Provavelmente você já ouviu falar muitas vezes na conhecida punção liquórica ou ainda em punção lombar, mas, você sabe para que serve tal procedimento? Da mesma forma, desde a fisiologia e histologia, por exemplo, fala-se no líquor, em sua função e produção. Você sabe o que deve ser analisado no líquor (LCR) e qual a importância disso?
É sobre esse tema importantíssimo que vamos falar hoje: como analisar o líquor. Mas antes vamos conhecer tal fluido.
O líquor (LCR)
O líquor, conhecido também como líquido cefalorraquidiano, ou simplesmente pela sigla LCR, é um fluido presente no espaço subaracnóideo, canal central da medula e plexos ventriculares.
Quais são as funções do líquor (LCR)?
Dentre as funções que o líquido cefalorraquidiano desempenha, podemos citar o amortecimento dos traumas ao cérebro e medula espinal, devido às essas estruturas “flutuarem” no LCR. Além da barreira mecânica, o LCR fornece também nutrientes ao sistema nervoso central e por meio dele é realizada excreção de metabólitos.
Como é produzido o LCR?
A produção do LCR se dá nos ventrículos cerebrais por estruturas conhecidas como plexo coróides. Esses plexos são redes vasculares formadas por capilares fenestrados e dilatados. Esses plexos secretam o LCR, nos ventrículos, canal central da medula e espaço subaracnóideo.
Onde encontramos o líquor (LCR)?
Como dito anteriormente, o líquor está presente nos ventrículos, canal central da medula e espaço subaracnóideo.
Ventrículos Cerebrais
Os ventrículos cerebrais são cavidades que possuem os plexos coróides. Essas cavidades estão interligadas. São 4 ventrículos: 2 ventrículos laterais, o 3º ventrículo e o 4º ventrículo.
Figura 1: Ventrículos cerebrais e sua localização
Os ventrículos laterais são cavidades presentes nos hemisférios cerebrais, sendo um do lado direito e outro do lado esquerdo. Dentre os quatro, os ventrículos laterais são os maiores. Anatomicamente cada ventrículo é composto por corpo, e 3 cornos: um corno anterior, um corno inferior e um corno posterior.
Figura 2: Ventrículos cerebrais. Essa imagem permite observar as porções que compõem os ventrículos laterais: o corpo central, e os cornos (inferior, posterior e anterior).
Como dito, há comunicação entre os ventrículos. A comunicação entre os ventrículos laterais e o terceiro ventrículo se dá pelo forame interventricular de Monro.
O 3º ventrículo é uma cavidade presente no diencéfalo, situado entre os tálamos, direito e esquerdo. Nele também há produção de LCR. A comunicação com o 4º ventrículo, se dá pelo aqueduto de cerebral ou aqueduto de Sylvius.
O 4º ventrículo também é uma cavidade. Consiste em uma dilatação do canal ependimário conhecido também como canal central da medula. Portanto, é contínuo, com o aqueduto cerebral superiormente, e com o canal central da medula inferiormente. Está localizado posteriormente à ponte e ao bulbo, e anteriormente ao cerebelo. O quarto ventrículo se comunica também com o espaço subaracnóideo, um dos locais onde o líquor pode ser encontrado. Essa comunicação se dá medialmente pelo forame de Magendie e nas laterais pelos forames de Luschka.
Figura 3: Ventrículos cerebrais. Nessa figura é possível observar todos os ventrículos cerebrais, por uma visão lateral. Vemos um ventrículo lateral (sobrepondo o ventrículo lateral do lado oposto), ao centro o terceiro ventrículo, e inferiormente o quarto ventrículo. É possível observar também o forame interventricular, que comunica os ventrículos laterais e o terceiro ventrículo, e o aqueduto cerebral, que comunica o terceiro ventrículo com o quarto ventrículo.
Canal Central da Medula
O canal central da medula ou canal ependimário, já citado anteriormente, é uma outra importante localização do LCR.
Esse canal, como o nome sugere, é um canal localizado no centro da medula espinal.
Ele é contínuo com o quarto ventrículo cerebral.
Espaço subaracnóideo
Acredito que você saiba o que é e onde se localiza o espaço subaracnóideo, mas vamos relembrar rapidamente.
Temos três membranas de tecido conjuntivo que revestem o sistema nervoso central, as meninges. São elas dura mater, aracnoide mater e pia mater.
A dura mater é a mais externa das meninges, sendo formada por tecido conjuntivo denso. Abaixo da dura mater, há um espaço conhecido como espaço subdural.
