Quando nos referimos à primeira metade da gestação, consideramos que uma gravidez “normal” é aquela que dura em média até 40 semanas. Sendo assim, classifica- se como sangramento de primeira metade o episódio de sangramento que ocorre em até 20 semanas de gestação. Vamos entender um pouco sobre as principais causas de sangramento nesse período?
Gravidez ectópica
A gravidez ectópica é definida como a implantação do ovo fora da cavidade endometrial, tendo como localização mais comum a região da trompa (cerca de 95 % dos casos), mais especificamente na ampola tubária. Presume-se que todas as mulheres com sangramento no início da gravidez e dor pélvica podem ter gravidez ectópica até que esse diagnóstico tenha sido excluído por exames laboratoriais e de imagem. Ainda, caso a mulher tenha um histórico de gravidez ectópica ou outros fatores de risco* para o transtorno, considera-se que ela está mais suscetível a ele, embora muitas mulheres com gravidez ectópica não apresentem fatores de risco para tal.
Em relação ao quadro clínico, deve-se suspeitar sempre que houver uma mulher em idade reprodutiva com atraso ou irregularidade menstrual e dor pélvica, associada ou não a sangramento, que por sua vez ocorre em cerca de 50% dos casos. É importante mencionarmos também que esse sangramento, ao contrário do que muitos pensam, nem sempre está relacionado a uma rotura tubária, podendo ser proveniente de um processo de erosão da mucosa tubária pelo trofoblasto em desenvolvimento.
*dentre os fatores de risco mais comuns para gravidez ectópica temos a doença inflamatória pélvica (DIP, a qual é a principal causa), cirurgia tubária anterior, reprodução assistida, endometriose, raça negra, tabagismo, falha anticoncepcional, primeiro ato sexual com menos de 18 anos, idade > 35 anos, cirurgias abdominais prévias, dentre outros;
E a gestação ectópica rota? Como identificar?
A gestação ectópica rota ocorre em uma parcela significativa das gestações tubárias (cerca de 30%) e, embora possa estar localizada em qualquer porção da tuba uterina, quando ocorre nas primeiras semanas de gestação geralmente tem como local de implantação o istmo. A suspeita de gestação ectópica rota é mandatória na vigência de hemorragia intraperitoneal volumosa, dor aguda e geralmente muito intensa em região de fossa ilíaca ou hipogástrio, além da vigência de hipotensão e choque. Nesses casos, vários sinais de irritação peritoneal podem estar presentes.
Nos demais casos, quando não há rotura, pode haver o crescimento do saco gestacional o que, consequentemente, gera distensão da trompa e desconforto abdominal. Nessa situação, ocorre o abortamento tubário, que pode cursar com sangramento e sinais de irritação peritoneal menos proeminentes.
Como fazer o diagnóstico?
O diagnóstico de gestação ectópica é feito por meio de critérios clínicos, da dosagem de beta- hCG e da realização de ultrassonografia (USG). Nesses casos, considera- se o nível sérico de beta- hCG a zona discriminatória, acima do qual um saco gestacional deve ser visualizado por ultrassonografia transvaginal se uma gravidez intra-uterina estiver presente. Nas mãos de um ultrassonografista experiente, a ausência de gravidez intra-uterina no exame de ultrassonografia transvaginal quando a concentração de beta- hCG é maior que 2.000 mUI / L ou maior que 6000 UI/L para ultrassonografia transabdominal sugere fortemente gravidez ectópica. Nesses casos, uma massa anexial pode ou não ser vista. Ainda, deve-se atentar para a presença de instabilidade hemodinâmica e de um abdome sensível, os quais sugerem que a gravidez ectópica se rompeu.
