIS EXAMES DEVO PEDIR FRENTE A UM PACIENTE QUE SUSPEITO DE DEMÊNCIA?
O diagnóstico de demência é clínico! Devemos baseá-lo na história e na avaliação objetiva das funções cognitivas do indivíduo. Os exames complementares devem se solicitados apenas para a busca de causas potencialmente reversíveis e auxiliar na definição da causa do quadro demencial.
Por exemplo, exames de neuroimagem estrutural, como TC ou RNM, devem ser realizados na avaliação inicial de qualquer paciente com diagnóstico de demência, para que possamos afastar causas reversíveis (ex.: hematoma subdural, hidrocefalia de pressão normal e neoplasia).
Já sobre os exames laboratoriais, não há um consenso sobre quais devem ser realizados de rotina na avaliação inicial desses pacientes. No entanto, na prática médica, é comum solicitarmos, pelo menos, vitamina B12 (o seu déficit é a causa mais comum de demência potencialmente reversível entre os idosos), TSH, ácido fólico, sorologias (principalmente sífilis e HIV), hemograma, função renal, marcadores hepáticos, glicemia, eletrólitos (ex.: sódio e cálcio).
Outros exames, como líquido cefalorraquidiano, marcadores genéticos e biomarcadores devem ser solicitados em situações muito especificas. O primeiro, em casos de apresentação pré senil, evolução rápida, em que há suspeita de doenças inflamatórias, infecciosas ou priônica. O segundo seria em casos em que há o desejo de se predizer a possibilidade de desenvolver demência. Por exemplo, alelos específicos da apolipoproteína E possuem relação com maior risco de desenvolvimento da doença de Alzheimer. Lembrando que não é diagnostico, apenas preditivo!
RESUMINDO:
Após toda essa leitura, chegamos à conclusão que o diagnóstico de demência deve ser firmado em pacientes que apresentem:
. história consistente de declínio cognitivo, confirmada por informante com convívio próximo do paciente;
. déficit cognitivo demonstrado objetivamente através de testes específicos;
. déficits cognitivos capazes de afetar a independência do indivíduo, ou seja, há a necessidade de se ter alguém para auxiliar de forma significativa nas atividades de vida diária.
Lembrando que todos os anteriores não podem ser atribuídos a transtornos psiquiátricos como depressão maior, transtorno afetivo bipolar e esquizofrenia.