Você já ouviu falar dessa doença? Sabe como ela é causada e suas consequências? Saberia suspeitá-la em algum paciente seu?
Então, vamos começar nossa leitura para que você possa responder todas essas perguntas de maneira afirmativa!
QUAL A DEFINIÇÃO DE HEMOCROMATOSE?
É um distúrbio hereditário do metabolismo do ferro, que acarreta em uma desregulação da absorção intestinal do mesmo, levando ao depósito férrico em diversos tecidos e causando disfunção funcional de vários órgãos.
Ainda sobre o termo hemocromatose, é um grupo de doenças genéticas que predispõem à sobrecarga tecidual de ferro, podendo acarretar fibrose e falência do órgão acometido.
QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA HEMOCROMATOSE?
Ainda vou abordar detalhadamente para vocês, mas algumas manifestações devem “ligar nosso sinal de alerta” para hemocromatose, que são: cirrose hepática, diabetes melito, artrite, miocardiopatia e hipogonadismo hipogonadotrópico.
QUAL A PREVALÊNCIA DA DOENÇA? É ALGO MUITO RARO?
As mutações da hemocromatose associada ao gene HFE estão entre os alelos das doenças hereditárias mais comuns. A prevalência da doença varia de acordo com os diferentes grupos étnicos.
É mais comum em populações da Europa Setentrional, onde 1 a cada 10 indivíduos é portador heterozigoto do alelo da doença, e 0,3-0,5% homozigotos.
No entanto, a manifestação da doença em si pode ser influenciada por diversos fatores, como ingestão alcóolica, alimentação rica ou pobre em ferro, nível de sangramento na menstruação, entre outros fatores.
Esse tipo de hemocromatose costuma iniciar suas manifestações na faixa etária dos 40-60 anos, raramente apresentando sintomas antes dos 20 anos.
Por outro lado, a hemocromatose não associada ao gene HFE é rara, acometendo pessoas de todas as raças e mais jovens (chamada de hemocromatose juvenil).
QUAIS SÃO AS CAUSAS DE HEMOCROMATOSE?
Esse é um tópico do assunto bem extenso e complexo. Sendo assim, vamos ter uma ideia básica do que todo aluno de medicina e médico deve conhecer.
A hemocromatose, ou sobrecarga de ferro, pode ser classificada da seguinte maneira:
– Hemocromatose Hereditária:
. relacionada ao HFE (tipo 1);
(homozigose C282Y / heterozigose composta por C282Y-H63D)
. não relacionada ao HFE
(hemocromatose juvenil – 2A / 2B / mutação do receptor da transferrina – tipo 3 / mutação do gene da ferroportina-1 – tipo 4)
– Sobrecarga adquirida de ferro:
. anemia por sobrecarga de ferro
(Talassemia maior; Anemia sideroblástica; Anemias hemolíticas crônicas; Sobrecargas de ferro transfusional e parenteral; Sobrecarga dietética de ferro)
. doença hepática crônica
(Hepatite C; Cirrose alcóolica; Porfiria cutânea tardia; após derivação portocava)
– Outros:
. sobrecarga de ferro na África Subsaariana (acredita-se que isso ocorra pelo consumo de bebida fermentada rica em ferro por essa população)
. Sobrecarga de ferro neonatal
. Aceruloplasminemia;
. Atransferrinemia congênita
GUILHERME, E QUAL O MECANISMO DE AÇÃO DESSA DESORDEM? COMO ELA OCORRE?
Esse tópico merece um pouquinho mais de atenção, para que a gente possa compreender de maneira mais fácil as manifestações da doença!
Em situações normais, o equilíbrio do corpo permite que a absorção de ferro pelo trato intestinal seja semelhante à perda, mantendo um conteúdo corporal de ferro que permanece em torno de 3 a 4 gramas.
Na hemocromatose, essa absorção muitas vezes se encontra aumentada, sendo 4 vezes maior quando comparada às situações normais. Com o tempo, isso aumenta o nível de ferro sérico, a transferrina e elevação da ferritina plasmática (“estoque de ferro”).
O fígado, por sua vez, produz um peptídeo conhecido como hepcidina, que tem como papel reprimir o transporte de ferro intestinal, além da sua liberação por células como os macrófagos. A hepcidina responde a sinais hepáticos mediados pelo HFE, TfR2 e hemojuvelina.
Portanto, esta é uma molécula importante no metabolismo do ferro e, muitas vezes, é ela que se encontra afetada no caso de algumas hemocromatoses.
Na hemocromatose associada ao HFE, o principal mecanismo é a ausência de expressão de HFE na superfície celular, o que ocasiona uma suprarregulação de transportadores de ferro na membrana das células intestinais, permitindo uma absorção desse elemento muito mais exacerbada.
Na doença avançada, o organismo pode conter 20 g ou mais de ferro (ou seja, 5 vezes mais do que o normal!!!), fazendo depósitos principalmente nas células parenquimatosas do fígado, pâncreas e coração. Quando o ferro se deposita na hipófise, é capaz de causar hipogonadismo hipogonadotrófico em ambos os sexos.