No entanto, a ausência de uma gravidez intra-uterina identificável ultra-sonograficamente quando a concentração de hCG é superior a 2.000 mUI / L não é prova absoluta de gravidez ectópica. Esse limiar é um tanto dependente da instituição e não leva em consideração a possibilidade de uma gestação múltipla muito precoce (os níveis de beta- hCG são mais altos em gestações múltiplas). De maneira geral, assumimos para o diagnóstico a presença de achados clínicos como a vigência de dor pélvica, associada a atraso menstrual e sangramento vaginal (geralmente discreto), com presença de beta- hCG acima de 1.500- 2.000 mUI/ ml e USG sem evidências de gestação tópica.
E como é feito o manejo da gravidez ectópica?
O manejo da gravidez ectópica geralmente inclui como possibilidades a terapia com metotrexato (MTX) ou o tratamento cirúrgico. No entanto, também existe a possibilidade de se optar por um manejo expectante o qual, apesar de ser possível em alguns casos, pode ser perigoso para a mãe.
Em geral, o tratamento expectante pode ser proposto para mulheres com beta- \hCG inferior a 1000 mUl/ml e declinante, estabilidade hemodinâmica e saco gestacional menor ou igual a 3,5 cm. Já o tratamento medicamentoso com metotrexate é indicado para mulheres com saco gestacional menor ou igual a 3,5cm, atividade cardíaca fetal ausente e beta- hCG inferior a 5000 mUl/ ml. Além disso, deve- se ter em mente a possibilidade de tratamento cirúrgico, por meio de laparotomia ou de laparoscopia. Mesmo se uma gravidez intra-uterina for diagnosticada, a possibilidade de gravidez heterotópica deve ser mantida em mente, embora seja rara. Isso é particularmente importante em mulheres que foram submetidas à fertilização in vitro, uma vez que estes pacientes estão em maior risco de complicações na gravidez.
Gravidez cervical
A gravidez cervical é uma forma rara de gravidez ectópica na qual a gravidez se implanta no revestimento do canal endocervical. Nesse contexto, geralmente o sangramento vaginal é o sintoma mais comum e muitas vezes é indolor e profuso, resultando em instabilidade hemodinâmica. Pode ser diagnosticada como um aborto incompleto.
Ameaça de abortamento
O sangramento vaginal na presença de um colo do útero fechado e a visualização ultrassonográfica de uma gravidez intra-uterina com atividade cardíaca fetal detectável são diagnósticos de ameaça de abortamento. O termo “ameaça” é usado para descrever esses casos porque o aborto espontâneo nem sempre ocorre após o sangramento vaginal no início da gravidez, mesmo após episódios repetidos ou grandes quantidades de sangramento. Pelo contrário, observa- se que cerca de 90 a 96 % das gestações com atividade cardíaca fetal e sangramento vaginal entre 7 e 11 semanas de gestação não abortam espontaneamente. Nesses casos, considera- se que o sangramento ocorre provavelmente devido à ruptura de vasos deciduais na interface materno-fetal. Essas separações geralmente não podem ser visualizadas na avaliação ultrassonográfica, embora possam aparecer, por vezes, como um hematoma subcoriônico. A conduta nesses casos é expectante.
Abortamento inevitável
Quando o aborto espontâneo é inevitável, o colo do útero encontra-se dilatado, o sangramento vaginal tende a aumentar de maneira progressiva e a mulher sente dor em cólica de geralmente de alta intensidade, as quais se apresentam em associação com a presença de contrações uterinas. O tecido gestacional muitas vezes pode ser sentido ou visto através do orifício cervical e tipicamente observa-se a passagem deste tecido, a qual ocorre geralmente dentro de um curto período de tempo. A conduta nesse contexto pode ser expectante, mas alguns casos podem requerer uma intervenção médica ou cirúrgica para completar o aborto.
Aborto espontâneo completo
Quando um aborto espontâneo ocorre antes de 12 semanas de gestação, é comum que todo o conteúdo do útero seja expelido, resultando assim em um aborto espontâneo completo. Quando isso ocorre, detecta-se ao exame físico a presença de útero pequeno para a idade gestacional e bem contraído com o colo do útero aberto ou fechado. De maneira geral, o sangramento vaginal é reduzido e ocorrem apenas cólicas leves. Quando realizada, a ultrassonografia revela um útero vazio e sem gestação extra- uterina.
