Uma visão geral sobre o programa MD- PhD
Você sabia que é possível realizar o doutorado e faculdade de medicina ao mesmo tempo? Sabia que isso é possível no Brasil? Se você não sabia, é porque nunca ouviu falar sobre o programa MD- PhD. Neste artigo, vamos explicar um pouco sobre o funcionamento do programa, exigências, objetivos.
Tradicionalmente os estudantes precisam já ter o seu diploma de graduação em mãos para poderem se candidatar ao mestrado. Somente após concluir essa primeira etapa que dura dois anos é que surge a possibilidade de se candidatar às vagas para o doutorado, o qual tem a duração de quatro anos. Dessa forma, em geral, para se obter o título de doutor, o aluno precisa destinar cerca de 6 anos dedicando. Isso sem contar o tempo necessário para se preparar para a banca avaliadora durante a candidatura.
Veja também: “Programa MD-PhD: como começar o doutorado cursando a faculdade.”
No entanto, em algumas universidades de medicina do mundo, incluindo do Brasil, um sistema diferenciado foi criado; programa esse que possibilita que se inicie o doutorado- sim, o doutorado- durante a graduação. Isso mesmo que você leu: antes mesmo de ter o diploma de ensino superior.
Agora você deve estar se perguntando: por que isso surgiu? De onde veio essa ideia?
Podemos dizer que os Estados Unidos foram os primeiros a oferecer programas de MD- PhD em algumas universidades. Defendeu- se a ideia de que os programas formam profissionais aptos a conciliar a profissão e o ambiente de pesquisa.
Dessa forma, os programas surgiram nos EUA com o objetivo mantido até hoje: incentivar a produção de cientistas médicos. Esses poderão obter uma formação que propicie a realização de descobertas a partir de pesquisas desenvolvidas em laboratórios. Além disso, tenham a possibilidade de utilizar seu conhecimento médico- clínico para traduzir suas conclusões em possíveis tratamentos.
MD- PhD NO BRASIL
O exemplo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
A motivação: superar os desafios relacionados à formação de cientistas médicos
Percebe- se, no mundo contemporâneo – principalmente devido ao advento de novas tecnologias- um expressivo progresso tecnológico e científico, além de maior rapidez na aquisição e na geração de conhecimento. Tais avanços contribuem para que a demanda por profissionais competentes, especializados e preparados para trabalhar de forma multidisciplinar aumente ainda mais.
Nesse sentido, a pesquisa médica não foge do padrão. Pelo contrário, cada vez mais são necessários e valorizados profissionais que sejam capazes de investigar doenças desde as suas bases moleculares até as suas manifestações clínicas. No entanto, por mais que pareça paradoxal, o ensino nas universidades brasileiras ainda é relativamente ineficaz na produção de médicos interessados em preencher essa lacuna. Infelizmente, são poucos os médicos dispostos a suprir a demanda por médicos- pesquisadores.
O cenário atual: números comprovam a drástica redução do engajamento dos médicos na área acadêmica
Até 1970, havia relativamente poucos cursos de graduação em ciência básica. A maioria das disciplinas biomédicas nas universidades brasileiras era ensinada nas faculdades de medicina, as quais tentavam integrar os cursos básicos e clínicos. Por isso, nessa época as vagas para estagiários e futuros professores de ciências básicas foram em sua maior parte preenchidas por médicos. Atualmente, esses profissionais, que eram maioria nesses departamentos, tornaram- se uma minoria. Para mostrarmos como essa mudança de cenário se traduziu quantitativamente, vamos ver o que aconteceu na UFRJ.
Até 1985, 52% dos docentes recrutados pelos Institutos de Biofísica e Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro eram médicos. De maneira um tanto quanto inesperada esse número caiu para 25% em 1990 (caiu mais do que a metade!). E a diminuição de médicos nas cadeiras básicas e disciplinas biomédicas não parou por aí; em contratações mais recentes, o número de médicos caiu drasticamente para <5% nesses institutos.
Somado a isso, em 1985, os estudantes de medicina representavam 35% dos estudantes de pesquisa de graduação. Atualmente, eles representam menos de 5%. Dessa forma, percebe- se que nos últimos anos houve, além de uma mudança drástica na composição do corpo docente- com redução expressiva do número de médicos envolvidos com áreas básicas e com o ensino de disciplinas biomédicas- uma redução do engajamento e da participação dos alunos de graduação em medicina em laboratórios de pesquisa.
Por que a falta de interesse durante a graduação? De quem é a culpa?
