Nos últimos quatro meses, mais de dois mil casos de infecção pelo vírus ebola e mais de 1300 mortes já confirmadas configuram o novo surto que acontece ainda hoje na República democrática do Congo, país que está enfrentando o segundo maior surto da doença de que se tem notícia, após três anos do maior surto mundial ter terminado. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o conflito armado que o país enfrenta dificulta ainda mais a ação médica na região o que, nessas condições, permite que o vírus se espalhe mais rápido, preocupando os países vizinhos. Por isso, se prepare, pois esse tema é quente para as provas de residência desse ano!
O vírus ebola é um vírus RNA que pertence à família Filoviridae e é um agente endêmico na região oeste e equatorial da África. Sua transmissão se dá pelo contato homem ao homem através dos fluidos corporais contendo o agente, causando infecções com potencial epidêmico. Entre 2013 e 2016, no Oeste africano, a epidemia pelo vírus causou mais de 28 mil casos confirmados e mais de 11 mil mortes.
VIROLOGIA
No âmbito da microbiologia, o agente etiológico é do gênero Ebolavirus, da família Filoviridae e ordem Mononegavirales, vírus cujo genoma consiste em uma única fita de RNA com polaridade negativa. O gênero contém cinco espécies das quais apenas três foram associados doenças no homem. As três espécies são: Bundibugyo, Sudan, e Ebola, sendo a espécie Ebola a responsável pela doença Ebola (lembre-se de que a taxonomia viral não segue a nomenclatura binomial, utilizada para classificar e nomear outros agentes).
A fatalidade da doença pelo vírus ebola pode chegar a 80%. Poucas mutações adaptativas foram selecionadas na cepa associada ao surto, identificou-se uma mutação capaz de aumentar a entrada do vírus em células humanas, como também outras mutações foram identificadas, mas não há evidências ainda que estas alteram o curso clínico da doença.
EPIDEMIOLOGIA
Desde que o gênero Ebolavirus foi identificado pela primeira vez em 1976, mais de 20 surtos conhecidos de ebola foram identificados na África Subsaariana, principalmente no Sudão, Uganda, República Democrática do Congo e Gabão, e principalmente devido aos vírus Ebola e Sudan. Os surtos aconteceram principalmente associados a áreas rurais e semi-urbanas.
A doença do vírus Ebola é considerada zoonótica, com surtos ocasionais de acometimento em humanos. Os macacos, e possivelmente outros animais, como os morcegos pertencentes à família Pteropodidae, são tidos como os hospedeiros naturais do vírus Ebola, embora o vírus ainda não tenha sido isolado de morcegos em condições naturais.
Os seres humanos são provavelmente infectados seja por manuseio de animais infectados doentes ou mortos, ou por contato direto ou indireto com morcegos infectados. A transmissão secundária entre humanos pode ocorrer por meio do contato direto com sangue, secreções ou outros fluidos corporais infectados. Há relatos de transmissão pelo contato na remoção de cadáveres infectados. Levantamentos de soroprevalência sugerem que infecções assintomáticas podem ocorrer.
DIAGNÓSTICO
A PCR em tempo real foi o exame laboratorial utilizado durante o surto da doença na África Ocidental entre 2013 e 2016. Entretanto, durante muitos anos, o principal método para detecção da família desses vírus foi o isolamento do vírus em cultura de células.
Quando os pacientes se apresentam com a doença do vírus Ebola entre 3 a 6 dias após o início dos sintomas, a carga viral no paciente já é alta e detectável em amostras de sangue por PCR. No entanto, um único resultado de PCR negativo logo após o início dos sintomas não exclui a doença e, portanto, o teste deve ser repetido várias vezes ao longo de um período de 72 h se a suspeita clínica persistir.
O pico de viremia se dá entre 3 e 7 dias após o início dos sintomas. Em casos fatais, a viremia costuma ser 10 a 100 vezes maior que nos sobreviventes. Nos sobreviventes, a viremia irá diminuir até níveis indetectáveis por PCR cerca de 2 a 3 semanas após o início da doença.
