Que assunto é esse, Guilherme?
Bom, pessoal! Vamos tentar esclarecer esse título enigmático!
Muito se fala da relação do consumo de álcool e os fatores de risco cardiovasculares (tanto de proteção quanto do aumento dos mesmos).
Com o consumo de bebidas alcoólicas cada vez mais difundido pelo mundo, faz-se importante esclarecer algumas dúvidas sobre o assunto.
O álcool é fator de risco para as doenças cardiovasculares? Aquela tacinha de vinho diária faz bem ao coração? Devemos saber orientar nossos pacientes sobre essas situações.
Então, vamos lá!
O consumo de bebidas alcoólicas é difundido em diversas culturas no mundo desde o início da história da humanidade.
Só uma curiosidade sobre o tema, o álcool pode ser simbolizado pela figura do deus Janus (figura mitológica), que possui duas faces, podendo representar o bem e o mal simultaneamente.
Assim como o álcool que pode ter um paradoxo com seus efeitos benéficos e tóxicos.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o álcool é responsável, direta ou indiretamente, por aproximadamente 2,5 milhões de mortes por ano no mundo.
O etilismo é considerado como principal fator de risco para óbito na população masculina, na faixa etária entre 15 a 59 anos (principalmente por mortes violentas ou de etiologia cardiovascular).
O consumo de álcool está relacionado com uma série de doenças e situações que aumento morbimortalidade como, por exemplo, cirrose hepática, convulsões, violência, acidente vascular cerebral, acidentes automobilísticos, neoplasias (ex.: câncer de cólon, mama, reto, laringe, fígado).
Além disso, a estimativa de custo econômico por situações provocadas pelo consumo de álcool é de aproximadamente 234 bilhões de dólares nos Estados Unidos.
TUDO BEM, GUILHERME! ATÉ AGORA VOCÊ SÓ FALOU DOS MALEFÍCIOS PROVOCADOS PELO CONSUMO. MAS NÃO HAVIA ALGUM BENEFÍCIO?
Sim! Sim! Alguns estudos demonstram que a ingestão leve à moderada desse produto pode estar relacionada com alguns benefícios para a saúde, incluindo redução da prevalência de doenças cardiovasculares.
Vamos abordar isso mais detalhadamente ao decorrer do nosso artigo.
UM BREVE PERFIL DOS CONSUMIDORES DE ÁLCOOL:
Cerca de dois terços da população refere realizar algum consumo de bebida alcoólica (na maioria dos estudos).
Aproximadamente 44% desses indivíduos possuem um consumo regular (definido como, pelo menos, um drinque por semana).
Em geral, os homens consomem 6,2 doses semanais, enquanto as mulheres apenas 2,2.
A bebida preferida do sexo masculino é a cerveja, enquanto as mulheres relatam preferência por vinho.
Uma informação também relevante é que um a cada cinco indivíduos admite realizar um uso abusivo do álcool.
QUAL A RELAÇÃO DO CONSUMO DE ÁLCOOL COM A PREVENÇÃO PRIMÁRIA CARDIOVASCULAR?
Diversos estudos observacionais afirmam que pessoas que possuem uma ingesta etílica leve à moderada apresentam menor risco de eventos cardiovasculares em comparação com os indivíduos que não fazem uso de bebida alcoólica, enquanto os que praticam o abuso de álcool possuem maior risco cardiovascular.
Uma metanálise envolvendo 1 milhão de pacientes revelou que o consumo leve a moderado foi associado com uma redução significativa de mortalidade durante o tempo estudado.
O nível de ingesta foi de uma dose diária para mulheres e uma a duas doses diárias para homens.
Por outro lado, o consumo de mais de 2,5 doses para mulheres e 4 doses para homens revelou um aumento progressivo na mortalidade, sendo dose dependente, ou seja, quanto maior a dose, maior o malefício.
Outro estudo relevante norteamericano, que acompanhou 245 mil indivíduos adultos, revelou que a ingestão leve (até 3 drinques por semana) ou moderada (de 4-7 drinques por semana) foi associada com menor mortalidade cardiovascular quando comparada ao uso abusivo de álcool (mais de 7 drinques por semana em mulheres ou mais de 14 drinques por semana pelos homens) ou quando comparada ao pacientes que não fazem uso de bebidas alcoólicas.
