As chuvas que fecham o verão se estenderam de forma atípica em diversos estados do Brasil. Os grandes volumes pluviométricos associados a um déficit na infraestrutura do sistema de escoamento de água têm com consequência de forma imediata uma série de alagamentos, enchentes, deslizamento de terra, destruição de casa e consequentemente casos de óbito. O problema é que os agravos em saúde não se limitam aos desastres imediatos associados às chuvas, as complicações se estendem para além dela. E quando o assunto é enchente, o primeiro agravo que pensamos é a leptospirose, mas este não é o único de importância médica para o qual devemos estar atentos. Por isso, é de extrema importância que conheçamos quais são os principais agravos associados a esses desastres naturais, bem como as condutas mais adequadas para eles.
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As enchentes carregam consigo uma série de patógenos diferentes, muitas vezes associados aos solos ou a matéria orgânica em decomposição e excretas de animais. Com as chuvas, esses patógenos são trazidos para o contato com o homem e causam doenças por diferentes formas de transmissão. Além de patógenos, muitos outros objetos como metais e vidros podem carreados pela chuva e causar acidentes. Tudo isso se dá devido ao saturamento das redes de esgoto urbanas e falta de saneamento básico, o resultado é uma série de complicações infecciosas e não infecciosas comuns em grandes desastres naturais, que seriam evitáveis em áreas urbanas com infraestrutura adequada.
Com as grandes chuvas pode ocorrer um comprometimento da qualidade da água para abastecimento urbano, tornando seu consumo inapropriado, bem como a interrupção de seu fornecimento. Por isso é importante que a população seja orientada para que não seja feito o consumo de água de reservatórios que tenham sido inundados, sem que ocorra a limpeza e desinfecção destes. É importante que a Defesa Civil e a PM sejam acionadas e que o abastecimento seja feito com água proveniente de estações de tratamento de água por meio de de carros-pipa regulares. Outra opção é a distribuição do hipoclorito para o tratamento da água. É importante que sejam feitas orientações quanto ao consumo de alimentos, principalmente nos casos em que as chuvas levam a refrigeração inadequada ou nos casos em que houve contato de água contaminada com os alimentos. Estes precisam ser avaliados com cautela e descartados se necessário.
As doenças diarreicas agudas são extremamente frequentes e são decorrentes da transmissão fecal-oral com diversos patógenos (bactérias, vírus ou parasitos) trazidos pelas enchentes. A síndrome diarreica é identificada por três ou mais episódios de evacuações amolecidas ou líquidas dentro das últimas 24 horas e pode estar associada a outros sintomas como febre, vômitos e dor abdominal. Em geral são quadros autolimitados que podem durar cerca de 14 dias. Sinais de alarme para esses quadros são persistência prolongada de febre alta, icterícia, insuficiência renal, hepato-esplenomegalia, diarreia associada a muco ou sangue. Para os quadros de diarreia sem sinais de alarme, hidratação e tratamento sintomático deve ser realizados. A presença de sinais de alarme deve levar a investigação de etiologias que demandam terapia específicas e avaliação de internação hospitalar. Surtos de doença diarreica aguda são de notificação compulsória e imediata.
O vírus da hepatite A, assim como o da hepatite E, também são patógenos de transmissão fecal-oral que tem manifestações clínicas semelhantes. Enquanto que a hepatite E é encontrada no Brasil de forma isolada, com apenas alguns relatos de caso, a hepatite A, apesar do número decrescente de casos anualmente, apresenta endemicidade intermediária a baixa, sendo as regiões norte e nordeste aquelas que apresentam o maior número de casos no pais. Trata-se de uma infecção autolimitada na maioria dos casos, que podem estar associadas ao consumo de alimentos e água contaminados com as enchentes. Nas crianças a hepatite A é frequentemente assintomática ou tem poucos sintomas. São manifestações clínicas associadas a esta infecção: cansaço, anorexia, tontura, náuseas e/ou vômitos, febre, dor abdominal, diarreia, icterícia, coluria e acolia fecal. Alguns casos podem evoluir com hepatite fulminante e óbito, por isso, sua identificação é de extrema importância. Seu diagnóstico é feito pela detecção de anticorpos Anti-HAV IgM positivos, marcador de infecção recente. Na ocorrência de surtos o diagnóstico pode ser clínico-epidemiológico após a confirmação sorológica de pelo menos dois casos. Os exames complementares para esses pacientes devem incluir hemograma completo, transaminases, fosfatase alcalina, Gama GT, bilirrubinas e coagulograma. Não há tratamento específico para hepatite A, portanto, deve se estabelecer tratamento sintomático para náuseas e vômitos e repouso até melhora do quadro. Casos graves devem ser internados para estabilização. A vacina para hepatite A é produzida a partir do vírus não vivo e é disponibilizada na rede pública em uma única dose para menores de 5 anos. Entretanto, recomenda-se a vacinação em duas doses com intervalo de 6 meses entre elas a partir dos 12 meses de idade, sendo importante a vacinação daqueles em situações de risco. Não existe vacinação para a hepatite E.
