Não é importante apenas diagnosticar a Endocardite Infecciosa (EI), mas também perseguir com muito afinco o possível agente causal e iniciar a terapêutica antibiótica guiada contra o mesmo. A terapia antibiótica na EI é um tema sempre muito controverso, no sentido de qual esquema a ser realizado. As sociedades, muitas vezes, possuem recomendações distintas entre si. Neste artigo, vamos tentar simplificar um pouco a compreensão deste tópico.
O objetivo primário do tratamento antibiótico é a erradicação da infecção, esterilização de vegetações (quando elas existirem). Em alguns casos, a cirurgia será necessária para o tratamento completo e adequado, principalmente na presença de material infectado intracardíaco (próteses, “devices”, vegetações muito extensas ou sem resolução apenas com antimicrobiano, abscessos ou outras complicações).
Esquemas antibióticos bactericidas já se comprovaram mais eficientes no tratamento da EI do que os bacteriostáticos. Por isso, muitas vezes, vemos esquemas combinados no tratamento desta situação. Por exemplo, os aminoglicosídeos são capazes de realizarem sinergismo com inibidores da parede celular bacteriana (betalactâmicos e glicopeptídeos), aumentando sua capacidade bactericida e diminuindo o tempo de tratamento.
Uma grande dificuldade no tratamento antibiótico da EI é a presença, tanto de tolerância, quanto de resistência antibiótica por parte dos microorganismos. Além disso, muito comum a associação com formação de vegetações e biofilmes, o que atrapalha, e muito, o tratamento, tanto para penetração do fármaco, quanto no prolongamento do tempo de terapêutica (no mínimo, 6 semanas nesses casos).
Há algumas recomendações e considerações atuais muito importantes no tratamento da EI:
– Os aminoglicosídeos não são mais recomendados de rotina nas infecções estafilocócicas de valvas nativas, já que não demonstraram benefício clínico importante, em contraste com a sua capacidade de nefrotoxicidade;
– A rifampicina só deve ser usada em infecções associadas com corpo estranho (ex.: prótese valvar) após 3 a 5 dias de antibioticoterapia efetiva (ou seja, após resultados de hemoculturas negativas, quando eram positivas inicialmente);
– Daptomicina e fosfomicina têm sido recomendadas como terapia alternativa para endocardite estafilocócica. No caso de utilização da daptomicina, deve ser administrada em altas doses (no mínimo, 10 mg/kg 1x/dia) e associada com um segundo antibiótico para evitar o desenvolvimento de resistência;
– Embora haja alguns consensos sobre o tratamento antibiótico, o tratamento ideal e empírico para EI estafilocócica ainda são objetos de diversos debates.
Abaixo, iremos separar o tratamento guiado para os grupos mais importantes na EI e, posteriormente, comentaremos o tratamento empírico e de possíveis complicações.
Estreptococos orais e Streptococcus bovis sensíveis à Penicilina:
A cura esperada na EI causada por esses agentes e tratada corretamente é de aproximadamente 95%. Em casos não complicados, um curso de duas semanas já costuma ser o necessário.
Antibiótico | Posologia | Duração | Comentários |
Sensíveis à Penicilina | | | |
Tratamento de 4 semanas: | | | |
.
Penicilina G
Ou . Amoxicilina Ou . Ceftriaxone | .
12-18 milhões U/dia 4-6x/dia .100-200 mg/kg/dia 4-6x/d . 2g/dia IV 1x/d | .
4 semanas . 4 semanas . 4 semanas | Esquema preferencial em pacientes > 65 anos ou com disfunção renal. Em prótese valvar: 6 semanas de tratamento. |
Tratamento de 2 semanas: | | | |
.
Penicilina G
Ou
.
Amoxicilina
Ou
.
Ceftriaxone COMBINADO COM . Gentamicina | esses
seguem a mesma linha do tratamento de 4 semanas . 3 mg/kg/dia IV 1x/d | .
2 semanas . 2 semanas . 2 semanas . 2 semanas | Esquema recomendado para pacientes com valva nativa, sem complicação nem disfunção renal. |
Em pacientes alérgicos à penicilina | | | |
. Vancomicina | . 30 mg/kg/dia em duas doses | . 4 semanas | Em pacientes com prótese valvar, recomenda-se 6 semanas |
Penicilina resistentes | | | |
Tratamento de escolha | | | |
.