Como diferenciar um aborto espontâneo completo de uma gravidez ectópica?
Essas duas causas de sangramento do primeiro trimestre da gestação podem ser distinguidas por meio da realização do exame do tecido que foi externalizado para confirmar os produtos da concepção, pela detecção de níveis decrescentes de beta- hCG (em vez de níveis crescentes ou estáveis), bem como pela descrição do paciente de ocorrência de diminuição do sangramento e da dor. Nenhuma intervenção adicional é necessária para o aborto espontâneo completo se as vilosidades coriônicas forem identificadas pelo exame patológico dos produtos da concepção. Entretanto, se nenhum vilo for identificado ou nenhuma amostra estiver disponível para exame patológico, então os níveis séricos de hCG devem ser seguidos em série até que o nível seja indetectável.
Aborto espontâneo incompleto
É importante sabermos que nem todo o abortamento ocorre com a eliminação de todo o conteúdo do útero. Na realidade, por vezes as membranas podem sofrer ruptura e o feto pode ser externalizado, mas com a retenção de quantidades significativas de tecido placentário, resultando no que se denomina aborto espontâneo incompleto. Esse tipo de aborto espontâneo é mais comum no final do primeiro trimestre e início do segundo trimestre da gestação.
Ao exame, observa-se o colo aberto (em uma menor parte dos casos, o colo pode estar fechado, mas nesses casos ocorre a eliminação quase total dos produtos ovulares e as cólicas reduzem, bem como o sangramento, as ainda assim são detectados restos ovulares à USG), o tecido gestacional pode ser observado no colo uterino e o tamanho do útero geralmente é menor do que o esperado para a idade gestacional, mas não é bem contraído. Em relação à quantidade de sangramento, essa tende a ser variável, mas pode ser grave o suficiente para causar choque hipovolêmico. Além disso, dores em cólica e contrações dolorosas estão com frequência presentes. Quando realizada, a ultrassonografia revela a presença de tecido retido no útero (hiperecogênicos).
E qual seria a conduta correta em caso de abortamento incompleto?
Pode ser adotada conduta expectante, mas essa em geral apresenta resultados piores (como a vigência de aumento da intensidade da dor, de sangramento imprevisível e até mesmo necessidade de curetagem de urgência) e, portanto, tende a ser evitada. Além disso, devemos levar em consideração as possíveis complicações, como a ocorrência de coagulação intravascular disseminada (CIVD, a qual é a uma complicação importante) e de infecção, a qual consiste em uma complicação um pouco mais rara. Sendo assim, geralmente opta-se pelo esvaziamento uterino.
Abortamento infectado
O abortamento infectado, na realidade, ocorre devido à ascensão de germes que produzem infecção local ou sistêmica. Esse tipo de ocorrência pode acompanhar qualquer um dos quadros de abortamento e geralmente tem como principais germes causadores os constituintes da flora genital e intestinal. Ao exame, o paciente pode se apresentar com febre, útero amolecido e sensível, presença de odor vaginal fétido, dor abdominal intensa, secreção purulenta, náuseas, dentre outros. Além disso, o colo apresenta- se geralmente aberto. Em relação ao sangramento, ele tende a ser variável e os exames laboratoriais geralmente evidenciam leucocitose.
Se é um abortamento infectado, temos que iniciar antibioticoterapia, certo?
Certíssimo! Como conduta, deve-se prosseguir com a instituição de antibioticoterapia imediata e esvaziamento uterino. Além disso, em casos de abortamento provocados pela manipulação da cavidade uterina, deve- se realizar a prevenção do tétano, de acordo com a situação vacinal do paciente.