Alguns estudos também demonstram que o uso do álcool (aquele uso moderado) é o fator mais importante para a longevidade existente nos indivíduos com um padrão de dieta mediterrânea, representando até 25% do benefício total da diminuição da mortalidade nesses indivíduos.
O ÁLCOOL EXERCE ALGUM PAPEL NA PREVENÇÃO SECUNDÁRIA CARDIOVASCULAR?
A ingesta moderada também parece exercer algum papel protetor quando nos referimos à prevenção secundária.
Alguns estudos importantes demonstram menor mortalidade e menos eventos cardiovasculares nesse perfil de indivíduos.
E QUAL A RELAÇÃO DO ÁLCOOL COM ALGUNS EVENTOS CARDIOVASCULARES ESPECÍFICOS?
Nesse tópico do artigo, vamos tentar separar algumas condições específicas e correlacionar com o uso de álcool:
– Arritmias: não há dúvidas que o uso crônico ou agudo de álcool pode precipitar arritmias. Já ouviram falar do “Holiday Heart”? Aquela situação de uma arritmia (principalmente fibrilação atrial) ocasionada após um consumo excessivo e agudo de bebidas alcóolicas (geralmente após um feriado ou durante um final de semana, quando acontece o famoso “enfiar o pé na jaca”, não é mesmo?).
O consumo de mais de 35 doses por semana (segundo o Copenhagen City Heart Study) aumentou o risco de fibrilação atrial em homens.
A utilização de mais de um drinque por dia aumenta o risco relativo de ocorrência de fibrilação atrial em 10% para cada dose por dia.
O mesmo consumo de bebida alcoólica também pode se relacionar com arritmias ventriculares e até mesmo morte súbita.
De onde vem essa predisposição a arritmias cardíacas após o uso de álcool?
Algumas das explicações são o aumento do intervalo QT e encurtamento do período refratário efetivo atrial, além da toxicidade direta sobre a própria célula miocárdica.
Além disso, o aumento da atividade simpática é diretamente ligado à ocorrência de arritmias cardíacas.
– Disfunção ventricular: o uso excessivo do álcool possui cardiotoxicidade. O uso crônico e abusivo pode resultar em cardiomiopatia dilatada de etiologia alcoólica (1/3 das causas não isquêmicas de cardiomiopatia nos EUA).
– Hipertensão arterial sistêmica: o consumo de álcool e o aumento dos níveis pressóricos arteriais é dependente da dose utilizada. O uso crônico de bebida alcoólica é uma das principais causas reversíveis de hipertensão arterial. A Sociedade Americana de Cardiologia afirma que a partir de dois drinques diários o risco de hipertensão arterial aumenta. Além disso, a cada drinque adicional a esses dois drinques diários, a pressão arterial aumenta em aproximadamente 1,5 mmHg.
– Acidente Vascular Encefálico (AVE): etilismo crônico e/ou grave são importantes fatores de risco para a ocorrência de AVE (apesar do consumo leve a moderado ser protetor em relação ao uso excessivo).
A recomendação atual é que os pacientes com histórico de AVE isquêmico ou ataque isquêmico transitório (AIT) devem eliminar o consumo de álcool.
– Diabetes: assim como outros tópicos do artigo, vários dados importantes sugerem que o consumo leve a moderado de álcool exerce alguma proteção ao desenvolvimento de DM do tipo 2. A “American Diabetes Association” orienta o máximo de dois drinques diários para homens diabéticos e um drinque diário para mulheres diabéticas.
GUILHERME, JÁ É CONHECIDO O MECANISMO PELO QUAL O ÁLCOOL PODE EXERCER ALGUMA AÇÃO CARDIOPROTETORA?
O que se acredita até hoje é que o etanol é o principal responsável tanto pelos efeitos deletérios quanto benéficos das bebidas, a depender principalmente do padrão de consumo e da dose utilizada.
O que temos até hoje de sugestão para os benefícios é que o etanol, quando consumido de maneira leve à moderada, pode aumentar a sensibilidade à insulina, aumentar os níveis séricos de HDL, ter um certo poder anti inflamatório, e melhorar a função endotelial dos vasos sanguíneos.