Internamente a esse espaço, temos a meninge aracnoide mater, que possui duas porções: uma membrana e outra formada por traves que a conectam com a meninge mais interna. Abaixo da aracnoide, há um espaço conhecido como espaço subaracnóideo, no qual está presente o líquido cefalorraquidiano.
Por fim, temos a meninge mais interna, a pia mater, que está aderida aos órgãos do sistema nervoso central.
Figura 4: Meninges e Espaços. Nessa figura podemos observar as meninges (dura-mater, aracnoide e pia-mater) e os espaços entre elas. Atente-se ao espaço subaracnóideo, local que contém o LCR.
Agora que aprendemos um pouco mais sobre o líquor e algumas de suas peculiaridades, vamos falar sobre como obter o líquor para então ser analisado.
Colhendo o líquor (LCR)
Há três formas para obter o líquor. Falamos anteriormente sobre os locais nos quais podemos encontrar o LCR, e, portanto, esses locais devem ser alcançados para colher o líquido ali presente.
A punção é a técnica utilizada para obtenção do LCR. A forma mais utilizada na prática é a punção lombar, mas também podem ser realizadas a punção suboccipital e a punção ventricular.
A punção lombar deve ser realizada entre L3-L4, ou L4-L5, preferencialmente. Essa “escolha” tem uma importante razão: o término da medula espinal se dá ao nível de L1-L2. Dessa forma, realizando a punção abaixo do término evita-se que ocorram lesões medulares.
Se quiser saber mais sobre como realizar a punção lombar, no artigo “Guia para punção lombar na prática clínica“, ensina o passo a passo do procedimento.
E após colher o líquido cefalorraquidiano, o que fazer?
Analisando o líquor (LCR)
A análise do líquor pode trazer diversas informações e diagnósticos importantes de acordo com a alteração de seus parâmetros. A escolha de quais parâmetros você analisará depende da clínica do paciente, a qual você deve obter a partir do exame clínico (anamnese + exame físico) e a partir daí você solicita tal análise.
Mas a questão é, o que analisar?
A análise deve passar por aspectos físicos, bioquímicos e citológicos.
Análise Física
Na análise física são analisados, por exemplo, o aspecto e a coloração do líquor. Quando você colhe o líquor em tubos de ensaio você já consegue observar isso. Em condições normais, o LCR é límpido e incolor.
Sua coloração pode estar alterada. Algumas colorações que podem ser notadas são:
- Leitosa, com tonalidade esbranquiçada;
- Xantocrômico, caracterizado por tonalidade amarela ou laranja ocasionada pela presença de hemoglobina e concentrações elevadas de proteínas e/ou bilirrubina;
- Hemorrágico que adquire uma coloração vermelha, devido a níveis muito elevados de hemoglobina e hemácias.
Da mesma forma, o aspecto do líquor pode estar alterado. O normal é que seja límpido. Em determinadas condições ele pode passar de límpido para levemente turvo ou turvo. Essa alteração do aspecto do líquido cefalorraquidiano ocorre por presença de leucócitos, proteínas, lipídeos e microrganismos no líquor.
Análise Citológica
Como já citei na análise física, a presença de células pode alterar a coloração e aspecto do LCR. Para detectar se esses elementos realmente são os responsáveis pelas alterações físicas, é necessário realizar a análise citológica, fazendo a contagem de células ali presentes.
Leucócitos
O LCR normal, apresenta leucócitos, sendo 70% linfócitos e 30 a 50% de monócitos. Se for encontrado outro tipo de leucócito no líquor, é indicativo de algum processo anormal.
O líquor normalmente apresenta até 5 leucócitos/mm3. A contagem de células do líquor é feita por citometria.
Quando outros leucócitos são encontrados no LCR, algumas suspeitas podem ser levantadas. Se o predomínio for de polimorfonucleares (neutrófilos), pode-se suspeitar de meningites bacterianas, por exemplo. Já se o aumento for de eosinófilos a suspeita é de processos infecciosos por parasitas como neurocisticercose ou neuroesquistossomose. Se forem encontrados blastos no líquor, sugere-se infiltração de células neoplásicas (leucemia e linfoma são exemplos).
Hemácias
O líquido cefalorraquidiano em condições normais não apresenta hemácias. Se forem encontradas no líquor (LCR) é indício de alguma hemorragia, que ocorreu no momento da punção ou um processo hemorrágico no sistema nervoso central.
O aumento de hemácias pode levar a alteração da coloração do líquor macroscopicamente.
Análise Bioquímica
A análise bioquímica é também essencial. Nela analisamos presença de diversas substâncias como glicose, proteínas, lactato, LD (lactato desidrogenase), ADA (adenosina deaminase) e globulinas.
