É notória a gama de informações e aprendizados que a pandemia da doença causada pela Covid-19 tem trazido para toda a comunidade médica, e também para a população em geral. Não há dúvidas que ainda temos muito a aprender, e que ainda estamos descobrindo cada vez mais dados sobre a doença. O mundo todo trabalha em função disso atualmente.
No entanto, também percebemos o espaço gerado de forma exagerada no “achismo”, “na minha experiência”, ou “com meu amigo funcionou” e por aí vai. Isso é facilitado por um cenário rico de incertezas gerado pela doença.
Neste artigo, usarei um trabalho escrito por d’Ávila A. e Melo M. F. V., chamado “O Astronauta e a Jabuticaba”, como método de inspiração e reflexão. Tal artigo foi publicado recentemente no Editorial da Sociedade Brasileira de Cardiologia e nos faz ter uma bela epifania do momento em que vivemos na medicina e no mundo atualmente.
UMA BREVE INTRODUÇÃO:
No artigo, os autores fazem uma metáfora muito interessante sobre a formação de astronautas e médicos, além do que a população espera desses profissionais. Aqui comentarei os pontos de maior destaque.
Guilherme, como assim, comparar médicos com astronautas?
Bem, os autores mencionam que a cada 2 anos, a partir de milhares de inscrições realizadas no mundo inteiro, aproximadamente 100 pessoas são encaminhadas à NASA para a realização de entrevistas, exames médicos, físicos e psicológicos. Fazem uma certa comparação (com suas devidas proporções) sobre o ambiente extremamente competitivo para se entrar em uma faculdade de medicina, e depois para se manter durante o curso de graduação. Como ocorre no meio dos acadêmicos de medicina, muitos candidatos a astronauta cancelam sua inscrição após se darem conta da gigante carga de trabalho e do perigo envolvido nas tarefas que terão que se submeter.
Os autores ainda afirmam que, aos olhos dos pacientes, os médicos sempre serão pessoas excepcionais como os astronautas, aptos a resolverem os problemas mais complexos e, quanto mais difíceis são esses, mais preparado e treinado o paciente espera e deseja que o seu médico seja capaz de resolver. Todo paciente quer que o seu próprio médico possua uma excelente formação, que tenha sido treinado da melhor forma possível e que o profissional seja capaz de resolver o problema de forma pragmática, informada e rápida. Assim como no lançamento do ônibus espacial, ou o astronauta se encontra preparado ou não entra na nave. De forma semelhante, as decisões e práticas médicas não podem ser baseadas em crenças ou simplesmente na torcida de que dará certo. Todo paciente, independentemente dos seus gostos e preferências, procura um médico que seja capaz de abordar os problemas com condutas embasadas em técnicas bem estabelecidas e predefinidas durante o preparo e experiência profissional. Já existem trabalhos que comprovam que as pessoas preferem que seu destino dependa mais da técnica do que da sorte ou do acaso.
Por outro lado, no artigo “O Astronauta e a Jabuticaba”, os autores destacam também que o controle de qualidade dos processos de formação do astronauta e do médico são muito distintos. Afirmam que com os profissionais do espaço o controle é mais fácil de ser exercido e os erros são corrigidos de forma mais rápida e objetiva (talvez por ser um grupo muito menor de profissionais). Enquanto nós, profissionais médicos, a qualidade e os resultados da formação são mais difíceis de serem avaliados, principalmente após concluído o período oficial de treinamento (graduação, residência médica e por aí vai). Explicando: quando os profissionais médicos já estão em pleno mercado de trabalho suas decisões e técnicas não estão sob vigilância constante. Referem que os extremos como profissionais e hospitais de excelência versus imperícia ou negligência são de fácil reconhecimento (e são mesmo, não é verdade?). No entanto, existe uma penumbra gigantesca onde o controle é mais difícil de ser exercido (e talvez é onde se encontre a maioria dos atos médicos).
E este é um dos pontos que mais concordei com os autores do artigo que estou utilizando de base para essa reflexão! A pandemia deixou bem clara a situação descrita no parágrafo acima. Dentre a utilização de ozônio via retal e a administração de diversas medicações sem comprovação científica de benefício, algumas instituições e profissionais simplesmente “abandonaram” a famosa medicina baseada em evidência para dar luz às experiências pessoais, às próprias convicções (muitas vezes políticas – o que não deveria afetar a prática da medicina), aos achismos…
O texto mantém uma crítica ainda mais dura, alegando que muitos Conselhos de Medicina optaram pela estratégia “se não fizer mal, pode” para algumas condutas, ao invés de impor a prática da ciência séria em detrimento das impressões pessoais.