Sobre o aumento da sensibilidade à insulina, parece que o consumo leve a moderado exerce esse efeito dentro das 12 a 24 horas posteriores ao consumo.
Acredita-se que o etanol leve à supressão da liberação de ácidos graxos do tecido adiposo e aumenta os níveis de adiponectina (proteína secretada pelos adipócitos, possuindo papel importante no sistema cardiovascular e endócrino, envolvendo sensibilização à insulina, regulação do metabolismo energético corporal).
Com isso, há uma redução da competição dos ácidos graxos no ciclo de Krebs, aumentando o consumo e o metabolismo glicêmico.
Ainda sobre o uso diário de uma a duas doses, há uma redução dos triglicerídeos séricos e da adiposidade visceral.
No entanto, se o consumo for maior do que esse, tanto a obesidade quanto os níveis séricos de triglicerídeo aumentam proporcionalmente ao aumento da dose.
E SOBRE A VELHA MÁXIMA QUE UMA TAÇA DE VINHO DIÁRIA “FAZ BEM AO CORAÇÃO”?
Vamos comentar um pouco sobre isso. O vinho tinto, assim como diversos sucos de uva integrais, é rico em polifenol, uma substância que possui atividade antioxidante, antiinflamatória, e de antiagregação plaquetária.
A somatória dessas atividades leva a um melhor metabolismo lipídico e menor deposição aterosclerótica.
Diversos estudos pequenos e randomizados constataram que o vinho tinto melhora a resistência à insulina, o perfil lipídico e a função endotelial, principalmente quando comparado a outros tipos de bebida alcoólica.
Um dos estudos recentes demonstra que a ingestão diária de 275 mL de vinho tinto reduziu a pressão arterial sistólica e diastólica.
Outros estudos já existentes compararam os efeitos do vinho tinto, da cerveja e da vodca.
Neste, só o vinho foi capaz de trazer alguma proteção contra estresse oxidativo.
OK, GUILHERME! ENTÃO, COMO DEVO ORIENTAR O MEU PACIENTE QUE DESEJA FAZER USO DE BEBIDA ALCOÓLICA?
Antes de mais nada, devemos sempre orientar aos nossos pacientes sobre as medidas preventivas bem documentadas com relação à morbimortalidade cardiovascular, tais como perda de peso, dieta equilibrada (ex.: mediterrânea) e a prática de exercícios físicos.
Sobre o consumo de álcool, primeiro temos que definir o que é uma ingesta leve à moderada. Em geral, é aquela de um drinque por dia por mulheres e de até dois drinques por dia por homens.
Pelas características dos seus componentes não alcoólicos, o vinho tinto é a melhor bebida, dentre as que possuem álcool, para a diminuição do risco cardiovascular.
A ingesta excessiva de álcool deve ser desencorajada por aumentar a mortalidade, além de diversas outras situações que também aumentam as morbidades do paciente.
Se você tiver que orientar o melhor horário do dia para que o paciente faça uso da bebida, o ideal é que seja antes ou durante a maior refeição diária (horário em que parece haver maior benefício).
Como conclusão, parece que os benefícios do consumo da bebida alcoólica são obtidos se praticados diariamente, E COM MODERAÇÃO! Isso pode ocorrer por que a maioria dos benefícios do álcool permanece durante 12 a 24 horas.
TOME CUIDADO!
Alguns estudos indicam que não conseguimos definir quem são os pacientes com maior risco de atingir um padrão de consumo perigoso após iniciar a utilização de bebidas alcoólicas, o que é algo preocupante.
Sendo assim, alguns órgãos como, por exemplo, a American Heart Association desencoraja o início do uso de bebidas alcoólicas para aqueles que ainda não começaram, exatamente por não ser possível prever a consequência do início do uso em cada indivíduo.
Devemos relembrar que o uso intenso e crônico de álcool é fator de risco para diversas doenças como neoplasias e outras.
Por isso, a dica mais aconselhável é: até que tenhamos mais estudos de grande porte, randomizados, e ferramentas para prever a susceptibilidade do consumo etílico abusivo em cada indivíduo, o uso da mesma como medida preventiva para doenças e desfechos cardiovasculares não deve ser um foco, e ainda não deve ser totalmente encorajada.