A produção de anticorpos IgG e IgM se desenvolve principalmente entre os sobreviventes, mas não em todos os casos fatais, portanto, o diagnóstico da doença pelo vírus Ebola usando sorologia só é possível em uma pequena fração de pacientes sintomáticos e, para um diagnóstico inequívoco, requer soroconversão ou um aumento substancial no título de anticorpos amostras. Lembre-se de que a sorologia é o método de escolha para diagnosticar infecções pelo vírus Ebola em pacientes pouco sintomáticos, caracterizados por viremia extremamente baixa e desenvolvimento de IgG e IgM cerca de 3 semanas após a infecção.
Na fase de viremia, o vírus pode ser detectado por PCR em amostras de saliva, lágrimas, suor, leite materno, urina, fluido ocular, líquido amniótico, líquido cefalorraquidiano, fluido vaginal e seminal. O vírus Ebola tende a persistir, especificamente nos chamados locais imunologicamente privilegiados (como o olho, o sistema nervoso central e os testículos), onde a resposta imune antiviral é menos eficaz contra o vírus. A persistência está associada a sequelas clínicas, reativação de doenças, disseminação do vírus a longo prazo e transmissão do vírus. O vírus encontrado no líquido seminal ainda pode ser infeccioso e sexualmente transmitido por mais de um ano após o início da doença.
Devido a grande característica epidêmica e características de grande transmissibilidade entre os contactantes, a suspeita diagnóstica clínica epidemiológica pode ser fundamental para eleição daqueles pacientes possivelmente infectados.
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS AGUDAS
Após um período de incubação de 2 a 21 dias, a doença do vírus Ebola normalmente começa como uma síndrome viral não específica de início abrupto. Os sintomas mais comuns são febre alta, mal-estar, fadiga e dores no corpo. Esses sintomas geralmente são acompanhados após alguns dias por sintomas gastrointestinais, que incluem náuseas, vômitos e diarreia.
Embora alguns pacientes comecem a se recuperar nesse estágio, outros abrirão quadro de choque, possivelmente devido à hipovolemia e pela resposta inflamatória sistêmica. Nesse período, os pacientes podem apresentar eventos hemorrágicos que incluem hemorragia conjuntival, petéquias, sangramento gastrointestinal, sangramento de mucosas e sangramento contínuo após punção venosa. Os eventos neurológicos são raros e incluem confusão, delírio e convulsões.
Outros sintomas tardios incluem disfagia, dor de garganta e úlceras orais. Excepcionalmente, a morte súbita pode ocorrer na recuperação dos pacientes, possivelmente devido a arritmias cardíacas.
Os achados laboratoriais incluem graus variáveis de anemia e trombocitopenia. Alterações do leucograma são mais variáveis. Disfunção renal com ou sem proteinúria e aumentos substanciais nas enzimas hepáticas são comuns. Distúrbios hidroeletrolíticos são comuns, especialmente hipocalemia, hiponatremia e hipocalcemia. Coagulação intravascular disseminada e acidose metabólica são eventos que podem ocorrer, principalmente nos casos de choque e insuficiência renal.
Alguns fatores prognósticos foram determinados: altas cargas virais, associadas à rabdomiólise severa e comprometimento renal têm sido consistentemente preditivos de morte. As mulheres grávidas apresentam maiores taxas de mortalidade e alto risco de aborto espontâneo/natimorto. A apresentação clínica e a gravidade também foram usadas para estratificar o manejo do paciente.
MANEJO CLÍNICO
Não há um tratamento especifico para os pacientes, por isso, o manejo deve ser quanto à aplicação de uma terapia de suporte e, se possível, internação em centro de terapia intensiva, uma vez que foi demonstrado maior sobrevida daqueles submetidos a esses cuidados.
A correção de perdas de líquidos, através da reidratação oral ou parenteral, é uma prática padrão em pacientes graves, mesmo que haja pouca evidência apoiando sua aplicação nas vítimas de Ebola. Cuidados quanto à intensidade da terapia de reidratação deve ser maior para os pacientes com lesão renal ou insuficiência vascular.
Uma vez que o comprometimento renal está associado à pior prognóstico, sua abordagem é fundamental, devendo-se definir se a insuficiência é de origem pré-renal ou renal e realizar abordagem adequada de acordo com tal. Monitorização frequente dos eletrólitos, função renal, valores de hemoglobina ou hematócrito, pH, ânion gap, glicemia e lactato podem ajudar na tomada de decisões na terapia intensiva.