ALGUMAS DISCUSSÕES SOBRE O TRATAMENTO DA COVID-19 QUE AINDA EXISTEM QUASE QUE EXCLUSIVAMENTE NO BRASIL – ASSIM COMO A JABUTICABA (POR ISSO, A FRUTA NO NOME DO ARTIGO):
O uso da hidroxicloroquina e da ivermectina, por exemplo, ainda é discussão no Brasil, enquanto em diversos países do mundo isso já foi abolido. Estas ainda são utilizadas em ensaios clínicos em outros lugares do planeta, mas não na prática médica (enquanto no nosso país, ainda flagramos diversos pacientes utilizando essas medicações como tratamento para a Covid-19).
O texto faz uma referência que a discussão do uso dessas drogas permanece atual apenas no nosso país. Trata-se de uma discussão predominante, mas não exclusivamente nossa – assim como a fruta jabuticaba – porém, atual apenas no Brasil.
ALGUMAS CRÍTICAS À UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS NÃO COMPROVADOS CONTRA A INFECÇÃO POR COVID-19:
As justificativas e argumentos utilizados pela população e profissionais que defendem o uso de drogas e técnicas com eficácia não comprovada cientificamente contra a infecção pelo Covid-19 são diversos. Alguns dos exemplos são que os estudos realizados (que não demonstraram eficácia na utilização dos medicamentos utilizados por essa parcela da população) em outros países não se aplicavam à população brasileira (um detalhe é que diversas das drogas que utilizamos para tratar insuficiência cardíaca, infarto agudo do miocárdio, DPOC, e as mais variadas doenças, foram estudadas em populações que não a brasileira); no momento, utilizam resultados através da extrapolação para toda a população após análise de um mínimo subgrupo, quase que individual, mesmo sem qualquer comprovação científica. É obrigatório que o médico aceite evidências contrárias às suas crenças pessoais.
Nesse cenário conturbado e de divergências e incertezas, muitos colegas médicos optaram, em meio à desregulamentação de condutas, por criar abaixo-assinado, inventar sites, escrever cartas a políticos a fim de promover condutas pessoais e implementar a prática de condutas médicas particularmente defendidas, a despeito da evidência científica atual demonstrar resultados contrários.
O fato é que, por não haver uma regulamentação por parte dos Conselhos e de muitas Instituições médicas, a porta se encontra escancarada para condutas também duvidosas e para o charlatanismo.
EXISTE UM COMPLÔ MUNDIAL ENTRE MÉDICOS, PESQUISADORES E INDÚSTRIA FARMACÊUTICA QUE FOMENTA A PANDEMIA?
Humildemente, é difícil acreditar e aceitar isso! Esse é outro argumento utilizado pelos profissionais (e também os não profissionais) da saúde que se “beneficiam” de alguma forma em utilizar métodos não comprovados cientificamente. Há uma tentativa de criar um ambiente de insegurança na população, sugerindo que exista um “acordo” entre indústria farmacêutica, revistas médicas, pesquisadores, médicos assistentes a fim de aprovar estratégias de alto custo, excluindo a parcela da população menos privilegiada (convenhamos! Ou isso é um absurdo, ou realmente somos inocentes demais!).
O fato é que, até o momento, apenas a dexametasona foi confirmada como possível intervenção eficaz até o momento no tratamento da infecção por Covid-19 (isso em uma parcela da população, em momento espefícico da doença, e com determinado grau de gravidade – ou seja, não deve ser utilizada como profilaxia, muito menos como tratamento para qualquer indivíduo infectado pelo novo coronavírus). Engraçado que a dexametasona é uma droga barata, genérica e que possui permissão para ser produzida em grande escala por qualquer país do mundo, sem royalty (o que enfraquece a tese do complô, não é?).
Em sua maioria, o grupo que acredita (se é que acredita mesmo) nesse “complô” é formado por pessoas com pouco ou nenhum interesse (muitas vezes sem experiência alguma) em publicação científica, e muitas vezes encontram na resistência ou na falácia uma maneira de se colocarem em evidência, adquirir lucro financeiro ou pessoal. Felizmente, trata-se de um grupo não apreciado pela comunidade médica (mesmo que de forma silenciosa), o que incentiva esses grupos a buscarem apoio externamente ao ambiente acadêmico e científico, explorando a fragilidade e desespero de muitos.
A PESQUISA BRASILEIRA NA PANDEMIA DA COVID-19:
Apesar do desconhecimento de grande parcela da população, e até mesmo da comunidade médica, o Brasil tem ocupado lugar de destaque na pesquisa científica no que diz respeito ao novo coronavírus e à pandemia por Covid-19. É um dos países que conseguiu se organizar de maneira eficiente para responder diversas questões importantes da pandemia.
