Pode ser que o aluno de medicina experimente sentimentos diversos ao ouvir a consagrada sigla “SUS”, que denomina o Sistema Único de Saúde, o sistema nacional de saúde do Brasil. Do amor – por proporcionar cuidado em saúde gratuito à população e os mais ricos ambientes de prática durante a faculdade – até, talvez, em casos mais extremos, ao ódio – por “obrigar” a decoreba de leis, princípios e diretrizes que parecem destoar da expectativa dos alunos de aprenderem os aspectos mais clínicos propriamente ditos da medicina.
Essa falsa dicotomia talvez seja consequência de falhas sobre como o tema é apresentado ao estudante de hoje. O SUS completa – com méritos e grandes avanços – 33 anos no dia 17 de maio de 2021 e é preciso ter a percepção de que a maioria dos graduandos de medicina e de outras áreas da saúde nasceram já após a sua fundação e implementação. Isso torna necessária uma mudança na maneira como o tema é discutido, pois o contexto de hoje é diferente de outrora. O entendimento real sobre o SUS influencia diretamente na clínica e na atuação médica no Brasil, muito além da decoreba. É possível enxergar os princípios e diretrizes do SUS à luz da prática médica e é essa visão, focada para o estudante de hoje, que apresentamos neste artigo. Então mais que decorar leis e regulação quero aproveitar e conversar sobre os principais conceitos do SUS e suas implicações. Agora se você adorar leis a minha recomendação é começar com a lei 8080 e a lei 8142.
Saúde como um direito
Todos os brasileiros que nasceram após 1988 adquiriram automaticamente e ainda na sala de parto, saúde como um direito vitalício. Isso porque a constituição brasileira desse ano estabeleceu que todo cidadão brasileiro, a partir de então, teria direito à saúde. Para todos esses brasileiros – muitos dos quais, hoje, já são estudantes e profissionais de saúde – esse reconhecimento é natural. Nunca houve, na vida deles, nenhum entendimento diferente desse.
No entanto, há pouco mais de 33 anos atrás, os mais de 100 milhões de brasileiros poderiam adoecer de pneumonia, sofrer um traumatismo craniano decorrente de acidente automobilístico ou até mesmo ter um câncer de mama, sem que isso implicasse em um direito a tratamento. A organização do sistema de saúde, naquela época, era diferente e, a não ser que essa pessoa trabalhasse com carteira assinada ou pagasse algum seguro de saúde do próprio bolso, ela dependeria das poucas instituições de caridade e filantrópicas para salvar a própria vida. Isso incluía camponeses, famílias pobres, pessoas em situação de rua, desempregados, cidadãos de classe média que trabalhavam por conta própria, entre tantos outros.
É importante parar e pensar por um momento sobre esse contexto. O direito à saúde, hoje, pode parecer natural, mas foi uma conquista. O SUS veio ocupar esse espaço de garantia à saúde e, mesmo que ainda tenha muito a evoluir, evidencia-se que a direção para a melhoria da saúde no Brasil é seu fortalecimento, não seu desmonte. Se hoje são muitas as críticas com relação às “filas do SUS”, cabe a reflexão sobre para onde as pessoas dessa fila iriam se não houvesse um SUS.
Saúde como um dever do Estado
Se saúde é um direito, alguém tem que garantir esse direito. Saúde como cidadania significa, necessariamente, envolvimento do Estado. Apesar de ficar à mercê de mudanças políticas, entendeu-se que o SUS teria maior capacidade de prestar cuidado à saúde de pessoas pobres e vulneráveis ao ficar sob a gestão pública. A iniciativa privada, naturalmente, visa o lucro, objetivo este que pode conflitar com os melhores interesses de cuidado à saúde daqueles que não podem pagar por ele. Sistemas como os anteriores (Caixas de Aposentadoria e Pensão entre outras) são excludentes por não envolver toda a população.
O entendimento de que o SUS deveria ser gerido pelo Estado, ou seja, público; de que deveria ser para toda a população, ou seja, universal; e de que deveria ser gratuito, fizeram surgir seus princípios e diretrizes. Estes, mais do que normas para decorar, viabilizam e dão a direção para a construção de um sistema nacional de saúde com as características que mencionamos. Ou seja, fazem sentido lógico e tudo o que precisamos fazer é entendê-los à luz da prática em saúde dos dias de hoje.