Penicilina G
Ou
.
Amoxicilina
Ou
.
Ceftriaxone COMBINADO COM . Gentamicina | .
24 milhões U/dia 4-6x/d
.
200 mg/kg/dia 4-6x/d
.
2g/dia 1x/dia . 3 mg/kg/dia 1x/d | .
4 semanas . 4 semanas . 4 semanas . 2 semanas | 6 semanas de tratamento em prótese valvar |
Em pacientes alérgicos a betalactâmicos | | | |
.
Vancomicina + . Gentamicina | .
30 mg/kg/dia em 2 doses . 3 mg/kg/dia em 1 dose | .
4 semanas . 2 semanas | 6 semanas de tratamento em prótese valvar |
Streptococcus pneumoniae, estreptococos beta hemolíticos (grupo A, B, C e G):
Após a introdução dos antibióticos, EI causadas por esses organismos têm sido cada vez mais raras. É associada com quadro de meningite em 30% dos casos. O tratamento para os germes sensíveis e resistentes à penicilina é idêntico ao explicado na tabela acima (porém, sempre indicado 4 semanas de tratamento). No entanto, nos casos associados com meningite, contraindica-se o uso de penicilina pela baixa penetração no líquor, sendo recomendado o uso de Ceftriaxone ou Cefotaxima, somente ou em associação com vancomicina, de acordo com a susceptibilidade do agente causal.
Staphylococcus aureus e estafilococos coagulase negativos:
O primeiro é comumente responsável por quadros de EI aguda e graves, enquanto o segundo agente é mais relacionado com infecções de próteses valvares. A tabela abaixo resumirá as opções terapêuticas.
Antibiótico | Posologia | Duração | Comentários |
Valvas Nativas | | | |
Sensível à Meticilina | | | |
. Oxacilina | . 12g/dia IV em 4-6 doses | .
4-6 semanas | Combinação com gentamicina não é recomendada, por falta de benefício comprovada e risco de toxicidade renal. |
Alternativa: . Clindamicina | . 1800 mg/dia IV em 3 doses | | |
Alérgicos à penicilina ou meticilina resistentes | | | |
.
Vancomicina Alternativa: . Daptomicina | .30-60
mg/dia IV em 2-3 doses . 10 mg/kg/dia IV 1x/d | .
4-6 semanas . 4-6 semanas | |
Valvas protéticas | | | |
Sensível à Meticilina | | | |
.
Oxacilina + . Rifampicina E . Gentamicina | .
12 g/dia IV em 4-6 doses . 900-1200 mg IV ou oral em 2-3 doses . 3 mg/kg/dia IV em 1-2 doses | .
mínimo 6 semanas . mínimo 6 semanas . 2 semanas | Iniciar
Rifampicina 3-5 dias após gentamicina A gentamicina pode ser realizada em apenas 1 dose para diminuir nefrotoxicidade |
Alérgicos à penicilina ou Meticilina resistente | | | |
.
Vancomicina + . Rifampicina E . Gentamicina | .
30 mg/kg/dia IV em 2-3 doses . 900-1200 mg IV ou oral em 2-3 doses . 3 mg/kg/dia IV em 1-2 doses | .
Mínimo 6 semanas . mínimo 6 semanas . 2 semanas | |
Enterococcus spp.:
A maioria das EI causadas por enterococos tem como agente causal o Enterococcus faecalis (90% dos casos). Nesses agentes, destaca-se dois problemas: são altamente resistentes aos antibióticos, necessitando de terapêuticas mais agressivas e prolongadas (mínimo de 6 semanas); podem ser resistentes a múltiplas drogas, incluindo aminoglicosídeos, betalactâmicos e vancomicina.
Dessa forma, é muito comum que a terapia envolva combinações de agentes bactericidas inibidores de parede celular, como, por exemplo, ampicilina + ceftriaxona.
As cepas sensíveis à penicilina podem ser tratadas com penicilina G ou ampicilina em combinação com gentamicina.
Nos últimos anos, houve dois avanços importantes no tratamento da EI por enterococos. O primeiro foi a demonstração que um esquema com ampicilina + ceftriaxone é tão eficaz quanto ampicilina + gentamicina naquelas cepas não resistentes, diminuindo assim o risco de nefrotoxicidade. O segundo avanço é o fato de se poder usar a gentamicina em apenas uma dose diária (ao invés das 2-3 doses recomendadas anteriormente), além de podermos encurtar o tratamento de 4-6 semanas para 2 semanas naqueles agentes não resistentes.