A lesão dos tecidos pode ocorrer como consequência de diversos fatores: ruptura de lisossomos sobrecarregados de ferro, peroxidação lipídica de organelas, estímulo à síntese de colágeno por células estreladas ativadas, o que acarreta a fibrose do órgão.
Em sobrecargas secundárias de ferro, como distúrbios crônicos da eritropoiese (ex.: anemia sideroblástica; talassemia), há depósito de ferro nas células parenquimatosas por aumento da absorção de ferro pelo intestino (tentativa do organismo de responder aquele quadro de anemia).
Além disso, esses pacientes geralmente são indivíduos que necessitam de transfusão de repetição e, com frequência, podem ser tratados com reposição de ferro erradamente (tratamento empírico de anemia), contribuindo ainda mais para a sobrecarga desse elemento.
Outra possibilidade da manifestação da doença seria a ingestão excessiva de ferro. No entanto, isso é muito raro! Uma população específica onde se notou isso foram grupos na África do Sul, que possuíam o hábito de ingerir, durante anos, bebidas fermentadas em recipientes feitos à base de ferro.
Portanto, independente da etiologia por trás, o denominador comum dessa enfermidade consiste na quantidade excessiva de ferro nos tecidos parenquimatosos.
AGORA SIM A PARTE MAIS LEGAL (PELO MENOS PRA MIM)! QUAL A CLÍNICA DESSES PACIENTES?
Antes de começar a enumerar as manifestações clínicas desses indivíduos, é importante lembrar que uma grande parte deles será assintomática, mesmo com sobrecarga tecidual de ferro.
Os sintomas iniciais se manifestam de forma inespecífica, com um quadro de letargia, artralgia, alterações de cor da pele, perda de libido e diabetes melito.
Na doença avançada, é comum o encontro de hepatomegalia, aumento da pigmentação (pele “mais acinzentada”), telangiectasias, esplenomegalia, artralgia, ascite, arritmias cardíacas, insuficiência cardíaca, perda de pelos corporais, atrofia testicular e icterícia.
Na maioria das vezes, o fígado é o primeiro órgão a ser acometido. As manifestações de hipertensão portal e varizes esofageanas são menos comuns do que nas outras causas de cirrose. O carcinoma hepatocelular acomete 30% dos indivíduos com diagnóstico de cirrose.
Na doença avançada, podemos notar um tom de pele descrito como metálico, ou cinza-ardósia, resultante do acúmulo de melatonina e ferro na derme. Em geral, a pigmentação da pele é difusa.
Já o diabetes melito ocorre em 65% dos pacientes com uma doença mais avançada e é mais comum naqueles que possuem história familiar dessa desordem endocrinológica.
Artropatia está presente em 25-50% dos indivíduos, surgindo, em geral, a partir dos 50 anos de idade, sendo as articulações das mãos as primeiras a serem acometidas.
E O COMPROMETIMENTO CARDÍACO?
Constitui a manifestação inicial em cerca de 15% dos pacientes sintomáticos. O quadro clínico mais comum é o de insuficiência cardíaca com seus comemorativos, ocorrendo em cerca de 10% dos pacientes jovens, particularmente nos portadores de hemocromatose juvenil.
Os sintomas podem aparecer de forma súbita, evoluindo muito rapidamente e acarretando a morte, caso não reconhecida nem tratada.
Aumento do coração é comum. Arritmias como taquicardias supraventriculares, extrassístoles, flutter atrial, fibrilação atrial e bloqueio atrioventricular podem estar presentes.
O acometimento cardíaco da hemocromatose pode ocorrer de maneira isolada, sem outros estigmas da doença, embora seja rara essa apresentação.
E O HIPOGONADISMO?
É observado em ambos os sexos e pode preceder as outras manifestações clínicas. Pode se apresentar com perda de lívido, impotência, amenorreia, atrofia testicular, ginecomastia e perda de pelos corporais.
Isso é resultado da diminuição da produção de gonadotropinas pelo acometimento do eixo hipotálamo-hipofisário.
O PACIENTE COM HEMOCROMATOSE CLÁSSICO:
Vamos lembrar: manifestações de insuficiência hepática, acometimento cardíaco, atrofia testicular, diabetes melito, “bronzeamento”, perda de pelos!!!
COMO REALIZAR O DIAGNÓSTICO?
Novamente, para reforçar, diante de um quadro clínico com hepatomegalia, pigmentação cutânea, diabetes melito, cardiopatia, artrite e hipogonadismo, o diagnóstico tem que ficar “pulando”na nossa cabeça! No entanto, é bom lembrar que, mesmo diante da sobrecarga de ferro, o paciente pode ser assintomático ou oligossintomático.
Com isso, para o diagnóstico precoce devemos estar atentos. Isso porque o tratamento antes da lesão orgânica pode reverter a toxicidade causada pelo ferro e permitir uma sobrevida normal para esses pacientes.