Universalidade do SUS
Como falamos, universalidade significa saúde para todos. Novamente, pode parecer óbvio e natural, mas nem sempre foi assim. Não há mais nenhuma distinção, nem as de origem socioeconômica, para quem pode ser atendido no SUS ou para o direito à saúde propriamente dito. Um grande exemplo para essa visualização é a vacina para Covid-19. Atualmente, é proibido sua aplicação por instituições privadas, sendo reservada apenas para o SUS. Permitir que pessoas que “possam pagar” sejam vacinadas antes dos que “não podem”, em um cenário de doses limitadas, iria contra o princípio da universalidade. Como vemos, por mais natural que pareça, a universalidade ainda é um princípio atual e, muitas vezes, ameaçado.
Equidade
Direcionar mais esforços e recursos para aqueles que precisam mais. De forma bastante simplificada, a equidade pode ser entendida desse modo. Pacientes mais vulneráveis necessitam de mais cuidado. No entanto, esse princípio é ainda mais amplo. Imaginemos uma cidade que possui apenas um aparelho de Tomografia Computadorizada. Muitos são os pacientes que precisam do exame, mas apenas alguns o fazem a cada dia, gerando uma fila. Filas têm a ver com a natural finitude de recursos (não são infinitos, portanto são escassos) e ocorrem até em países desenvolvidos com sistemas de saúde de excelência. Nesse sentido, vamos imaginar que atendemos hoje um paciente com suspeita de câncer (idoso, com emagrecimento, massa palpável em abdome, constipação, sangramento nas fezes) e ele “entra na fila” para realizar o exame. Na sua frente, temos mais de 30 pacientes, muitos deles com diagnósticos menos graves. O que deve prevalecer na prioridade de realização do exame? A ordem de chegada na fila ou a gravidade do caso?
O entendimento de que um paciente com suspeita de câncer deve passar na frente na fila para realizar uma TC de outro com, por exemplo, uma dor lombar inocente, segue o princípio da equidade. Talvez também soe bastante natural, mas novamente, nem sempre foi assim. Ter a equidade como uma regra de ouro no SUS é essencial para diminuir a “cultura do pistolão” e dos privilégios, ajudando a priorizar os escassos recursos de saúde e a obter, consequentemente, melhores resultados para os pacientes do SUS.
Integralidade do SUS
Muitos devem saber como funcionam as coberturas de planos de saúde privados. Dependendo do tipo de plano ou do valor que se paga, alguns serviços e recursos estão incluídos e outros não. Existem planos que cobrem apenas consultas ambulatoriais; outros que cobrem internação em CTI mas não alguns tipos de cirurgia; alguns que cobrem certos tipos de exame, mas não outros. Nenhum desses planos citados é integral, pois não cobrem todos os serviços que o paciente pode precisar para sua saúde. Portanto, o princípio da integralidade significa que o SUS deva oferecer todos os serviços necessários para cuidar da saúde da pessoa, desde os preventivos, até os curativos e de reabilitação de alta complexidade.
A integralidade garante a saúde como direito de fato, uma vez que qualquer que seja a sua necessidade de saúde, o SUS deve ser capaz de dar uma resposta a ela. Vamos imaginar o exemplo da hepatite B. Os bebês recém-nascidos já são vacinados, pelo SUS, contra essa doença. Caso, quando adulto, algum paciente desenvolva hepatite B, ele receberá o acompanhamento e tratamento farmacológico gratuitamente, também pelo SUS. Se o paciente desenvolver cirrose e necessitar de uma internação para tratá-la, será internado em um hospital do SUS. Em último caso, se um transplante hepático tiver que ser realizado, é o SUS, de mesmo modo, que vai operacionalizá-lo.
Colocar esse princípio em prática é difícil dada a já mencionada escassez de recursos. Por isso, é importante que cada centavo gasto no SUS – que vem do bolso dos brasileiros que pagam impostos – seja muito bem justificado e embasado. Ou seja, qualquer medicamento ou exame diagnóstico, antes de ser incorporado ao SUS, deve estar fortemente sustentado, por evidências científicas, de que possuem benefício e boa relação custo-efetividade.Além disso, se o SUS vai ser, por exemplo, o responsável por internar em CTI, operar e tratar um paciente com um Acidente Vascular Encefálico (AVE), dada a mesma limitação de recursos financeiros, se torna muito mais eficiente prevenir esse AVE. O custo das orientações de estilo de vida e dos medicamentos para controle da pressão arterial (PA), por exemplo, são muito menores do que de uma internação em CTI. Além do fato de que um paciente com a PA controlada, que nunca teve um AVE, tem uma qualidade de vida muito melhor do que aquele reabilitado e com sequelas de um derrame. Isso traz à tona a importância da Atenção Primária à Saúde (APS) e das diretrizes organizacionais do SUS para garantir sua eficiência e bons resultados em saúde.