Bactérias Gram negativas:
– Grupo HACEK
Os bacilos gram negativos do grupo HACEK (Haemophilus spp., Actinobacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella) são organismos causadores de EI de evolução fastidiosa, podendo até mesmo apresentarem um laboratório não tão sugestivo de infecção. Como crescem de forma lenta, muitas vezes o teste de sensibilidade antimicrobiana fica prejudicado. Alguns agentes desse grupo são produtores de betalactamase. Por outro lado, costumam ser sensíveis a ceftriaxone, outras cefalosporinas de 3ª geração e quinolonas.
O esquema de escolha é Ceftriaxone 2g/dia durante 4 semanas para valvas nativas e 6 semanas para valvas protéticas. Em caso de organismos não produtores de betalactamase, ampicilina (12 g/dia IV em 4-6 doses) associada com gentamicina (3 mg/kg/dia em 2-3 doses) durante 4-6 semanas é uma opção.
– Espécies não HACEK
As bactérias bacilos gram negativos não HACEK são responsáveis por apenas 1,8% dos casos de EI. O tratamento proposto, em geral, é cirurgia precoce em associação com antibioticoterapia prolongada (mínimo de 6 semanas), com esquema de betalactâmicos + aminoglicosídeos.
E o tratamento para aqueles organismos que geralmente apresentam hemoculturas negativas?
Vamos conferir na tabela abaixo os agentes mais prevalentes dessa situação e seus tratamentos propostos.
PATÓGENO | TERAPÊUTICA | ACOMPANHAMENTO |
Brucella spp. | Doxiciclina
(200 mg/d)
+
Cotrimoxazol
(960 mg 12/12h)
+
Rifampicina
(300-600 mg/d) Por 3-6 meses | Tratamento adequado: quando títulos de anticorpos se encontram < 1:60 |
C. burnetti | Doxiciclina
(200 mg/d)
+
Hidroxicloroquina
(200-600 mg/d) Por mais de 18 meses | Tratamento adequado: IgG I < 1:200 e IgA e IgM < 1:50 |
Bartonella spp. | Doxiciclina 100 mg 12/12h por 4 semanas + Gentamicina (3 mg/d) por 2 semanas | Sucesso terapêutico esperado em mais de 90% dos casos |
Legionella spp. | Levofloxacino (500 mg 12/12h) por, no mínimo, 6 semanas Ou Claritromicina (500 mg 12/12h) IV por 2 semanas, oral por mais 4 semanas + Rifampciina (300-1200 mg/d) | Sem dados sobre o melhor tratamento |
Mycoplasma spp. | Levofloxacino (500 mg 12/12h) IV ou oral por, no mínimo, 6 semanas | Sem dados sobre o melhor tratamento |
T. whipplei | Doxiciclina (200 mg/d) + Hidroxicloroquina (200-600 mg/d) VO por, no mínimo, 18 meses | Tratamento prolongado, sem dados sobre o melhor tratamento. |
E quanto aos Fungos?
Acometem mais os pacientes usuários de drogas injetáveis, aqueles que possuem prótese valvar e imunocromprometidos. As espécies mais prevalentes são Candida e Aspergillus spp. A mortalidade da endocardite fúngica é alta (> 50%), e o tratamento necessita da administração de antifúngicos e, muitas vezes, procedimento cirúrgico.
O tratamento para Candida inclui anfotericina B (lipossomal de preferência) em associação (ou não) com equinocandinas em altas doses. Para Aspergillus, voriconazol é a droga de escolha. Geralmente, o tratamento é prolongado.
Tratamento Empírico da Endocardite Infecciosa
O tratamento antibiótico não deve ser postergado na EI (porém, lembrando de coletar as hemoculturas antes) e o esquema empírico inicial dependerá de fatores como: se o paciente recebeu antibiótico recentemente, se a infecção afeta uma valva nativa ou protética, qual origem infecciosa (comunidade, hospitalar) e o perfil de resistência de cada local.