A pesquisa de uma terapia específica tem como objetivo reduzir rapidamente a replicação viral para limitar a grande resposta inflamatória desencadeada pela expansão viral, permitindo assim respostas imunes inatas e adaptativas eficazes. Entretanto, estes ensaios clínicos não puderam demonstrar eficácia inequívoca de qualquer tratamento.
Até o momento, nenhuma terapêutica para o tratamento específico da infecção foi clinicamente comprovada como eficaz na redução da mortalidade. Existem dados promissores sobre a terapêutica com pequenas moléculas com atividade antiviral direta e anticorpos monoclonais (mAbs), alguns dos quais atuam impedindo a ligação da glicoproteína do vírus Ebola (EboGP) ao seu receptor celular, mas nenhuma delas ainda foi comprovada quanto a eficácia e segurança.
APRENDENDO COM A EPIDEMIA PASSADA
Um estudo longitudinal para avaliar sequelas em pacientes sobreviventes a epidemia de ebola na Libéria de 2013-2016, descrito no trabalho PREVAIL III, publicado em 7 de março de 2019, mostrou que a sobrevida após infecção pode estar associada a algumas complicações de saúde. O PREVAIL III é um estudo longitudinal que avaliou sobreviventes por um período de cinco anos, comparando-os aos contactantes próximos não infectados (grupo controle).
O estudo mostrou que, no primeiro ano após a abertura dos sintomas, o grupo de sobreviventes infectados apresentaram alguns sintomas como dores de cabeça, perda de memória e dor articular mais frequentemente do que o grupo controle, com redução da prevalência desses sintomas no ano seguinte em ambos os grupos.
Quanto as alterações do exame físico, os sobreviventes ao ebola apresentaram mais achados anormais ao exame do abdômen, exame neurológico e uveíte ao fundo de olho, que o grupo controle. Exceto pela uveíte, que teve um aumento, a incidência desses achados reduziu nos 12 meses seguintes.
A persistência do RNA viral nos pacientes infectados também foi avaliada em um subgrupo menor de sobreviventes. O RNA foi detectado em 30% dos participantes deste subgrupo, sendo o tempo mais longo entre a fase aguda e a detecção do RNA de 40 meses.
VACINA E PREVENÇÃO
Dentre as poucas possibilidades terapêuticas, a rápida identificação e isolamento de doentes é fundamental para o controle da doença. O preparo adequado dos corpos de vítimas da doença para seus funerais, bem como medidas educacionais quanto à transmissibilidade para a população são peças chave para bloquear a corrente de transmissão nos locais de epidemia.
Entre as intervenções mais promissoras, temos o desenvolvimento de vacinas para a prevenção das formas graves de infecção pela doença. As populações sob alto risco de adoecer, nas áreas endêmicas, bem como profissionais de saúde em contato com os doentes se beneficiam de seu uso. Estratégias de vacinação de bloqueio podem ser importantes para impedir a disseminação do vírus. Entretanto, a segurança e a capacidade de induzir resposta imunológica a longo prazo das vacinas estudadas até agora ainda são desconhecidas.
Algumas são as dificuldades no avanço do desenvolvimento da vacina e de sua aplicabilidade. A maior eficácia para o desenvolvimento da vacina só pode ser alcançada uma vez que o sequenciamento genético completo dos vírus circulantes for feito para se definir se a vacina confeccionada oferece cobertura para tal. Além disso, as doses das vacinas até então estudadas precisam ser mantidas em ambientes refrigerados, o que dificulta ainda mais sua adoção como prática, uma vez que, muitas vezes, os locais de maior demanda vacinal são aqueles com menor desenvolvimento socioeconômico e, consequentemente, menores condições de infraestrutura.
A doença causada pelo vírus Ebola ainda é um desafio para a ciência em diversos aspectos devido à grande virulência do agente, mas também das condições socioeconômicas da população mais exposta a esse vírus. Por isso, entender as principais características da doença, bem como buscar por um diagnóstico precoce pode ser fundamental para o desfecho dos acometidos.