Hierarquização e níveis de atenção do SUS
Por ter de ser eficiente, o SUS necessita de organização. Essa organização se expressa pelas diretrizes de hierarquização, regionalização e descentralização. Como vimos, se o tratamento das consequências das doenças são responsabilidade do SUS (por saúde ser um direito), é muito mais inteligente – e barato – que se controle suas causas. Nesse sentido, o sistema é hierarquizado em níveis de atenção. A Atenção Primária à Saúde (APS), também conhecida como Atenção Básica, é o primeiro nível de atenção e a porta de entrada e coordenadora cuidado do paciente no sistema. Ela resolve a maior parte dos problemas de saúde e encaminha somente aquela minoria que necessita de outros serviços. Além de diminuir os custos, essa atribuição da APS garante maior disponibilidade de recursos para os pacientes que realmente precisam – ajudando a garantir a equidade, que conversamos acima. Pacientes com hipertensão arterial ou insuficiência cardíaca controlada, por exemplo, serão acompanhados na APS e não ocuparão as agendas de cardiologistas da atenção secundária (especialidades), deixando-a livre para os casos de arritmias, miocardiopatias graves, doenças coronarianas, etc. Juntamente com a atenção terciária (hospitais), esses níveis de atenção, portanto, hierarquizam o SUS de modo a torná-lo mais efetivo.
Regionalização e descentralização
Partindo-se de uma preocupação operacional para a construção de um sistema nacional em um país de dimensões continentais, surgem as diretrizes de regionalização e descentralização.
A regionalização cria regiões de saúde – não necessariamente correspondentes aos limites municipais e estaduais – para garantir a integralidade. Ou seja, essas regiões devem ter hospitais, centros de imagem, policlínicas e unidades básicas de saúde capazes de resolver as diferentes necessidades de saúde que os pacientes que lá residem possam apresentar.
A descentralização nada mais é que decisão por manter a gestão do SUS como responsabilidade local (municipal), consequência natural ao tamanho do Brasil. Seria inviável centralizar todas as iniciativas e decisões na capital ou no Ministério da Saúde apenas.
Participação Popular
A diretriz de participação popular existe para dar à população poder de gestão e intervenção nas políticas de saúde. Como vimos anteriormente, a gestão do SUS pelo Estado traz riscos de mudanças e retrocessos a depender das vontades, vieses ou interesses dos políticos no poder. Nesse sentido, essa diretriz propõe a criação dos conselhos de saúde – em nível nacional, estadual, municipal e local – com representantes dos usuários, ou seja, dos pacientes do SUS (50% dos conselheiros) e de gestores e profissionais de saúde (os outros 50%). Esses conselhos atuam na vigilância, inspeção e controle das políticas de saúde que irão direcionar o SUS.
Como qualquer instituição pública, o SUS é dos brasileiros, não dos políticos. Por isso a importância, para profissionais de saúde e população em geral, de entender como ele funciona e de onde surgiram tantas normas e diretrizes. Os princípios do SUS, hoje tão naturais, nem sempre assim foram, tendo sido conquistados a duras penas. Essa construção que começou 33 anos atrás, antes de muitos de nossos estudantes de medicina ou de outras áreas da saúde e de nossos leitores em geral nascerem, ainda está acontecendo.
A percepção de que a saúde nem sempre foi entendida como um direito e o quanto esses 33 anos possibilitaram avanços no cuidado à saúde dos brasileiros é essencial para a atual geração de estudantes da saúde. Quando o assunto é Sistema Único de Saúde, a pressão da faculdade pode gerar uma decoreba sobre ele; assim como a falta de uma perspectiva mais ampla pode gerar apenas críticas a seu respeito. Que saibamos, como profissionais de saúde, entender o SUS, não só decorá-lo; para que possamos, como brasileiros, defender o SUS, e não só criticá-lo.