Nos pacientes com valva nativa ou infecção de prótese valvar tardia (1 ano após o procedimento), devemos pensar em cobrir estafilococos, estreptococos e enterococos. Já nos pacientes com infecção precoce de prótese valvar ou EI associada a cuidados de saúde, recomenda-se a cobertura para esfatilococos meticilina resistentes, enterococos e também Gram negativos não HACEK. Assim que o patógeno for identificado, o esquema antibiótico deve ser substituído pelo tratamento guiado.
ANTIBIÓTICO | POSOLOGIA | COMENTÁRIOS |
EI adquirida na comunidade em valvas nativas ou valvas protéticas tardias (no mínimo, 1 ano após procedimento) | | |
.
Ampicilina + . Oxacilina + . Gentamicina | .
12 g/dia IV em 4-6 doses . 12 g/dia IV em 4-6 doses . 3 mg/kg/dia IV em 1 dose | |
.
Vancomicina + . Gentamicina | .
30-60 mg/kg/dia IV em 2-3 doses . 3 mg/kg/dia em 1 dose | ESQUEMA PARA ALÉRGICOS À PENICILINA *** |
Infecção de prótese valvar precoce ou hospitalar ou associada a cuidados de saúde | | |
.
Vancomicina + . Gentamicina + . Rifampicina | .
30 mg/kg/dia IV em 2 doses . 3 mg/kg/dia IV em 1 dose . 900-1200 mg IV ou oral em 2-3 doses | A rifampicina só é recomendada para o caso de prótese valvar e deve ser iniciada 3-5 dias após o esquema de vancomicina + gentamicina. Alguns especialistas recomendam o uso de rifampicina (mesmo em pacientes sem prótese valvar) em locais onde a prevalência de MRSA > 5%. |
As principais complicações da Endocardite Infecciosa e seus tratamentos:
O tratamento cirúrgico é necessário em aproximadamente metade dos pacientes com endocardite infecciosa, devido às complicações. Razões para a abordagem cirúrgica do paciente que ainda se encontra em uso de antibiótico é a insuficiência cardíaca aguda, com consequência da infecção, disfunção valvar importante ou embolia sistêmica. Essas são situações de grande discussão médica, já que operar um paciente com infecção ativa apresenta um grande risco, porém essas situações geralmente não se resolvem sem abordagem cirúrgica.
A falência cardíaca é a principal complicação da Endocardite infecciosa e apresenta uma indicação comum de cirurgia. Geralmente é causada por uma nova (ou piora) insuficiência aórtica ou insuficiência mitral. Possui indicação IB para abordagem de emergência (dentro de 24 horas) em insuficiência mitral ou aórtica, fístula intracardíaca ou obstrução valvar, que culminem em edema pulmonar refratário ou choque cardiogênico. A cirurgia deve ser realizada em caráter de urgência (em poucos dias, preferência < 7 dias) naqueles pacientes com as mesmas situações acima, porém com estigmas de insuficiência cardíaca apenas no ECOcardiograma e sinais/sintomas.
Outra indicação para a abordagem cirúrgica é a infecção não controlada ou persistente (caracterizada como febre e culturas positivas após 7-10 dias de antibiótico). Nesses casos, novo ECOcardiograma deve ser realizado e, se houver presença de abscesso valvar, aneurisma, fístula ou vegetação extensa, há indicação IB de cirurgia de urgência. Em infecções causadas por fungos ou organismos multirresistentes com falência de tratamento, a indicação é IC para cirurgia de urgência ou eletiva.
Nos casos de eventos embólicos, nos quais os sítios mais acometidos são cérebro e baço, há indicação IB de cirurgia de urgência naqueles pacientes com vegetação > 10 mm após 1 ou mais episódios de evento embólico, apesar do tratamento antibiótico adequado.
Nesse tópico, de complicações de EI, que é motivo de extenso estudo e de tamanha complexidade, optamos por documentar apenas os eventos mais importantes e com maior nível de evidência, sem a pretensão de esgotar o assunto.
Após ler este artigo com muita paciência (e haja paciência!!!) e cuidado, acredito que já se tenha uma boa noção inicial do tratamento da endocardite infecciosa. Vale a pena lembrar que o tratamento ideal para esta situação necessita de abordagem de diversos especialistas como cardiologistas, cirurgião cardíaco, infectologistas e clínicos!
Leia também: https://academic.oup.com/eurheartj/article/36/44/3075/2293384#108779637