Os autores de “O astronauta e a Jabuticaba” afirmam, e é verdade: só existe um jeito de aprendermos a tratar uma doença, e esse jeito é a pesquisa clínica! Não é nada fácil realizar uma pesquisa bem feita, e vocês percebem isso durante o a graduação de Medicina, mais ainda se optarem por fazer Mestrado, Doutorado posteriormente. Para que um estudo seja bem realizado, ele deve ser amplo, abordar muitos pacientes, em cenários diversos, rápido, organizado e coordenado, randomizado, e com grupo controle (para evitarmos o possível efeito placebo, por exemplo).
Um dos exemplos da importância do Brasil no contexto da pandemia é o grupo “Coalizão”, que é formado por diversos hospitais bem conceituados no país, envolvendo mais de 50 centros médicos brasileiros. São cerca de 11 estudos para responder dúvidas e questões de como tratar a Covid-19. Através desses estudos, percebemos que utilizar a hidroxicloroquina, em uso conjunto com a azitromicina, ou não, não possui benefício em casos leves a moderados (Coalizão I), além de não haver benefício no uso da azitromicina em casos graves (Coalizão II). O grupo ratificou um possível papel importante da dexametasona beneficiando pacientes hospitalizados com SARA moderada-grave, reduzindo o tempo de ventilação mecânica (Coalizão III). Além dos estudos Coalizão, a pesquisa brasileira vem tendo papel importante no aprimoramento da epidemiologia da doença, retirou dúvidas sobre o uso de IECA ou BRAs nos pacientes com Covid-19 (lembrando que não devemos suspendê-los naqueles pacientes que possuem indicação precisa para o uso dessas drogas), além do estudo e produção de possíveis vacinas futuras. Dentro dos próximos meses, ainda virão diversas respostas como resultado do trabalho intenso dos cientistas brasileiros.
A pandemia trouxe coisas ruins para a medicina brasileira (além de todas consequências que já sabemos), como politização de condutas, expondo os pacientes aos riscos de tal medida, permitindo o surgimento de falácias e crenças.
TOME CUIDADO COM OS KITS MILAGROSOS E RECEITAS SALVADORAS:
Como comentei durante quase todo o artigo, até o momento, poucas são as drogas que possuem benefício comprovado no tratamento / profilaxia da Covid-19. Pelo contrário, a maioria das medicações testadas já possui comprovação contrária ao uso.
Sendo assim, devemos tomar cuidado ao prescrever medicações aos nossos pacientes, com a cautela de não estar prestando um desserviço à sociedade, mesmo que a base não seja de má intenção.
Um exemplo muito curioso citado no artigo é a ingestão de alho como medicação para gripe. Em um contexto histórico, afirma-se que provavelmente isso é uma herança proveniente da época da Peste Negra quando se acreditava que a transmissão da enfermidade se dava pelo mau odor (conhecido na época como flegma), e o alho, ao ser esmagado, liberando uma rica essência poderia prevenir a doença. Até hoje essa crença ainda existe. Afinal, quem nunca ouviu a tia, a avó, a mãe recomendarem uma receita com alho para evitar ou tratar a gripe? O fato é que alguns trabalhos sugerem que o alho realmente possua algum efeito antiviral. No entanto, não há estudos randomizados que demonstrem tal benefício, e assim o mito se perpetua com alguns dos argumentos descritos pelos autores:
– Não custa nada tentar; mal não deve fazer;
– Se não cura pelo menos não atrapalha;
– Teve um amigo meu que tomou e ficou bom;
– Parece que funciona em outras doenças;
– Só estou tentando ajudar.
Esse é praticamente o mesmo nível de evidência que tem sido utilizado para ancorar a utilização de algumas intervenções na Covid-19.
Você sabia que o alho é tóxico para cachorros, podendo levar a uma anemia severa e até mesmo risco de vida? Guilherme, por que você está falando isso? O que tem a ver cachorros com humanos, com alho e com Covid-19? Estou tentando exemplificar que nem tudo que é bom para um, também é bom para o outro. E mais, que pode ser maléfico para alguns!!! Portanto, há sim perigo no uso de medicações sem benefício comprovado, mesmo que algumas substâncias pareçam indolentes.
UM RECADO FINAL:
Apesar de todo esse momento conturbado que estamos vivenciando, e que sem dúvidas estará marcado nos livros de História, Economia, Medicina e das mais diversas ciências no futuro, o recado final, parafraseando o texto que utilizei como referência é: “A população pode e deve confiar na ciência médica brasileira quando compreendida e exercida de maneira adequada… o que é realmente importante é a mensagem deixada pelos médicos e pesquisadores brasileiros às novas gerações: acreditem! Porque no final, o rigor e o treino do astronauta sempre prevalecem.”.
Importante lembrar, pessoal! Este artigo foi embasado nos dados científicos que temos até hoje! Pode ser, e tomara que sim, que nos próximos meses tenhamos muitas novidades positivas!