Como para qualquer outro diagnóstico, a anamnese deve ser bem realizada. Detalhes, como pesquisa de quadros semelhantes em familiares, consumo de álcool, ingestão de ferro, história de politransfusão, não podem ser esquecidos no interrogatório.
O exame físico e os exames complementares devem ser guiados na busca de sinais de doença hepática, pancreática, cardíaca e articular.
Na busca pelo diagnóstico, é importante avaliar o famoso “perfil de ferro” com a dosagem de ferro sérico, saturação de transferrina, ferritina sérica, e em alguns casos a biópsia hepática para a determinação da concentração de ferro neste órgão e o cálculo do índice de ferro hepático. Cada um desses métodos possui vantagens e limitações.
– Ferro sérico e saturação de transferrina: costumam estar elevados no início da doença, porém possuem especificidade baixa (ex.: o ferro sérico pode estar aumentado em pacientes com hepatopatia alcóolica sem sobrecarga de ferro).
– Ferritina sérica: em geral, é um bom determinante das reservas corporais de ferro, estando diminuída ou aumentada. Na maioria dos pacientes com hemocromatose sem tratamento, a ferritina se encontrará aumentada expressivamente (níveis acima de 1000 mg/mL devem chamar nossa atenção para o diagnóstico!).
Em geral, a determinação de saturação de transferrina (que se encontrará aumentada) e da ferritina sérica é uma boa triagem para o diagnóstico de hemocromatose. Na suspeita da doença, com qualquer um desses testes anormal, a pesquisa de mutações deve ser realizada.
– Biópsia hepática / Tomografia computadorizada / Ressonância nuclear magnética: cada vez menos realiza-se a biópsia hepática para o diagnóstico de hemocromatose, por se tratar de exame invasivo e pela ampla disponibilidade dos testes genéticos para a mutação C282Y. No entanto, é importante ter na cabeça que a biópsia é o único método totalmente confiável para estabelecer ou excluir a presença de cirrose hepática. A biópsia também permite a estimativa histoquímica do ferro tecidual, além da determinação da concentração hepática de ferro.
A tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética (principalmente esta) permitem demonstrar o aumento da densidade hepática pelo acúmulo de ferro. A RNM é precisa na determinação da concentração hepática de ferro.
DEVEMOS REALIZAR TRIAGEM PARA HEMOCROMATOSE?
Se realizarmos o diagnóstico de hemocromatose em algum indivíduo, imediatamente o aconselhamento genético e a triagem dos familiares devem ser realizadas.
Todos os parentes de primeiro grau dos pacientes com hemocromatose devem ser testados para as mutações C282Y e H63D, além de aconselhados adequadamente.
Nas pessoas acometidas, faz-se importante confirmar ou excluir a presença de cirrose e iniciar o tratamento o mais precoce possível.
Por outro lado, a triagem universal, ou seja, em toda a população é um tema controverso e ainda não é estabelecida.
QUAL A REAL GRAVIDADE E PROGNÓSTICO DESSES DOENTES?
As principais causas de morte nesses pacientes são insuficiência cardíaca, insuficiência hepática e carcinoma hepatocelular.
Com a manutenção das reservas de ferro dentro da normalidade, há melhora da expectativa de vida. Com o tratamento, a sobrevida em 5 anos aumenta de 33 para 89%. Com as flebotomias, o fígado pode reduzir seu tamanho, há melhora da função hepática, redução da pigmentação da pele, e a insuficiência cardíaca pode ser revertida.
Há também melhora da diabetes em uma parcela dos pacientes. Por outro lado, a atralgia e o hipogonadismo não melhoram com a remoção do excesso de ferro. Em casos de cirrose estabelecida, esta é irreversível.
PARA FINALIZAR, PODEMOS FALAR DE TRATAMENTO?
O tratamento desta enfermidade envolve a remoção do excesso de ferro corporal e tratamento de suporte dos órgãos especificamente afetados.
Como é feita essa remoção do excesso de ferro? Em geral, através de flebotomias de 500 mL, 1 ou 2 vezes por semana. O alvo é a queda dos níveis de ferritina sérica (a saturação de transferrina costuma se manter elevada, mesmo com o tratamento adequado). Na maioria das vezes, o alvo de ferritina fica em torno de 50-100 mg/mL.
Agentes quelantes do ferro, como a desferroxamina, estão indicados quando a anemia ou a hipoproteinemia são graves, impedindo a flebotomia.
O consumo de álcool deve ser intensamente desencorajado, já que aumenta em praticamente 10 vezes o risco de cirrose na hemocromatose hereditária.
O tratamento da diabetes, da insuficiência hepática e cardíaca é o mesmo proporcionado em outras etiolodias desses acometimentos.
A perda de libido, alterações de caráter sexual proporcionados pelo hipogonadismo podem ser tratados com reposição de testosterona e com gonadotropinas.
Para finalizar, é importante ressaltar que os indivíduos assintomáticos, detectados por meios de triagem familiar e que apresentem sobrecarga de ferro, possuem indicação de flebotomias para atingir o alvo terapêutico.
Esses pacientes se beneficiam com aumento da sobrevida e chance de evitar manifestações da doença.