Não é novidade o fato de que os cursos de medicina são extremamente procurados e, devido à altíssima relação candidato- vaga nos concursos de vestibular, apenas candidatos com excelente desempenho conseguem garantir o seu espaço na faculdade. Por outro lado, como vimos, são poucos os alunos que manifestam interesse pela pesquisa e que atuam, durante a graduação, como estagiários na ciência básica. Por que será?
De maneira geral, a baixo índice de interesse surge como consequência da falta de tempo disponível dos acadêmicos de medicina para desempenhar atividades opcionais. Além disso, uma vez que os cursos de formação médica são organizados com grande carga horária de disciplinas obrigatórios- o que tende a piorar com o avançar da faculdade- existe também a tendência entre esses alunos de abandonar o trabalho de laboratório à medida que o curso avança.
Adicionalmente, temos o outro lado da moeda. Diante do fato de que os estudantes de medicina em geral possuem menos tempo livre em sua grade horária do que a maioria dos estudantes de outros cursos, muitos dos orientadores e chefes de laboratório acabam optando por investir em alunos com outras formações, as quais possibilitem a presença no laboratório por períodos mais longos.
E após a faculdade? Por que o índice de médicos interessados em trabalhar com pesquisa continua baixo?
Difícil dizer… Porém, um dos prováveis fatores responsáveis pela baixa adesão de médicos formados na carreira científica é a remuneração. Como bem sabemos, no contexto brasileiro, ao final do curso de seis anos e após um período de residência ou especialização, o médico geralmente entra no mercado de trabalho já com boa remuneração.
Por outro lado, é apenas após a formatura e enfrentando uma dura concorrência para entrar nos melhores programas de pós-graduação- os quais disponibilizam frequentemente baixos salários- que o médico brasileiro pode concorrer ao mestrado e, após dois longos anos, novamente encarar uma longa jornada para concorrer ao doutorado, que por sua vez tem duração de quatro anos. E, como se não bastasse, muitos ainda optam pelo pós- doutorado, o qual tende a ser bastante valorizado na meio acadêmico.
Mesmo assim, após passar por todos esses anos de muito esforço e de extrema dedicação, muitas vezes o médico com pós-doutorado que finalmente atinge uma posição da faculdade na ciência básica recebe salários inferiores ao de muitos médicos que escolheram se dedicar exclusivamente à prática clínica ou cirúrgica.
Como mudar essa situação?
Iniciativas começaram a ser tomadas com o intuito de atrair o profissional médico para a área de pesquisa. Foi nesse contexto que a UFRJ, com o objetivo de integrar ensino e pesquisa, tornou- se a primeira universidade no Brasil a implementar o Programa de Treinamento em Pesquisa Médica do tipo MD-PhD.
Tal programa viabiliza o ingresso do aluno de medicina na pós-graduação antes do término do ensino superior. Desta forma ele garante o título de doutor (PhD) em até cerca de 2 anos após a conclusão da graduação.
Como funciona o programa MD- PhD na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Em 1995, ano em que estava vigente a fase piloto do programa na UFRJ, seis estudantes de medicina ingressaram no curso de pós-graduação em bioquímica durante o último ano do curso de medicina. E os resultados foram excelentes: em conjunto, foram publicados 233 artigos em revistas científicas internacionais. Além disso, dentre os seis alunos que concluíram o programa MD-PhD na fase de teste, dois são professores universitários e dois trabalham em institutos de pesquisa.
No entanto, foi somente no ano 2000, que a UFRJ institucionalizou um programa formal de MD-PhD estruturado em três etapas, da seguinte forma:
1. Na primeira etapa, o estudante de medicina nos seus dois primeiros anos é incentivado a participar de um laboratório de pesquisa experimental. Espera-se que sua inclinação para a pesquisa médica seja estabelecida nesta fase. Após dois anos de trabalho experimental supervisionado, o aluno solicita a admissão na próxima fase.
2. A segunda fase é um engajamento formal com pesquisa. Os estudantes assumem maior responsabilidade pelo trabalho experimental; participando regularmente de seminários formais de pesquisa; e apresentando trabalhos em reuniões nacionais e devem principalmente começar a publicar trabalhos.
3. Finalmente, dois anos antes de terminar o curso de medicina, o aluno de mestrado e doutorado da UFRJ deve apresentar um seminário e passar por uma entrevista com um comitê. Este avalia a aptidão do candidato para a terceira fase do programa, quando deverá ingressar em um curso de doutorado.
OBS: Vale mencionar que, no Brasil, outras universidades já possuem um programa de MD- PhD disponível aos seus alunos. Alguns exemplos são a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade Federal Fluminense (UFF).
