Passamos os 6 anos de faculdade e tantos mais de especialização aprendendo a utilizar cada fármaco para determinada causa, doença ou sintoma, aprendendo a prescrever cada droga com suas dosagens e tempo de terapia. Mas, e quando precisamos DESprescrever? Será que sabemos quando é necessário suspender ou não indicar uma determinada medicação?
Dentro da Geriatria, o termo “polifarmácia” é bastante conhecido, pois quase 30% dos idosos utiliza 5 ou mais medicamentos por dia. Isso, além dos custos, implica maior chance de efeitos colaterais e interações medicamentosas, aumentando a taxa de complicações iatrogênicas, incluindo a de prescrição de medicações consideradas potencialmente inapropriadas. A estatística também mostra dados intrahospitalares: cerca de metade dos idosos que estão internados recebem pelo menos um medicamento considerado desnecessário. Esses eventos adversos, causados pela prescrição inadequada, podem levar à perda da funcionalidade, declínio cognitivo, maior risco de descompensação clínica, maior risco de quedas e hospitalização e até maior risco de morte.
O processo de desprescrição envolve a redução ou interrupção do uso de determinados medicamentos, apoiada na quantidade consistente de estudos na Literatura, que demonstram o alto risco a que os pacientes, principalmente os idosos, estão submetidos pela polifarmácia. Esse processo envolve uma avaliação adequada e atenciosa, com monitorização detalhada, conseguindo retirar na lista de medicações os benzodiazepínicos (tão temidos pelos geriatras!), psicotrópicos e até anti-hipertensivos, de maneira bastante segura.
A desprescrição envolve 5 etapas:
- É preciso definir quais serão os medicamentos que devem ser interrompidos – para isso, devemos sempre nos perguntar: o diagnóstico foi confirmado? Há quanto tempo o paciente utiliza essa medicação? Por que ela foi prescrita? Foi para tratar algum sintoma decorrente de efeito adverso de outro medicamento, gerando a cascata iatrogênica? Existem alternativas não-farmacológicas que sejam efetivas tanto quanto a medicação? Começar com esses questionamentos abre uma gama de opções e possibilidades seguras de retirada de medicação.
- A indicação do medicamento supera o risco do uso dessa droga e está compatível com expectativa de qualidade de vida do paciente? – este ponto é muito importante! Alguns medicamentos não terão significativo benefício para determinados contextos de vida, como por exemplo, pacientes em cuidados paliativos por neoplasia avançada utilizando medicações com efeito a médio e longo prazo, como as estatinas. Deve-se sempre pesar o risco da prescrição, em relação ao próprio fármaco (número de medicamentos que o paciente já usa, toxicidade) e em relação ao paciente (idosos longevos, múltiplas comorbidades, comprometimento cognitivo, vários médicos prescritores, relato de não adesão).
- A relação risco-benefício desse medicamento foi adequadamente avaliada? – os primeiros medicamentos a serem considerados para retirada são: aqueles que tem chance de dano real ou potencial superando o benefício do seu uso; além destes, medicações ditas sintomáticas podem ser consideradas a serem descontinuadas, se não são eficazes ou se os sintomas já estão controlados. A prioridade de retirada será de medicamentos com alto potencial de dano, medicamentos prescritos para diagnósticos não confirmados e medicação prescrita para tratar efeitos adversos de outras drogas. A nossa atenção deve estar voltada para medicamentos contraindicados em populações específicas (como as drogas potencialmente inapropriadas para idosos, uso de beta-bloqueadores em pacientes com asma, etc). Nessa etapa, algumas perguntas são importantes: a medicação é utilizada para melhora de qualidade de vida ou controle da doença? Há real benefício das drogas utilizadas como profilaxia primária de eventos adversos futuros? Após o início da medicação, houve diferença na qualidade de vida do paciente? Ainda existem sintomas? Se a resposta para essas perguntas for “não”, devemos considerar a suspensão do medicamento. É primordial que o paciente participe dessa decisão, estabelecendo quais são as suas expectativas em relação ao tratamento, e que haja o acompanhamento de questões como dificuldade de tomar os comprimidos, interações medicamentosas ou com dieta, alto custo, para garantir a adesão ao tratamento.