O tétano acidental é uma doença infecciosa não contagiosa que também pode estar associada a enchentes devido aos riscos de ferimentos, escoriações, acidentes perfuro-cortantes que podem ocorrer nessas situações. Materiais como vidros e pedaços de metais são potenciais causadores de acidentes para aqueles que decidem enfrentar as águas das enchentes. O Clostridium tetani é uma bactéria associada ao solo, esterco e superfícies de objetos e as enchentes podem facilitar o contato com essa bactéria toxigênica, que provoca um estado de hiperexcitabilidade do sistema nervoso central. Os sintomas associados ao tétano são: febre baixa ou ausente, disfagia, espasmos ou rigidez muscular da face e musculatura da mastigação, dificuldade de deambular. A progressão da doença cursa com rigidez de nuca, hipertonia da musculatura torácica, opistótono entre outros sintomas. O diagnóstico do tétano é clinico, não havendo necessidade de confirmação laboratorial. Por isso, é de extrema importância que os casos suspeitos sejam identificados antes do início das manifestações clínicas. Entretanto, a vacinação em massa da população em áreas de enchente não é uma medida recomendada para a prevenção do tétano, uma vez que uma única dose da vacina não é eficaz para prevenção da doença. Assim, aqueles com ferimentos devem ser encaminhados para uma unidade de saúde de pronto atendimento e ter sua ferida avaliada quanto a necessidade de profilaxia para o tétano. Esta avaliação deve ser feita juntamente com o histórico vacinal do paciente. Como grande parte da população desconhece seu status vacinal, alguns pacientes, além dos cuidados com o ferimento, de acordo com o tipo de lesão, poderão receber o soro antitetânico, realizado em ambiente hospitalar com o paciente internado. Também deve ser feita a avaliação da necessidade de desbridamento de lesão e antibióticoterapia.
Adultos que não tem a vacinação completa devem realiza-la com a Dupla Adulto (dT), conforme indicação adequada. Os reforços da vacina contra o tétano devem ser realizados a cada 10 anos, devendo-se considerar situações especiais e lesões específicas em que o intervalo pode ser reduzido para 5 anos. Segue esquema de conduta de acordo Guia de vigilância em saúde de 2017:
(SAT – soro antitetânico; IGHAT – imunoglobulina antitetânica) a Ferimentos superficiais, limpos, sem corpos estranhos ou tecidos desvitalizados. b Ferimentos profundos ou superficiais sujos, com corpos estranhos ou tecidos desvitalizados, queimaduras, feridas puntiformes ou por armas brancas e de fogo, mordeduras, poli traumatismos e fraturas expostas. c Vacinar e aprazar as próximas doses, para complementar o esquema básico. Esta vacinação visa proteger contra o risco de tétano por outros ferimentos futuros. Se o profissional que presta o atendimento suspeita que os cuidados posteriores com o ferimento não serão adequados deve considerar a indicação de imunização passiva com SAT ou IGHAT. Quando indicado o uso de vacina e SAT ou IGHAT, concomitantemente, devem ser aplicados em locais diferentes. d Para paciente imunodeprimido, desnutrido grave ou idoso, além do reforço com a vacina, está também indicada IGHAT ou SAT. e Se o profissional que presta o atendimento suspeita que os cuidados posteriores com o ferimento não serão adequados deve considerar a indicação de imunização passiva com SAT ou IGHAT. Quando indicado o uso de vacina e SAT ou IGHAT, concomitantemente, devem ser aplicados em locais diferentes |
O tétano também é uma doença de notificação compulsória e imediata.
A febre tifoide é causada pelo Salmonella thphi e tem sua transmissão pela ingesta de água ou alimentos contaminados, por isso há risco de infecção durante períodos de enchentes e alagamentos. Entretanto, sua incidência não é tão alta devido a necessidade da ingesta de uma grande carga microbiológica para que ocorra infecção sintomática, por isso, os casos de febre tifoide estarão mais associados a contaminação de reservatórios de água e sistemas de abastecimento de alimentos. A profilaxia da febre tifoide é feita com o tratamento da água e preparação adequada de alimentos. A cropocultura pode auxiliar no diagnóstico e o tratamento desta doença é feito com antibioticoterapia. A cólera é uma doença menos frequente que cursa com diarreia aquosa vultuosa e desidratação grave, mas em geral tem história epidemiológica associada a viagens para áreas endêmicas.