Os programas de MD-PhD pelo mundo
Muitos países adotaram iniciativas para aumentar a integração entre ciências básicas e pesquisa médica. Especificamente, destacam-se os programas de MD-PhD das universidades americanas, as quais foram pioneiras nesse processo. De forma semelhante ao que ocorre no Brasil, as universidades dos EUA, selecionam os candidatos para estudar medicina. Em um segundo momento, são escolhidos para ingressar no programa MD-PhD.
Nesse contexto, esse incentivo aos estudantes contou com o apoio considerável do governo nos EUA. Em 1964, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, EUA) apoiaram programas de MD-PhD em três escolas médicas através do Programa de Treinamento de Cientistas Médicos.
O exemplo da Harvard Medical School (HMS)
Desde 1974, o programa de MD- PhD da Harvard Medical School conta com o apoio principalmente dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), por meio de seu Programa de Treinamento de Cientistas Médicos (MSTP). O mesmo fornece auxílio de bolsas de estudo para os alunos que participam do programa. A missão geral é a de treinar a próxima geração de médicos cientistas, que se engajem em uma rica diversidade de disciplinas clínicas e de áreas de pesquisa, desde ciências básicas e translacionais à bioengenharia e às ciências sociais.
Nesse contexto, o Programa MD-PhD procura oferecer aos alunos iniciantes uma educação médica completa e atualizada. Tudo isso acompanhado de treinamento de pesquisa em laboratórios com profissionais de primeira linha da Universidade de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Um exemplo europeu: escola de medicina da Universidade do Minho
Outro exemplo de programa MD /PhD, agora na Europa, é o da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Lançado em 2006, trata- se de um programa pioneiro em Portugal que possui como objetivo incentivar os estudantes de medicina a desenvolver um projeto de doutorado antes de iniciarem a sua atividade assistencial em unidades prestadoras de cuidados de saúde.
Conclusões
O programa de MD-PhD é uma iniciativa bem-sucedida que permite o treinamento de médicos para pesquisa experimental. No Brasil, além de se objetivar um aumento significativo na produtividade científica, enfrenta- se diariamente o desafio de elevar a qualidade e o impacto internacional da ciência brasileira.
Nesse contexto, a carreira de um médico-cientista é única. Poucas carreiras permitem resolver as doenças de um paciente enquanto pesquisas que tratam do mesmo problemas são desenvolvidas e, em último caso, se traduzir em um tratamento eficaz para a doença. Desta forma, os alunos de MD-PhD são de grande valia. Eles são capazes de resolver os mecanismos subjacentes à doença, junto com a paixão em tratar pacientes em um ambiente clínico.
Dessa maneira, uma vez que o treinamento de MD-PhD integra eficientemente a educação científica e médica do médico-cientista, a tentativa de manter os alunos da faculdade de medicina ativos no programa e, consequentemente, engajados na pesquisa experimental tornou- se uma das estratégias para alcançar o objetivo de alavancar a ciência brasileira e de conquistar muitos avanços na medicina.
O cara que conseguir isso, é ninja.
Muito interessante. Me esclareceu muitas dúvidas. Ótimo !!! ???
Que bom que gostou, Corrado! Fique de olho no próximo artigo sobre os passos para participar do programa.
Adorei o artigo ???
Dra Beatriz, nesse mercado de trabalho, sai na frente quem investe em conhecimento. A titulação de doutorado abre muitas possibilidades. A área acadêmica ainda é carente de bons doutores .
Quais são os referenciais utilizados para construção desse texto?
Olá Hayslla, tudo bem? A autora do texto contou um pouco como foi sua experiência ao fazer doutorado e faculdade ao mesmo tempo (guerreira né?) e usou as seguintes referências para ajudá-la a escrever o artigo:
Braz J Med Biol Res, November 2011, Volume 44(11) 1105-1111 doi: 10.1590/S0100-879X2011007500126 An MD-PhD program in Brazil: students’ concepts of science and of common sense R.V. Oliveira, P.C.C. Campos and P.A.S. Mourão
Ley TJ, Rosenberg LE. The physician-scientist career pipe- line in 2005: build it, and they will come. JAMA 2005; 294: 1343-1351 – LINK: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/201551
Andriole DA, Whelan AJ, Jeffe DB. Characteristics and ca- reer intentions of the emerging MD/PhD workforce. JAMA 2008; 300: 1165-1173 – LINK: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/182529
https://www.med.uminho.pt/pt/Pos-Graduacao/Paginas/MDPhD.aspx
https://www.hms.harvard.edu/md_phd/program/
BOM DI , EU GOSTEI E TENHO INTERESSE.
Obrigado, Omero! Ficamos muito felizes que você gostou, continue acompanhando nossos artigos.