Os digitálicos, descobertos em 1785, por Sir Withering, através do uso de uma espécie de planta (Digitalis purpúrea), para o tratamento de insuficiência cardíaca, ainda são utilizados (muito menos do que em algumas décadas atrás) para pacientes com quadro de fibrilação atrial e insuficiência cardíaca associada (indicações específicas).
Apesar do declínio no uso dessas medicações, cujas o principal exemplo é a digoxina, o número de pacientes admitidos em hospitais com intoxicação digitálica permanece estável. Há relatos de mais de 2000 casos por ano de intoxicação digitálica documentados nos EUA.
Para entendermos algumas consequências da intoxicação, temos que compreender como age a droga.
QUAL MECANISMO DE AÇÃO?
A despolarização dos miócitos depende basicamente da entrada de sódio na célula. Esta entrada altera o potencial de membrana celular, permitindo também o influxo de cálcio no meio intracelular. Esse cálcio é “apreendido” pelo retículo sarcoplasmático, levando à contração muscular. Depois de todo esse mecanismo, o sódio irá sair da célula por diversos meios, sendo o mais importante a bomba sódio-potássio-ATPase.
Os digitálicos agem exatamente aí! Causam um bloqueio temporário da bomba sódio-potássio-ATPase. Como consequência, há mais sódio intracelular, bem como cálcio, o que aumenta o inotropismo cardíaco. Além disso, os digitálicos também são capazes de aumentar o tônus vagal, o que resulta em diminuição de condução do nó sinoatrial e atrioventricular.
O excesso de cálcio intracelular pode causar despolarizações tardias, o que possibilita surgimento de arritmias. Outro mecanismo para o aumento do risco de arritmias é o encurtamento do período de repolarização atrial e ventricular, reduzindo o período refratário do miocárdio, aumentando seu automatismo.
COMO É SUA FÁRMACOCINÉTICA E COMO ESSA DROGA É DEPURADA?
A digoxina, principal digitálico da nossa prática médica, possui meia vida próxima a 161 horas, tendo depuração renal. Esta droga possui níveis tóxicos (o grande assunto do nosso artigo). Fatores que possam alterar sua absorção, distribuição, ou eliminação, podem contribuir para que a droga atinja níveis tóxicos.
A digoxina também age como substrato para alguns tipos de glicoproteína renais e intestinais (p-glicoproteína). Esta age como uma bomba que excreta diversas drogas no intestina e no túbulo proximal dos rins. Sendo assim, qualquer outra droga ou substância que interfira na atividade desta bomba, irá também interferir nas concentrações de digoxina (ex.: verapamil, amiodarona, quinidina).
COMO SUSPEITAR DE UM PACIENTE COM INTOXICAÇÃO DIGITÁLICA?
As manifestações mais críticas de uma intoxicação digitálica são as cardíacas, porém também podem ocorrer acometimentos gastrointestinais e neurológicos. A apresentação desses sintomas vai ser variável, de acordo com o tempo de intoxicação (se aguda ou crônica).
Obviamente, antes de mais nada, para que haja a suspeita dessa intoxicação, deve haver o relato de uso prévio de digoxina (digitálico) pelo paciente. O tempo de ingestão e quando foi a última tomada são importantes, pois há maior acurácia da dosagem de níveis séricos quando o indivíduo ingeriu a droga há mais de 6 horas.
O segundo passo é verificar se o paciente teve algum possível gatilho para a possibilidade de intoxicação (algo que possa influenciar na depuração da droga, no seu volume circulante, entre outros fatores) como, por exemplo, uma gastroenterite capaz de causar desidratação, ou alguma injúria renal aguda. Pesquisar também quais são as drogas utilizadas recentemente (avaliar interação medicamentosa).