Com as chuvas ocorre o aumento de focos de água para a deposição de larvas de mosquitos vetores de arboviroses como o Aedes aegypti. Por isso é de extrema importância que estejamos atentos aos principais sinais associados as arboviroses no período pós-chuvas. A tabela abaixo resume as principais diferenças quanto as manifestações clínicas entre as arboviroses:
A suspeita de caso de arbovirose é de notificação compulsória e deve ser realizada de imediato. Na maioria dos casos o tratamento e de suporte sintomático, entretanto casos graves com comprometimento hepático, manifestações hemorrágicas e colapso circulatório devem ser internados para melhor seguimento. É importante ressaltar que a febre amarela não tem grande importância nos períodos de enchentes uma vez que o ciclo urbano da doença não se dá desde 1942.
E como não poderíamos deixar de citar, a leptospirose também é uma doença febril aguda de notificação compulsória que tem incidência aumentada durante períodos de enchente e alagamentos. Isso se dá, pois a espiroqueta, eliminada no ambiente (principalmente esgotos) pela urina de roedores, realiza penetração ativa no homem quando este entra em contato com a água das enchentes contaminada pelo agente. A infecção ainda pode acontecer pela ingesta de água, alimentos contaminados, contato físico com lama ou esgoto. O quadro de leptospirose faz parte das síndromes íctero-hemorrágicas, devido ao grande espectro de manifestações clínicas que podem estar presentes. Os principais sintomas são: febre, cefaleia, artralgia, mialgia, sendo o sinal clássico a dor na panturrilha, anorexia, náuseas e vômitos. O paciente ainda pode apresentar dor ocular, hiperemia e edema conjuntival. Numa fase tardia da doença, manifestações como icterícia, insuficiência renal, e sinais de hemorragias podem ser de gravidade.
Com o aumento da exposição as chuvas e a água, pode ocorrer um aumento da incidência de síndromes respiratórias e gripais, na maioria das vezes infecções virais agudas das vias aéreas superiores. Os sintomas associados são: febre acompanhada ou não de tosse e dor de garganta, podendo ainda estar associado à cefaleia, artralgia ou mialgia. Nesses casos é importante que seja feito o diferencial com as arboviroses. Para estes pacientes, o tratamento de suporte deve ser instituído, bem como o abrigo das chuvas é importante para que melhora integral do paciente. Uma atenção especial deve ser dada para aqueles pacientes asmáticos em que a descompensação da doença pode desencadear crise de asma com dispneia, sibilância e tosse. A frequência de meningite pode aumentar devido a disseminação hematogênica bacteriana, após infecção de vias aéreas. Os sintomas associados a meningite são: febre, cefaleia intensa, rigidez de nuca, sinais de irritação meníngea, alterações neurológicas do nível de consciência, podendo ou não estar associados sintomas hemorrágicos. A investigação diagnóstica desses casos é de extrema importância a nível de saúde coletiva, uma vez que se deve avaliar a necessidade de quimioprofilaxia para contactantes. A notificação da suspeita desse agravo é compulsória e deve ser realizada de forma imediata.
Outros agravos que podem são o agravamento de doenças crônicas como as doenças cardiovasculares, que podem ser descompensadas por infecções as quais a população está susceptível, bem como ao estresse associado a perda de bens materiais ou de entes queridos. Alguns transtornos mentais são mais comuns nas primeiras 72 horas do evento como crises emocionais, medo, pânico, ansiedade, confusão mental, instabilidade afetiva, estado confusional agudo. Medidas como intervenções psicossociais grupais e individuais, atenção especializada ao sofrimento psíquico grave e acolhimento às necessidades emergenciais básicas (como abrigo, alimentos e água) podem ser medidas eficientes para esta população vulnerável.
Todos aquilo que foi exposto ilustra porque é de extrema importância para que a população seja orientada a não adentrar os locais inundados pelas enchentes e procure sempre por abrigos adequados quando necessário. O contato com a água contaminada, bem como os possíveis riscos de acidentes por ferimentos são potenciais causadores de agravos a saúde evitáveis. Além disso, a oferta de abrigo com condições adequadas, acolhimento e alimento para os desabrigados podem evitar complicações tardias para esta população. Por fim, é importante ressaltar que não há prevenção melhor para estas situações do que o investimento público nas condições de saneamento básico e desenvolvimento urbano. Evitar que desastres urbanos aconteçam é dever do Estado e direito de todos.