Doença trofoblástica gestacional
A doença trofoblástica gestacional (DTG) compreende um grupo heterogêneo de lesões relacionadas decorrentes da proliferação anormal do trofoblasto da placenta. A patogênese da DTG é única, porque as lesões surgem do tecido fetal, não do materno. Quando usamos o termo “doença trofoblástica gestacional” fazemos menção à presença de lesões caracterizadas por proliferação anormal do trofoblasto da placenta. Essa categoria é composta tanto por lesões benignas, não neoplásicas, dentre as quais é importante mencionarmos a mola hidatiforme, quanto por lesões malignas. Nesse caso, pode- se detectar a ocorrência de neoplasia trofoblástica gestacional (NTG), que inclui como possibilidades a vigência de coriocarcinoma, de tumor trofoblástico do sítio placentário (TTSP) e de mola invasora.
Lesões benignas: mola hidatiforme
Dentre as lesões trofoblásticas benignas e não neoplásicas, merece destaque a mola hidatiforme, a qual resulta de anormalidades na fertilização. A mola hidatiforme pode ser completa ou parcial e, apesar de ser essencialmente benigna, pode estar associada a um risco aumentado de neoplasia trofoblástica gestacional persistente ou maligna.
Lesões malignas: tumor trofoblástico gestacional (TTG) ou neoplasia trofoblástica gestacional (NTG)
A neoplasia trofoblástica gestacional verdadeira compreende um grupo de tumores com potencial para invasão local e metástases. Em contraste com outras malignidades mais comuns, NTG é curável em 85 a 100 % dos casos, mesmo na presença de doença avançada. Dentre os tipos, há o coriocarcinoma, o tumor trofoblástico do sítio placentário e o tumor trofoblástico epitelioide.
Vaginite, trauma, tumor, verrugas, pólipos, miomas
Essas condições são diagnosticadas por inspeção visual, com testes auxiliares como indicado (por exemplo, pH do corrimento vaginal, citologia cervical e/ou biópsia de lesões de massa, exame ultrassonográfico do útero para detectar lesões neoplásicas). Mesmo que uma lesão pareça ser a fonte de sangramento no exame pélvico, é prudente sempre considerar a possibilidade de gravidez ectópica em mulheres com sangramento no primeiro trimestre, especialmente se associada à dor. Nesses casos, o manejo do sangramento relacionado a essas condições depende da condição específica.
Ectrópio
O ectrópio cervical corresponde à presença de epitélio colunar exposto ao meio vaginal por eversão do endocérvix, o qual é um achado comum e normal na gravidez. Nesse contexto, é importante notarmos que o epitélio colunar exposto é propenso a sangramento leve quando tocado, como por exemplo ao longo do coito vaginal, durante a inserção de um espéculo, durante o exame bimanual ou mesmo quando uma amostra cervical é obtida para citologia ou cultura. Nesses casos a terapia é desnecessária.
Sangramento fisiológico ou de implantação
O diagnóstico de sangramento de implantação é de exclusão. Esse sangramento é caracterizado pela presença de uma pequena quantidade de manchas ou sangramento que ocorre em aproximadamente 10 a 14 dias após a fertilização e presume-se que esteja relacionado com a implantação do óvulo fertilizado na decídua, embora essa hipótese tenha sido questionada. Nesses casos também não é necessário intervir.
Sobre o prognóstico…
Diversos estudos mostram consistentemente que existe uma associação entre o sangramento no primeiro trimestre de gestação e o resultado adverso mais tarde na gravidez, como por exemplo, a ocorrência de aborto espontâneo, de parto prematuro, de rotura prematura das membranas e de restrição do crescimento fetal. Em termos gerais, o que se observa é que o prognóstico é melhor quando o sangramento é leve e limitado à gravidez precoce – ou seja, quando ocorre com menos de 6 semanas de gestação. Por outro lado, o prognóstico tende a piorar quando o sangramento é intenso ou se estende até o segundo trimestre.