Glicose
A glicose é um dos parâmetros bioquímicos. Os níveis de glicose podem auxiliar na diferenciação entre um processo infeccioso bacteriano e um processo infeccioso viral.
Os níveis de glicose no líquor (glicorraquia) são analisados de acordo com os níveis de glicose séricos. O normal é que a glicose presente no líquor corresponda a 2/3 da glicemia.
Em processos bacterianos e fúngicos, observa-se uma hipoglicorraquia, pelo consumo de glicose pelas bactérias. Já em processos virais, os níveis de glicose geralmente se encontram normais.
Lactato
O lactato, ou ácido láctico, é uma outra substância dosada no líquor, e assim como a glicose, é utilizada para diferenciar processos bacterianos de processos virais.
O valor normal do ácido láctico é de 9 a 19 mg/dL.
Sabe-se que, quando há aumento do metabolismo da glicose, por respiração anaeróbia, gera-se maior quantidade de acido láctico. Com isso, processos bacterianos levam ao aumento de lactato no líquor.
O lactato também pode estar aumentado em processos de hipóxia, pois nessas situações o metabolismo realizado é a respiração anaeróbia, que independe de oxigênio, e com isso gera-se mais lactato.
Proteínas
As proteínas são também dosadas no líquido cefalorraquidiano. Basicamente encontra-se albumina e uma baixa quantidade de globulinas no líquor.
A dosagem de proteínas em adultos, possui a faixa de normalidade entre 15 e 45 mg/dL. Esse valor varia de acordo com o local de punção.
A alteração de proteínas no LCR pode sinalizar uma série de doenças, e por isso é muito inespecífica. Mas isso não quer dizer que não tenha importância, pelo contrário, porém deve ser analisada juntamente aos aspectos clínicos do paciente.
Pode-se encontrar valores reduzidos de proteínas no líquor se houver alguma patologia que aumente a permeabilidade da barreira hematoencefálica, e assim permita a passagem de proteínas, levando a perda delas.
Valores aumentados também podem ser encontrados em diversas doenças. Por exemplo em doenças infecciosas, desmielinizantes e malignidades. Por exemplo, a Síndrome de Guillain-Barré e a Esclerose Múltipla, que são doenças que levam a desmielização, cursam com aumento de proteínas no líquor (LCR). Na esclerose múltipla, por ser uma doença autoimune, há um importante aumento de imunoglobulinas (especialmente IgG).
Enzimas – Lactato Desidrogenase
A enzima lactato desidrogenase (LD) é uma enzima citoplasmática presente em todos os órgãos. Estudos mostram que em pacientes com patologia intracraniana, seja infecção ou malignidades, há um aumento da LD. Também pode estar aumentada em hemorragias intracranianas.
Com isso, sua dosagem pode ser importantíssima para diferenciar hemorragias: se é uma hemorragia decorrente da punção ou se é uma hemorragia intracraniana.
A dosagem normal de LD é de até 35 UI/L.
Enzimas – Adenosina Deaminase (ADA)
Outra enzima que pode ser dosada no líquor é a adenosina deaminase, uma enzima ligada ao metabolismo das purinas.
Normalmente, seus níveis encontram-se até 4,5 UI/L.
A atividade dessa enzima aumenta em pacientes com deficiência imunológica, especificamente na imunidade celular. Assim, doenças como meningite tuberculosa, linfomas, leucemia e pacientes com HIV, podem apresentar aumento da ADA.
Marcadores Tumorais
Se a suspeita é de processos neoplásicos, você pode buscar por marcadores tumorais no líquido cefalorraquidiano para auxiliar o diagnóstico. Alguns exemplos de marcadores são: alfa feto proteína, gonadotrofina coriônica, entre outros.
Cultura
Quando é necessário fazer o diagnóstico etiológico, ou seja, descobrir qual é o agente causados da patologia, a cultura é uma ótima opção.
Para detectar bactérias, fungos e o Micobacterium tuberculosis, realiza-se a cultura do líquido cefalorraquidiano, sendo o resultado da cultura importantíssimo para a escolha terapêutica.
Outros
Outros testes também podem ser realizados para detectar o agente etiológico. A detecção pode ser direta, por meio de antígenos e partículas genômicas, aglutinação em látex. Ou pode ser indireta, por determinação de anticorpos (imunofluorescência indireta, hemaglutinação passiva, ensaio imunoenzimático – ELISA).
Você imaginava que tantas informações poderiam ser obtidas a partir da análise do líquor (LCR)? Percebeu o quanto é grande a importância de tal análise, certo?
Espero ter ajudado, e até a próxima pessoal!