- Não se deve retirar várias medicações de uma só vez! – a palavra de ordem é: prioridade! A escolha das drogas a serem retiradas envolve três pré-requisitos: as drogas que têm maior risco e menor benefício, as de menor possibilidade de causar abstinência ou descompensação clínica, e as que o paciente demonstra mais intenção de descontinuar devem ser as primeiras a serem retiradas.
- Acompanhe seu paciente! – o processo de desprescrição exige o seguimento do paciente e das etapas que levaram à escolha pela suspensão da droga; idealmente, cessamos uma medicação de cada vez, para identificar (e corrigir) eventuais danos. Todos os agentes envolvidos no cuidado (paciente, equipe de saúde, cuidadores, familiares) devem ser comunicados sobre essas etapas e suas razões, participando do plano e seguimento terapêutico do paciente.
O STOPPFrail (Screening Tool of Older Persons Prescriptions in Frail adults with limited life expectancy) e os critérios de Beers são recomendações internacionais que consideram determinados medicamentos como inapropriados, facilitando o movimento de desprescrever. O Drug Burden Index é também uma alternativa na avaliação de medicamentos – as drogas com escore elevado foram relacionadas à piora de performance em testes de mobilidade e de capacidade cognitiva em idosos. O site Deprescribing, do Canadá, acumula várias diretrizes sobre o tema, que são de fácil aplicação e bastante utilidade na prática clínica. A grande saída para aprender o que parece ser contrário a tudo que aprendemos durante a faculdade é: continuar estudando! O protocolo de desprescrição tem sido cada vez mais comentado em congressos e estudos, principalmente pautado em Medicina baseada em evidências e na racionalização do uso de recursos em saúde, além do tema ser pauta constante em debates sobre segurança do paciente no contexto hospitalar.
Ouça o seu paciente, peça para ele trazer todos os remédios que utiliza na sua consulta (o conhecido sinal da sacola, em que o paciente tira da bolsa um saco cheio de caixas de remédios), confirme junto com o paciente como ele utiliza cada um, cheque a adesão e o entendimento sobre a função de cada droga. Invista em medidas não-farmacológicas! Dieta balanceada, perda de peso, atividade física e cessação do tabagismo podem ser tão (ou mais) eficazes quanto o uso de uma seleção de medicações. A otimização da terapia medicamentosa é essencial no bom cuidado, principalmente em idosos. A prática da prescrição (e da desprescrição também, por que não?) é complexa e abrange decisões importantes que envolvem dosagens diferenciadas (a maior parte dos estudos que liberam medicamentos não contemplam a população idosa e por isso, muitas vezes, determinadas doses se tornam inapropriadas), chance de toxicidade e aderência, analisando contextos diferenciados e individualizados de funcionalidade, expectativa e qualidade de vida, preferências, valores e objetivos – caso a caso.
A avaliação deve ser minuciosa, sempre contando com a participação do paciente na decisão. Identifique os riscos e os medicamentos não efetivos, avalie a necesidade da continuação desse fármaco e considere cessar todo medicamento considerado potencialmente inapropriado. Simplifique a prescrição: procure a menor dose possível para alcançar o efeito desejado e tente limitar o esquema de tomada de medicação a, no máximo, quatro horários do dia (manhã, tarde, noite, ao dormir; ou manhã, almoço, tarde e noite) para facilitar a adesão do paciente. E lembrando: caso apareça um novo sintoma, antes de pensar em acrescentar um novo fármaco na lista, considere a possibilidade de efeito adverso atípico ou dose-dependente. O bom senso, a atenção e a paciência são ótimos guias para seguir com segurança as boas práticas de prescrição de medicamentos.