Após esses dois dados importantes da história, o paciente com intoxicação digitálica pode apresentar sintomas gastrointestinais (náuseas, vômitos, dor abdominal e, mais raramente, isquemia mesentérica), sinais de hipoperfusão, manifestações neurológicas (distúrbios visuais, confusão mental) e sinais de acometimento cardíaco (ex.: arritmias).
Tanto na intoxicação aguda quanto na crônica, as manifestações cardíacas são as mais importantes, e podem incluir qualquer tipo de arritmia (exceção: taquiarritmias de origem atrial – as que possuem alta resposta). Nas duas formas, distúrbios hidroeletrolíticos podem estar presentes.
Na forma crônica, o diagnóstico se torna muito mais difícil, pois o quadro é mais discreto e insidioso. As manifestações gastrointestinais são mais raras nesses pacientes.
Os distúrbios visuais da intoxicação variam desde alterações de cores (cromatopsia) até diplopia, fotofobia, diminuição da acuidade visual, fotopsia, escotomas e até mesmo amaurose. A cromatopsia mais associada com a intoxicação digitálica é o quadro em que os pacientes começam a ter a visão dos objetos em coloração amarelada.
E OS ACHADOS LABORATORIAIS?
Nos pacientes com suspeita de intoxicação digitálica, deve-se solicitar os seguintes exames laboratoriais:
– Dosagem sérica de digoxina;
– Potássio sérico;
– Creatinina e ureia séricas (avaliar função renal);
– Eletrocardiograma seriados
. Distúrbios hidroeletrolíticos:
– Hipercalemia (inibição da bomba sódio-potássio ATPase): importante marcador da intoxicação digitálica aguda e preditor de mortalidade.
– Hipocalemia, hipomagnesemia e hipercalcemia: podem deixar o indivíduo mais susceptível à intoxicação digitálica.
. Disfunção renal:
É comumente encontrada no cenário da intoxicação crônica e também é responsável por aumentar o nível sérico de digoxina.
. Nível sérico de Digoxina:
O nível tóxico e terapêutico é muito próximo, além de haver uma dificuldade prática em delimitar o nível terapêutico da digoxina. A concentração entre 0,5-0,8 ng/mL (0,65-1 nmmol/L) é considerada dentro do alvo terapêutico.
O nível sérico não está relacionado diretamente com a toxicidade. Há diversos relatos sobre pacientes assintomáticos e com níveis “tóxicos”, e o oposto também é verdade. No entanto, em alguns casos, a concentração sérica é utilizada para nortear a terapia específica (anticorpo Fab).
E O ELETROCARDIOGRAMA DESSES PACIENTES???
A intoxicação, como dito anteriormente, pode produzir uma série de arritmias cardíacas, podendo mudar o padrão eletrocardiográfico rapidamente. Por isso, a importância de monitorização cardíaca contínua e realização de eletrocardiograma seriado nesses pacientes.
O distúrbio de ritmo mais comum são as extrassístoles causadas por contrações ventriculares precoces. Outras alterações incluem bradicardia, taquiarrimias atriais com bloqueio de nó AV, bigeminismo ventricular, ritmo juncional, bloqueio atrioventricular, taquicardia ventricular, taquicardia ventricular bidirecional (digoxina é uma das poucas causas capazes de induzir essa arritmia) e fibrilação ventricular.
Indo além, o “efeito digitálico” no ECG pode causar alterações de onda T (achatamento ou inversão), encurtamento de intervalo QT, segmento ST em formato de “pá de pedreiro” (alteração característica) com depressão de ST e aumento e surgimento de ondas U. Essas alterações são mais vistas nas formas crônicas e nem sempre estão associadas com a intoxicação.
COMO REALIZAR O DIAGNÓSTICO DEFINITIVO?
O diagnóstico desta condição é clínico, sendo baseado na história de exposição, possíveis desencadeadores e alterações nos sinais/sintomas, além de sinais eletrocardiográficos sugestivos. O nível sérico de digoxina confirma o diagnóstico quando correlacionado com as condições clínicas, porém, quando isolado, não é suficiente para o diagnóstico de intoxicação.
HÁ DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS POSSÍVEIS?
Sim! A depender da manifestação, podemos pensar em:
– Intoxicação por betabloqueadores, bloqueadores do canal de cálcio, alfa agonistas;
– Hipotermia;
– Hipotireoidismo;
– Infarto agudo do miocárdio;
– Outras causas de hipercalemia
TUDO BEM! AGORA JÁ SEI RECONHECER O PACIENTE COM INTOXICAÇÃO DIGITÁLICA! E COMO VOU TRATÁ-LO???
Quando suspeitamos de um caso de intoxicação digitálica, esse paciente deve ter a estabilidade hemodinâmica garantida (via aérea, respiração e circulação), ser monitorizado continuamente, receber acesso venoso, eletrocardiograma seriado, e ter glicemia capilar obtida em caso de confusão mental.
Embora exista uma dificuldade no Brasil para a obtenção do anticorpo anti-Fab, este é o tratamento específico para qualquer arritmia causada por intoxicação digitálica que gere alguma instabilidade hemodinâmica. Se houver o suporte necessário, o tratamento sempre deve ser guiado em conjunto com um toxicologista e/ou um centro de controle toxicológico.
No caso de indisponibilidade imediata do anticorpo específico, bradiarritmias podem ser tratadas com atropina (0,5 mg IV em adultos) e a hipotensão com cristaloide em parenteral (cautela nos pacientes com insuficiência cardíaca descompensada).
QUAIS SÃO AS REAIS INDICAÇÕES PARA O USO DO ANTICORPO?
O anticorpo anti-Fab é altamente efetivo e seguro e, se administrado de maneira precoce quando indicado, possui alta taxa de sucesso na reversão da intoxicação digitálica.
A dose utilizada deve ser baseada na apresentação clínica de cada paciente. A administração do antídoto deve ser considerada em qualquer caso de intoxicação grave. As seguintes condições consistem em indicações plausíveis:
– Arritmia ameaçadora de vida ou em conjunto com instabilidade hemodinâmica (ex.: taquicardia ventricular; fibrilação ventricular; assistolia; bloqueio atrioventricular total);
– Hipercalemia;
– Evidências de má perfusão ou disfunção orgânica (ex.: insuficiência renal; alteração do estado mental).
O tratamento não deve ser baseado na concentração sérica de digoxina ou na quantidade ingerida, mas sim no quadro clínico de cada paciente.
CARVÃO ATIVADA OU COLESTIRAMINA POSSUEM ALGUM PAPEL NO TRATAMENTO?
Essas podem ser consideradas medidas terapêuticas adjuvantes na intoxicação digitálica, e não primeira linha. Aqueles pacientes que entram no serviço de emergência, com história de ingestão de digitálico há menos de 1-2 horas podem se beneficiar do carvão ativado (dose:1g/kg – máximo: 50 g).
O uso da colestiramina é reportado naqueles casos em que o paciente possui disfunção renal e o uso do anticorpo anti-Fab não é possível, podendo ser realizada na dose 4 g, via oral, duas vezes a dia.
CUIDADO NO TRATAMENTO DA HIPERCALEMIA!
Nos casos de hipercalemia em que lançaremos mão do uso de anticorpo anti-Fab, não é sugerido realizar medidas específicas para a redução dos níveis séricos do potássio. Isso porque o próprio uso do anticorpo específico normaliza o funcionamento da bomba sódio-potássio ATPase, o que será capaz de reverter a hipercalemia. Sendo assim, caso medidas específicas para hipercalemia sejam adotadas em conjunto com o uso do anticorpo, a consequência pode ser uma hipocalemia severa.
Pronto! Agora você consegue responder à pergunta do nosso título, mesmo que ainda não tenha atendido nenhum paciente com essa suspeita ou diagnóstico!